Werner Herzog é um excelente cineasta de ficção, o que demonstra títulos como o Enigma de Kaspar Hauser (1974) e Aguirre (1972). Porém, os seus documentários possuem um brilho que só as coisas esquisitas por serem reais têm. Nos últimos anos, me dediquei a assistir às produções de “cinema verdade” do alemão e quanto assombro e quanta curiosidade elas me causaram.
O presente texto, mais do que uma apresentação de alguns destes filmes, é uma carta de amor ao conjunto desta peculiar obra:
Into the Inferno, 2016
Documentário dirigido por Werner Herzog e Clive Oppenheimer, vulcanologista sem parentesco com o Oppenheimer das bombas. O filme trata sobre vulcões e o fascínio que eles nos causam. As tomadas de erupções de lava em Into the Inferno, com uma trilha operística, dão um curioso conforto ao espectador. É feroz, mas tão bonito…
A narrativa adota uma lógica meio científica, meio antropológica que, numa sucessão de fatos que eu só posso chamar de herzogiana, leva os dois até a Coreia do Norte. Lá, Werner caminha pelo país e registra o cotidiano norte-coreano sem medo.
Os acontecimentos do título são peculiares. Talvez um espectador mais desavisado julgue-os como esquisitos. Além dos episódios já mencionados, Werner se arrisca em bordas de vulcões, tira o seu capacete de proteção diante de um deles e termina com uma explicação sobre a religião de carga e a sequência de um ritual de uma tribo da Oceania que corre risco de desaparecer.
Into the Abyss, 2011
Vivemos na era do consumo de true crime, temática desta produção. A câmera do cineasta acompanha dois homens no corredor da morte, condenados por um assassinato que cometeram antes dos 21 anos. Não há trama de mistério ou ação, apenas o que restou após a tragédia. Câmeras paradas, longos closes em figuras que tentam convencer o espectador da sua inocência. Herzog não julga ou espetaculariza, apenas mostra.
As imagens dos EUA na película revelam um país que não é o império de oportunidades e fartura que idealizamos, mas uma terra árida de pessoas marginalizadas e dispostas a qualquer coisa por carros e riquezas.
O documentário termina na data da execução de um dos condenados, que não é mostrada por respeito à vida humana. Afirmo sem hesitar que é a mais triste das produções listadas, causando uma sensação de vazio ao seu final.
Fireball: Visitors from darker worlds, 2020
Nova colaboração entre Werner e Clive Oppenheimer, na qual eles analisam como rochas espaciais, que caíram em nosso planeta, modificaram a história e culturas humanas.
Acompanhamos a dupla em visitas a diferentes centros de pesquisa científica, com o ponto alto sendo uma expedição na Antártida. Nela, é capturado o instante em que, no meio da sisuda brancura do gelo, um pesquisador encontra um meteorito e comemora em êxtase a sua descoberta.
O companheirismo entre Clive e Herzog transborda improbabilidade e, por isso, soa bastante honesto. Assistimos o inglês se encarregar da parte acadêmica, quase como um diplomata abrindo as portas dos laboratórios. Werner, em contrapartida, retribui com os seus originais enquadramentos e a sua narração de entonação característica: décadas morando nos EUA não atenuaram o seu sotaque germânico.
Em certo momento, ambos vão até a Península de Yucatán, no México, para filmar o centro da cratera que teria exterminado os dinossauros. Sem se importar com o momento, Herzog observa cães de rua que passam e reflete em voz alta:
“Os cães aqui, como todos os cães deste planeta, são muito estúpidos para entender que três quartos de todas as espécies foram extintas pelo evento que ocorreu aqui.”
Bells from the Deep, 1993
Herzog considerou o colapso soviético como o momento mais apropriado para viajar até a Sibéria e filmar as particularidades da vida espiritual da região. Mesmo depois da produção traumática de Fitzcarraldo (1982), o diretor manteve-se implacável em concretizar suas decisões artísticas. Neste trabalho, como não achou os peregrinos que queria, contratou dois nativos para simularem o ritual no qual pessoas se arrastam em um lago congelado. Um dos atores, segundo fontes, adormeceu no gelo siberiano por estar alcoolizado.
