EntreContos

Detox Literário.

Desejos e Percevejos (Douglas Moreira)

Foi assim….

Sorrisos e te amos. Beijos e abraços. Desejos e percevejos.

 

Era uma manhã fresca em Berlim. Árvores de folhas verdes claríssimas se chocavam conforme a brisa se arrastava pela cidade. O rio Spree refletia as cores amareladas do sol que despontava no céu. Barcos e botes passeavam por sobre suas águas calmas.

Às margens do rio, em uma área de extenso verde, estava uma moça — de longos cabelos enegrecidos, olhos azuis-turquesa vidrados ao céu— sentada na grama com as mão fincadas ao chão e esparramada na deslumbrante paisagem que a contemplava de volta por causa de sua igual beleza.

—Ai! — exclamou ela.

— Desculpe-me senhora — um homem, de cabelos escuros e de olhos igualmente coloridos, pisara em sua mão — É que… — Perdeu-se repentinamente na formosura da mulher, pareceu um bobo a encara-la como que mergulhado no Spree e exposto a uma joia mais que preciosa — Não a vi ai. Mas acabo de perceber que fui mais do que um tolo em não notar-te. — um sorriso tímido agarrou-se nos lábio de ambos.

— Não é necessário usar a lisonja para desculpar-se — passou as mãos sistematicamente pelos cabelos.

— Pago-lhe um café e tudo está perdoado — sua voz se rolava como mel nos ouvidos dela.

Ela já havia tomado café suficiente para o dia inteiro horas atrás… mas;

— Ora… É…. — dissimulou — Tudo bem, aceito.

Mas ao responder ela viu que ele encarava, absorto, o rio, com uma expressão de total devaneio, e ela quase, por um instante, pode ver uma contorção de horror em suas feições.

Mas ele logo se virou e o sorriso voltou a se fazer na face.

E assim se fez o primeiro de seus encontros.

 

Saiam do café quando ele disse;

— Quero encontrar-me uma vez mais com você. Devo assumir que este fora um dia que adorarei repetir.

SORRISOS

 

O destino nos é, decerto, uma caixa de surpresas. Um mês atrás, o rapaz, a que chamamos de Stefan, fora exilado do cargo de noivo. Morrera sua noiva, futura esposa.

 

Ela, nomeada Safira no alvorecer de sua existência, por pais de olhares melosos que a amaram desde o momento em que souberam que era apenas um feto, era um encanto… Quiçá era o próprio encanto. Belíssima, assim a fizera a vida. Um presente que seus pais deram ao mundo. Semeara sua imensurável formosura em nossa magnífica Berlim.

Ela era, de fato, única e preciosa. Destacava-se como diamante no meio dos cacos de vidro. Era o raiar do sol pomposo na escuridão de uma noite escabrosa. Uma flor que brota em meio aos espinhos de um cacto seco.

Cruzaram-se os dois com seus incertos destinos. Ele, desventurado; ela, bem aventurada.

Marcaram um novo encontro. Em uma noite fria de sábado. Foram a um restaurante de comida “moderna” com iguarias preparadas do modo menos pragmático possível.

Sentaram-se em uma mesa à janela. O restaurante se localizava nas margens do Spree, um privilégio que só o dinheiro dava.

Ele começou:

— Não sei se… — ponderou — é cedo demais para isso mas — ela o olhava com ternura e com olhos de profunda excitação esperançosa — eu a amo.

Os quatro olhos do casal marejaram. Ela contraiu os lábios e inclinou a cabeça fazendo os cabelos escorrerem no ombro desnudo. Ela trajava um vestido cor de índigo por sobre a pele clara, o decote revelava uma profunda sombra de sensualidade no corpo esbelto.

Ele, pela primeira vez, parara para encarar a paisagem do rio… E novamente a expressão parecera voltar em sua face.

— Cedo ou nãodisse ela interrompendo seus devaneios estou certa de que eu compartilho do sentimento.

Ele sorriu; ela levou suas mãos pequeninas até as dele, olhou-o com gesto recíproco e disse:

— Também o amo

TE AMOS

 

A noite correu tal qual em um conto de amor em que todas as boas aspirações se decorrem plenas e belas. Os dois trocaram olhares de casal por toda a noite.

Ao findar do encontro, do lado de fora do estabelecimento, um beijo quente consumou os eu-te-amos que foram expelidos horas atrás.

BEIJOS E ABRAÇOS

 

Com um sutil aceno e um sorriso brilhante ele virou-se e foi embora.

Quando chegou em casa, borboletas dançavam em seu estômago, a flora, durante o caminho, parecera ainda mais verde, viva e fugaz. Sua mente, seu corpo, sua alma, apenas escolheram ama-la, “nada demais” diria uma tola mente. Nisto não havia nada de que fosse simplesmente “nada”, era amor, daquele que arde lá nos confins do ser. Como uma lombriga assanhada que se contorce pedindo por comida. Nunca é demais, mas também não é de menos, afinal o fato de se ter aquele tal amor é algo que plenifica a existência.

Deveras, amor se faz moribundo quando não se tem correspondência, o tal do platônico, por vezes se torna maligno, mas aqui não era esse o caso. As borboletas que voam aqui faziam o mesmo por lá, com Safira.

Ele, ao estralar da noite, foi dormir. E sonhou…

O céu pintava-se azul, claro e limpo. O grasnar das aves soava doce, como música e encantos. A brisa soprava leve e fresca, batia nas árvores de copas altas e as faziam farfalhar como ritmadoras ao coro das aves.

