Super-heróis têm essa mania estranha: tudo aquilo que não conseguem derrotar, arremessam de volta ao início do universo. E, portanto, ao início do próprio tempo.
Um deus-monstro alienígena devorador de mundos? De volta ao início dos tempos. Um planeta contaminado por uma massa cinza de nanorobôs devoradores de ecossistemas? De volta ao início dos tempos.
O motivo para esse tipo de comportamento é apenas um, e bem simples de compreender: não importa o quão poderosa seja a ameaça, se ela é onipotente ou supostamente indestrutível, NADA sobrevive ao Big-Bang.
Você sabe. O Big-Bang. A grande explosão cósmica que algum cientista teorizou ter criado tudo o que existe, aquilo que te ensinaram no colégio. Exceto que não era só uma teoria e realmente aconteceu.
Arremessar coisas em uma grande explosão cósmica: um bom plano, sem dúvida.
O único problema com essa estratégia é que os super-heróis da Terra, humanos ou não, vivem em meio a nós, são contaminados por nossa humanidade. E humanos, como bem sabemos, costumam errar em seus cálculos com grande frequência…
…
– Enfim, o Inferno!
Disse Hécate de Hecantoquir, rainha-bruxa conjuradora do 13º círculo elemental, ao se materializar em seu novo lar, com um clarão escarlate.
O inferno, porém, não era bem lá o que ela tinha imaginado.
Nada de chamas e gritos de almas condenadas, se lamentando pela eternidade. Ao invés disso, a feiticeira flutuava na escuridão. Não havia ar naquele lugar e ela teria morrido asfixiada (seria possível morrer uma segunda vez?), se não tivesse criado oxigênio para poder respirar, utilizando um de seus feitiços.
Olhou ao redor.
Nada, apenas breu, nem mesmo estrelas no céu. A escuridão e o frio só eram interrompidos pela presença de um pequeno sol apagado, flutuando e meio ao nada. Orbitando ao lado do sol anão, uma grande rocha, e sobre a sua superfície, alguns edifícios de arquitetura pouco usual. Algo que se assemelhava a um vilarejo.
Hécate usou sua magia para nadar através do vácuo e chegar até lá.
Na superfície do planetoide, foi recebida pelo que lhe pareceu ser uma grande escultura metálica viva, avançando em sua direção. A bruxa reconheceu aquela coisa como sendo uma das máquinas que tantas vezes presenciara em suas visões proféticas sobre o futuro (em outras palavras, ela estava diante do que conhecemos como um robô).
Autômatos assim também existiam na época da qual Hécate viera – as pessoas os chamavam de golem – mas eram feitos de argila, não metal, e eram movidos por almas malignas, aprisonadas por sacerdotes judeus.
Hécate sempre invejou a engenhosidade desse povo. Sua própria magia não era muito boa para criar. Apenas para destruir.
A bruxa fez alguns gestos arcanos, e um relâmpago saltou da ponta de um dos seus dedos sobre a máquina. Mas o robô apenas absorveu o raio com um chiado prazeroso, como uma pessoa que acaba de respirar ar puro da montanha. Continuou a se aproximar de Hécate.
E então parou.
– BZZZZ. Bem-vinda, forasteira. Meu nome é Omêga-LXXI. Você acaba a chegar a Universo Antes Do Universo. Sou seu anfitrião nesse lugar. População atual: oito pessoas. Com você: nove.
– Esse não é o inferno!
– Bzzzzzzzzzzyyxh. Observação perspicaz.
Hécate suspirou. Encheu os pulmões com o oxigênio da bolha invisível ao seu redor. Resistiu ao impulso de usar seus feitiços para conjurar uma chuva de meteoros sobre o seu novo “anfitrião”.
– Então, se não morri, que diabos de lugar é esse?
– Tenho você em meu banco de dados. Hécate de Hecantoquir. Reencarnação de uma feiticeira ancestral. Não importa quantas vezes seja morta, continua reencarnando, embora não mantenha as memórias de suas vidas pregressas. Idade Média. O papa Gregório IX autorizou que seus novos inquisidores fizessem uso de magia proibida para enviar você de volta ao início dos tempos. Deu certo. Não existe nenhum outro registro de alguma aparição sua na História posterior, Hécate. E aqui você está. No início dos tempos.
– Por que me enviaram de volta ao início do universo, e não ao final dele? Posso sair daqui facilmente, minha alma reencarnará. É apenas uma questão de…
– Zzzzsdtthj. Não. Lamento informar, mas há um motivo para terem nos enviado aqui. Escapar do fim dos tempos é uma tarefa complexa, mas teoricamente executável. Escapar do início é impossível – o robô apontou para cima, para o pequeno sol acima de suas cabeças – Aquilo lá. Não é bem como os cientistas humanos da minha época imaginavam, mas esse tipo de comprovação empírica não deixa dúvida quanto a sua existência.