Há também a aparição de Vissarion, o autoproclamado Messias, uma espécie de INRI Cristo russo, e programas televangelistas com exorcismos. Porém, o ponto alto da produção de pouco mais de uma hora é Yuri, o artista de sinos. A câmera nos presenteia com a apresentação dos seus instrumentos. Um intrincado nó de sinos, harmônicas badaladas que ecoam para o público como uma música ritualística.
Meeting Gorbachev, 2018
Werner Herzog conversa com Mikhail Gorbachev em três ocasiões, em uma delas o cineasta presenteia o ex-presidente com uma placa de chocolate em sua homenagem. Alterna depoimentos e imagens da trajetória de Gorbachev, sendo um quadro interessante sobre a queda do sistema soviético e a reunificação alemã.
The White Diamond, 2004
Aqui, Herzog acompanha o Dr. Graham Dorrington na sua tentativa de fazer um dirigível voar pelos céus da Guiana. Este documentário possui tantos detalhes que é mais fácil elencar os destaques:
– O inventor e protagonista tem uma mão com dedos faltando, acidente causado por uma tentativa de foguete caseiro. Ninguém acredita nele, nem ele mesmo, que passa por diversas crises de confiança ao longo do filme.
– Werner foi para a selva participar do experimento e, para que a equipe não se arriscasse, resolveu ele mesmo voar no balão. A justificativa para o ato foi de que “in celluloid we trust”.
– O documentário é batizado a partir de uma fala de Marc Anthony, um inglês que foi parar na Guiana e estava ajudando na empreitada em troca de salário. Deitado em uma rede, com claros efeitos de ervas psicoativas, ele olha para o balão e fala que é muito lindo, um diamante branco voando no céu.
– Marc Anthony olha para Herzog e fala “eu não consigo lhe escutar, por causa do trovão que você é”.
– Há toda uma subtrama de uma cachoeira sagrada para o povo da região. Aqui percebemos o quanto Werner respeita as diferentes culturas, quando ele decide não profanar a cachoeira com filmagens.
– Destaque para a cena em que um dos ajudantes treina breakdance em frente à mesma cachoeira.
– Outro momento maravilhoso ocorre quando Herzog aparece de surpresa na frente de um morador da região que dormia em uma rede, o acorda e diz para ele olhar o dirigível branco no céu. O homem cai no chão de susto.
– “Há a estupidez gentil, a estupidez heroica e a estupidez estúpida. No seu caso, é a última”.
Cave of Forgotten Dreams, 2010
O primeiro cineasta a receber permissão para entrar nas cavernas de Chauvet, no sul da França, foi Werner Herzog. Então, no alto dos seus 68 anos, ele desce para o subsolo e filma os mais antigos registros humanos nas paredes deste complexo subterrâneo.
É um apanhado de imagens que beiram o surreal de tão potentes, com a trilha sonora acentuando ainda mais a grandiosidade delas. Cabe destacar que a equipe do alemão, ao longo de uma hora e meia do título, demonstra uma contínua preocupação com a preservação do patrimônio que desbravaram. Tomaram todos os cuidados para que as luzes e os aparelhos não danificassem tamanha herança da origem humana.
Perto dos outros títulos elencados, temos um documentário bastante contido e tradicional. A conclusão é que traz a mágica herzogiana, quando a narração de Werner disserta sobre um crocodilo albino em uma floresta artificial.
The Great Ecstasy of Woodcarver Steiner, 1974
Primeiro documentário que mostra o rosto de Herzog, acompanha a estrela do esqui Walter Steiner, campeão de salto em 1972 e 1977. As imagens em slow motion do atleta são fascinantes e, ao mesmo tempo, aterrorizantes. Lembram a história de Ícaro, que morreu por querer voar perto demais do Sol.