 A grama que atapetava ao longe estava impecavelmente cuidada, cortada para que parecesse um tapete natural. Se estendia ao longe até umas pequenas colinas cerceadas por árvores. Um tapete vermelho quebrava o ritmo das cores da natureza, se esticava até um púlpito branco, não muito alto, mas representativo. Havia um homem em cima, atrás de uma pequena mesa que lhe chegava ao tórax, tinha cabelos prateados que se tornavam ralos conforme chegava no ponto nu que marcava o meio da cabeça. Vestia um túnica branca de gola vermelha. Um padre.

           Aos lados do tapete haviam cadeiras brancas dispostas em fileiras, mas não havia ninguém sentado nelas. E finalmente no fim das cadeiras, perto do púlpito e do lado direito estava um homem engravatado de cabelos cor de piche e olhos moldados ao exemplo do céu noturno despido da lua e de qualquer estrela.

           Ele tinha uma expressão feliz, de sorriso escancarado. Olhava em direção paralela ao tapete. Esperava alguém.

          A marcha casamenteira tocou, típico.

        E lá raiou um sol nos olhos noturnos do rapaz. Era chegada a hora. Ele a amou, e era hora de consumar o fato.

        E lá atrás de duas colinas — como que um mini-vale — surgia lentamente um figura branca.

        Soava, a marcha.

        Grasnavam, os pássaros.

        Soprava, a brisa.

Os cabelos escuros de Safira se banhavam ao vento, seus olhos brilhavam como nunca. Mas… Ela não estava vestida para casar…

      “Esqueci de pedir sua mão” lembrou-se ele de repente.

          E lá fora ele, assustado e temeroso.

    Ele com olhar marejado de bobo sorria um sorriso trêmulo e feliz. Ela também sorria, mas era mais aceso e mais arqueado, sabia o que viria a seguir.

     Sua mão escorregou por dentro do terno preto, alcançou uma aveludada caixinha redonda de base reta. Retirou do bolso.

       Os olhos dela, que o marejar denunciara, logo cuspiram umas lágrimas roliças e cintilantes.

         Os lábios rosados dela crisparam ainda mais. A leveza de sua feição era uma luz alva em meio à turba de vil superfluosidade que ascendia à sociedade. Uma pétala rosa que se deita na água, alheia a todas as controvérsias que se dizem sobre estar lá. Um puro beijo que se eriça no torpe auge de uma boba discussão.  Um toque macio na tez morena do principiar da vida.

 A primazia daquele momento era tal qual a de se colocar ao mundo, no despontar da existência… O alvorecer da vida. Uma vertigem dourada que se ilumina nos campos de vasto tapete esverdeado.

          Tudo estava como ela sonhara. Um clichê que se inflamou no recôndito de sua alma brilhante desde o momento que se soube o que era.

          Era chegado o momento.

           A mão dele agarrou o topo anguloso do objeto e o abriu. Lá dentro uma pedra polida se banhou de agressiva luz quente, replicou sua cor por todo o canto. Diamante. Que nobre escolha. 

— É… – ele respirou fundo — que fortúnio o meu ter sabido de sua existência, que ventura ter feito parte de tal.

            Ela soltou um som agudo de pura felicidade.

— Peço-lhe hoje, tal qual pediria todos os dias que resido esse mundo — ajoelhou-se — Casa-se comigo? 

              Lágrimas saíram aos borbotões dos olhos da moça.

              Mas… Daí o sorriso logo se endureceu, os olhos se apagaram, e a leveza se tornara pesada.

— Não – disse ela seguida de burburinhos e queixos caídos que se formaram zeros nas bocas das pessoas que apareceram do nada sentadas nas cadeiras.

          As feições dela se tornaram malignas — pare de sonhar com esse dia que jamais movera um dedo para concretizar — a voz também — já morta estou, não há nada que possa fazer. Vá viver um outro amor. Vá viver uma vida. É chegada a hora de superar o desvanecimento de meu ser…. — ela chorou; ele…”

Ele acordou assustado e ofegante em sua cama no quarto escuro e fedido, logo se pusera no mundo real, no meio da tal vil existência que se condenara a viver. O tom ébrio do sono ainda não o permitira se penar pela vida, era esse o único momento do dia que se via despido da tristeza, o momento em que nada lembrava. Estava ele no meio de todo esse turbilhão de convivências simultâneas, nesse mar de olhos críticos, nessa onda de crista obscura, sem amor, sem esperança, sem seu maior presente, sem ela…

Stefan se relegou a viver uma vida de ilusão… Tudo sonho. Berlim, os encontros, o Spree, o casamento… Tudo. Tudo que planejara para fazer com Safira se esvaiu quando… quando ela morreu… afogada no maldito rio de Berlim. Encontraram-na dias depois, apenas o corpo já inchado e deformado. Sobrara a ele as alusões de uma vida que sempre desejara, uma inverdade que o pusera nessa vida de solidão. Um medo grotesco de algo que ele nem bem sabia o que era.

Corroído por um ódio insensato, um desespero inumano, um desejo inconcretizável, se vira em um abismo, escuro, sem qualquer luz ao fim do túnel.

A morte é uma sentença, um ponto final, um basta. Lhe ceifara seu bem mais valioso e expressivo. Não havia lágrimas que consolassem a alma estilhaçada do rapaz. E estes eram, para Stefan, seus…

DESEJOS E PERCEVEJOS.

E Então? O que achou?

Informação

Publicado às 24 de novembro de 2014 por em Contos Off-Desafio e marcado .