Hécate entendeu o que a máquina queria dizer.
– “E disse Deus: faça-se a luz, e houve luz”. A Explosão Primordial, que enxerguei em uma de minhas visões do passado. Tem razão, tinha me esquecido disso. Nem mesmo eu poderia sobreviver a ela. Nem mesmo uma alma ou espírito. Nada pode.
A bruxa suspirou mais uma vez, quase aceitando seu destino.
– Quanto tempo até a explosão começar?
– Os sensores com os quais estou aparelhado detectam que a próxima explicação será complicada. Caminhe comigo. Meu banco de informações também informa que criaturas bípedes pensam melhor enquanto andam.
Mulher e a máquina caminharam pelo pequeno planeta.
Hécate reparou nos edifícios. Apesar dos seus desenhos avançados, era possível adivinhar o que eram. Moradias, com pequenos jardins. Tudo era um tanto idílico naquele lugar, quase monótono. Reparou, graças à presença das plantas, que havia ar na superfície do vilarejo, e ela pode desfazer a bolha mágica ao seu redor.
Respirou normalmente.
– Melhor ir direto ao ponto. A explosão jamais ocorrerá. Nossos inimigos, os inimigos de todos que moram aqui, tiveram basicamente o mesmo plano. Pretendiam nos lançar de volta ao momento exato da explosão. Alguns deles erraram, como você pôde perceber. Todos aparecemos aqui microssegundos ANTES da explosão. E o tempo ainda não existe. Por isso não pode correr.
– Quer dizer que estamos presos em um instante congelado? Por toda a eternidade? – a voz da bruxa demonstrava assombro genuíno – Mas se a explosão jamais ocorrerá, o que me impede de abrir um portal no tempo, viajar para o futuro, e sair daqui?
– Magia do tempo requer a existência de tempo para funcionar. Repito: não existe tempo aqui.
– Também não deveriam existir os elementos básicos que compõem as coisas. E acabo de invocar do relâmpago sobre você, máquina estúpida!
– fzzzt. Sim. Obrigado por isso. Minhas baterias vieram meio vazias pra cá, consegui recarregar minha energia em 100% – Omêga dizia isso sem inflexão emocional, mas Hécate podia imaginar um sorriso zombeteiro, em lábios que não existiam – Respondendo sua nova pergunta: existe matéria e existe energia. Muito entulho e destroços foram trazidos com alguns de nós. Mas o tempo continua não existindo.
– E o que vocês fazem nesse lugar, então?
– Nada. Os residentes constroem coisas, têm conversas carregadas de teor nostálgico e passam o não-tempo se dedicando a hobbies e jogos. Pelos meus cálculos, estão na 1.000.000.000º edição do Torneio Pré-Universal de Truco.
– Por que levam existências tão mundanas?
– BZZZ. Não temos propósito. Todos que são jogados aqui se dividem em duas categorias: vilões com motivações e sádicos niilistas. Eu mesmo pertenço à primeira: meu objetivo era a CONQUISTA! Aperfeiçoar toda a criação, usando tecnologia – um chiado longo se seguiu, como um suspiro robótico – Aqui a criação ainda não foi criada. Não tenho motivos para seguir minha diretriz.
– Mas e os tais sádicos niilistas?
– Até mesmo eles cansam com o não-passar eterno das eras. São seres vivos. Ninguém consegue chafurdar em escatologia e sadismo o tempo todo. Eles não têm nenhuma pessoa a quem possam assassinar, oprimir ou torturar, porque todos os indivíduos que chegam até aqui foram aprisionados justamente por serem indestrutíveis e terem um poder incomensurável. Além disso, sádicos são a minoria por aqui, desde quando Vargon, o Destruidor de Mundos, entrou em depressão e resolveu hibernar para sempre.
– Está me dizendo que vocês, que têm o poder de deuses, simplesmente sentam aqui e cuidam desse pedaço de rocha como plebeus?
– bzzzzt. Detecto que você está em estado de negação, Hécate. Mas com a não-passagem do tempo você aceitará. Encontrará algo com o qual se ocupar. Meu banco de dados indica que usuários de magia têm grande sensibilidade e propensão para criação artística.
– Minha magia destrói, ela não cria!
– Isso porque você se dedicou toda a sua vida a apenas um tipo de magia. Estimo que exista uma chance de 99% que você aprenda novas formas de magia, por meio de estudo e dedicação, nos próximos mil não-anos. Humanos são versáteis.