Não é um título que busca uma análise imparcial do esporte. Werner deixa claro, ao longo de toda a duração dele, o quanto é fascinado pelo esqui e pelas proezas de Steiner. Esportista que, entre um salto e outro, é mostrado trabalhando com madeira – o que explica o nome do filme.
How Much Wood Would a Woodchuck Chuck, 1976
Um filme que desperta o desejo de que Werner, um dia, tenha recursos para filmar a sua versão de Hamlet com os leiloeiros de gado do Texas profundo.
Retrato do Campeonato Mundial de Leiloeiros de Gado de 1975, no Colorado. Com a participação de apenas uma mulher na competição, assistimos homens ditarem o mais rápido possível a apresentação dos animais que são obrigados a correrem no palco. Bois e homens, quais os mais animalescos?
Herzog afirma que a prática em foco seria, talvez, a última forma lírica de comunicação. Simultaneamente, dá espaço para observarmos os Amishes que colocam o seu gado para vender na feira. Um paralelo entre modernidade e tradições de fala, vida e linguagem.
Existem bons cineastas, péssimos cineastas, os afetados e os despretensiosos. E há Werner Herzog. Não foram poucas as vezes que vi lhe chamarem de “selvagem”. É verdade, ele carrega consigo algo sincero e feroz. É quase uma fome o que lhe move a filmar, apetite do tamanho do mundo.
Mas nem esse apetite o prende, Werner é esfomeado e livre. Não cabe em nenhum rótulo do que os críticos chamam de alta ou baixa cultura. Quando quer, explora perguntas estranhas e produz trabalhos conceituais sobre guerras civis ou óperas. Ao mesmo tempo, também participa de produções pop como Mandaloriano (2019) e Jack Reacher (2012) simplesmente por querer. Diz não querer encontrar o imperador japonês, mas se entusiasma em ver o soldado que ficou vinte anos na selva filipina.
Um cineasta único. Tal como o filósofo Diógenes de Sinope, anda por aí buscando o homem e sua essência. Não com uma lanterna, mas com uma câmera. Eu admiro a sua coragem, a sua curiosidade e o seu desprendimento para com o que o resto das pessoas considera “normal”. Tenho outros títulos dele para assistir, mas estou espaçando as experiências. Herzog um dia vai morrer e me assusta a ideia de um mundo que não seja observado por trabalhos inéditos seus.
Por dois anos ministrei uma disciplina eletiva de cinema e descobri que sei muito pouco sobre e que ensinar o tema é difícil por muitas razões. Nesse sentido, algo que não abordei nesses dois anos e que não costumo assistir é documentário. Ainda assim, arrisco dizer que, até pelo nome, esse gênero executa o ato de documentar, que poderia ser definido como a atitude de registrar e ordenar informações de algum elemento real.
Pois bem, feita essa caracterização, a minha leitura desta resenha me faz olhar o documentarista Herzog (dele só assisti a Nosferatu) como um cineasta que registra, mas se nega a ordenar, preferindo a espontaneidade e o caos da realidade que se misturam nas produções. É evidente que há um plano claro para o que se quer exibir, mas não há um apego ao foco, quem comanda é a sensibilidade.
É mesmo um modo selvagem de abarcar a realidade. É corajoso e autêntico. Mais de um desses títulos captou a minha atenção. Estão na lista!
Conheci Herzog através de você, do seu ótimo Um Fragmento do Homem que Comeu os Próprios Sapatos. É interessante como algumas pessoas e seus feitos ressoam em nós e é muito bom ler algo escrito com tanto cuidado e, porque não dizer, amor.
Obrigado pelas dicas, Mariana. Confesso que não sou muito familiarizado com as obras do Herzog, menos ainda com os documentários. Dele li “Caminhando no Gelo”, em que ele empreende uma jornada a pé de não me lembro quantos quilômetros em homenagem a uma amiga que descobrira sofrer de câncer. Acabou que não curti muito o livro e isso meio que me afastou de outros trabalhos dele.
O seu artigo por isso surge como uma possibilidade de resgate. Fiquei curioso com algumas das premissas. Vulcões, crateras, corredor da morte… Acho que dá para dar mais uma chance para ele.