Uma gargalhada de puro desprezo deixou a garganta de Hécate.
– Se esqueceu de um simples, detalhe em sua análise, golem mentecapto. Nós humanos também conseguimos fazer o impossível. Se acham que vou me resignar tão facilmente, estão enganados. Não só sairei daqui, mas farei isso em cima de uma pilha de cadáveres. Sou mais forte do que vocês, mais forte do que todos vocês juntos!
A bruxa, a máquina e todos os habitantes do planetoide tiveram uma batalha de mil não-dias.
Mas depois disso se cansaram, e foram jogar truco.
Lá em cima, em um céu escuro que não era céu, um sol que não era sol continuou brilhando.
É exatamente o tipo de conto que curto; divertido, repleto de imaginação e criatividade, seres fantásticos. Gostaria de ler mais contos seus, especialmente o diário de guerra de Hécate durante a “batalha dos mil não-dias”. Parabéns!
Caraca, adorei esse conto. Divertido, sarcástico, muito bem escrito. Parabéns duplo!
interessante.
“Ninguém consegue chafurdar em escatologia e sadismo o tempo todo.” Concordo, concordo! Sábias palavras, rsss… Gostei, achei divertido, no começo estava estranhando, mas depois a leitura “foi-se”, nem que eu quisesse segurar, ela parava, rs. Muito bom! 😉 Ah, e que imaginação, hein?
O conto mais divertido até agora, pena que tão pequeno. Gostaria de ter conhecido os demais personagens que foram enviados ao início dos tempos. Acho que dava para explorar melhor e desenvolver mais a história, pois a premissa é muito boa. Adorei a ideia dos “não-dias” e da inexistência do tempo. No geral, gostei bastante. Parabéns!
Essa mistura temática envolvendo mitologia, espiritualidade e ficção (lembrei um pouco de Matrix), embora sendo diferentes em si mesmos, o autor conseguiu trazer ao leitor uma forma de leitura coesa e divertida. Botei fé na criatividade!
Gostei bastante do raciocínio que inicia o conto. E do clima um tanto enredo de HQ. Muito interessante também a formulação dos “não-dias”, Parabéns.
Esse conto lembra uma hq antiga que li, acho que era da dark horse, seilá. Gostei, achei divertido, cheio de nuances cósmicas e personagens que parecem pular das linhas. Bonito. Parabéns.
Hahahaha, esse foi muito divertido! Não consegui deixar de associar ao Restaurante no Fim do Universo (só consegui imaginar o Marvin como o robô) e o final do conto me lembrou um pouco o “Conto (não conto)” de Sérgio Sant’Anna.
Muito gostoso de ler e de premissa muito inusitada. Parabéns!
Eles foram jogar truco? Pô… 😦 Sabe, bem legal mesmo a relação golem de barro e robôs de metal. Os diálogos de Hecate poderiam ser num estilo de falar mais antigo “que tu fazes, oh, vil criatura” etc etc…..Não sei se curti a mistura com magia, mas gosto do conceito. Na verdade….parecia q estava lendo sobre a Maga Patalógica, do tio patinhas.
Então, se não morri, que diabos de lugar é esse? < Mas que diabos que ela falaria 'mas que diabos'? hehehe 😀
Sobre a história… Aí sim é um conto definitivamente original sem fugir do tema. Pelo contrário! A viagem ao não-tempo se tornou uma divertida, e profunda, história com tantas e tamanhas possibilidades, que faz o leitor pensar como pode haver tanta coisa muito pior do que o inferno. E aqui, para surpresa geral, o protagonista é o não-tempo. Mais original, impossível. Ótimo texto, ótimos personagens, tudo muito bem criado.
Sobre a técnica… Texto perfeitamente apurado, ortografia e narrativas com esmero.
Sobre o título… Não encontro nada que pudesse ser melhor que esse!
Um conto interessante, na medida em que mescla FC e fantasia, um conflito da ciência com a magia. Poderia ter sido mais profundo, mas a superficialidade tem seu lado cativante.
No geral, um conto que agrada. Parabéns!
Se o tema é algo fantasioso, por que não exagerar na dose? O autor deste texto levou o clichê e o kitsch às últimas consequências, imaginando personagens que misturam cenários medievais de fantasia, de ficção científica apocalíptica e outros que tais, em um cenário maluco e totalmente despropositado, à la Douglas Adams.
Da primeira vez que li, me pareceu um tanto derivativo, mas agora mostrou mais força: a ideia de misturar personagens que parecem saídos de diferentes cenários ficcionais é bem sucedida em criar um clima de “vale tudo” muito gostoso.
Essa capacidade de misturar alhos com bugalhos me lembrou aquele filme do Schwarzenegger sobre um garoto que vai parar num filme, e num personagem de filme que vem ao mundo real, etc. Em dado momento, já que o enredo era mesmo absurdo, a ponto de todos os telefones terem prefixo 555, o roteirista enfiou um gato de desenho animado como “tira” em uma delegacia de polícia em um filme de ação. Ri demais dessa cena, que me pareceu uma trollagem fenomenal.
Acho que o criador deste texto conseguiu algo semelhante com sua mistureba.
E isso é elogiável.
Este texto talvez esteja entre os meus escolhidos.
A-do-rei o seu estilo! Me lembra muito o Douglas Adams de Guia do Mochileiro das Galáxias. Seu robô me lembrou muito o Marvin, embora não tenha toda a sua personalidade.
“Pelos meus cálculos, estão na 1.000.000.000º edição do Torneio Pré-Universal de Truco.”
Ri demais nessa parte hahaha!
Quadrinhos com certeza foram uma influência pra esse autor. Sei lá se ele capturou a verdadeira essência do Douglas Adams, mas eu me diverti! Acho que tem uma pitada de Neil Gaiman aí também.
PS: Tem uns errinhos que passaram. Mas é piolho.
Um conto bem interessante, apesar de eu ter achado que faltou alguma coisa que me prendesse mais a leitura. A referência às HQ’s e a junção de magia e tecnologia foi uma boa sacada. No geral apreciei bastante. Parabéns!
Gostei muito desse conto. Não há um espaço determinado (digo, detalhadamente descrito), nem um tempo e nem uma era. Sabe-se apenas, através da multiplicidade de informações, presentes tanto nos diálogos como nas descrições de tipos-não-tipos de um fim de mundo, que há uma espécie de caos que se auto-regula, constrói, destrói, uma elipse. É a falta de sentido, é a vida. A relação da bruxa com o robô é, também, sensacional. O ser oculto vs o megatecnológico, o lado sombrio da terra buscando a explicação no nada, que é esse universo encapsulando o texto. Bom demais. Segunda leitura daqui uns dias. Parabéns ao autor.
O profano medieval vs o cibernético futurista… Jogada de mestre!
Os diálogos são ótimos e a situação da feiticeira divertida. Uma ótima leitura.
Muito interessante. Me amarrou até o fim.
Muito bom!
O conceito do não-tempo é fantástico e o tom Mochileiro das Galáxias é bem dosado.
Vale a leitura.
Achei bacana a mistura de ciência/game/hq. Há dados interessantes sobre bigbang e tal – realmente houve um não-tempo antes dos tempos? A sacada foi ótima nesse sentido. É sim um conto que prende, que flui e que tem uma ótima pitada de ironia, especialmente no final. Gostei da premissa dos não-anos e do fato de a bruxa estar lá presa para todo o não-sempre. Aliás, quantas pessoas gostaríamos de mandar para lá, não é mesmo? Para mim, um conto original, criativo, ainda que raso. Um bom conto.
Conto divertido e bem bolado. Notei grandes influências de HQ (Feiticeira Escarlate, Ultron?).
Texto bem escrito, embora um pouco confuso de se entender numa primeira leitura. Não prendeu muito a minha atenção, até porque minha concepção de história de bruxas é um pouco diferente da criada pelo(a) autor(a). Contudo, é um texto rico em referências e com diálogos bem estruturados.
Vale a leitura!
🙂
Alguns elementos diferentes na narrativa como já apontou Thata Pereira. Fácil leitura, embora o tema não seja muito interessante para mim. Viagem no tempo sempre me leva a pensar em algum futurista, filme de ficção científica. “Uma batalha de mil não-dias!”
Alan tem razão: esse autor realmente leu Douglas Adams, se bem que eu não sei se ele realmente absorveu todo o espírito do autor britânico.
Como já disse no Facebook: eu não gosto muito de histórias sobre viagem no tempo, tanto que eu talvez nem participe (;-)) deste mês. Mas esta história me atraiu justamente pelo quê de Douglas Adams que ela tem.
Gostei de ter lido, mas ela me pareceu um tanto derivativa demais. Terei de ler outras vezes para decidir uma opinião definitiva.
Gostei muito do conto. Lembra um pouco o estilo Douglas Adams, ao menos eu achei.
“– Magia do tempo requer a existência de tempo para funcionar. Repito: não existe tempo aqui.”
Achei uma máximo toda essa ideia do “não-dias”, “sol que não era sol”. Foi o que mais prendeu minha atenção. Um ótimo conto! Parabéns!