EntreContos

Detox Literário.

Sob o céu cor-de-rosa – Conto (Leandro Barreiros)

O vento frio cantava como uma banshee na clareira que haviam encontrado.

Argor empilhava a lenha, enquanto Salina e Alain improvisavam uma tenda para a noite. Não havia sinal de chuvas, mas se dizia na região que os céus se comportavam de maneira imprevisível desde que os desaparecimentos começaram.

– Sal, pode me ajudar?

A elfa largou a estaca que tentava fincar no chão e girou apressadamente para atender Argor, sem se dar conta do “ai” exalado por Alain quando a madeira solta atingiu sua cabeça.

Ela ajoelhou-se diante da madeira, aproximando suas mãos da lenha.

– Lembre-se, não queremos…

– Fumaça – completou, antes de seu Paschar concluir.

Ele não conseguiu conter o sorriso, mas Salina estava tão concentrada que não via nada senão a lenha e a chama azul dentro de sua mente, que em pouco tempo tocou seu coração, seus braços e as palmas de suas mãos.

O Paschar virou-se, esperando encontrar Alain igualmente concentrado na tenda, mas o rapaz tinha os olhos voltados para Sal. Admirava o tênue brilho azul que emanava das mãos dela. Admira isso, e outras coisas, Argor bem sabia.

– Precisamos da tenda hoje, Alain.

O jovem se assustou com a cobrança de seu Paschar, mas logo recobrou a compostura.

– Certo. Me dê mais alguns minutos.

E alguns minutos foram mesmo tudo o que Alain precisou. Treinei-os bem. Ainda precisavam de tempo até que pudessem ser considerados formados, mas esse tempo não estava assim tão distante, o que preenchia o coração de Argor com tanta alegria quanto tristeza.

Sentou-se próximo de Alain, que voltou a observar Salina, agora a equilibrar a qualidade das chamas.

– Vocês estão bem? – Argor perguntou.

– Bem?

– As coisas pareceram um pouco tensas desde Anghal. Já faz um mês agora, e ainda vejo essa distância.

– Ahh… – o rapaz baixou o olhar – sim, Paschar. Você nota a distância porque ela existe. Você sabe que uma noite pedi para Sal esquentar minhas mãos e ela disse que eu ‘podia esfregar uma na outra ou em quem quer que eu quisesse’? Não sei o que fiz para ser tratado assim.

Argor coçou a barba.

– Você reparou que isso tudo começou quando você peticionou formalmente para que convidássemos aquela menina de Anghal para nosso círculo?

– Aiê, Paschar. Salina deixou bem claro que foi uma ideia estúpida. Eu achei que a Nina seria uma ótima ajuda, mas a “conhecemos por muito pouco tempo” e “seria perigoso”.

– Foi o que a Salina disse.

– Eu nunca vi uma druida da nossa idade com tanto talento e ela nos ajudou demais em Anghal, a troco de nada. Achei que era uma boa ideia. Ela era inteligente, talentosa, gentil…

– E estonteante.

Alain enrubesceu.

– Era? Não reparei.

Argor gargalhou.

– Bom, alguém reparou – disse, agora voltando os olhos para Sal.

– Não entendo.

O mestre suspirou.

– Sabe, quando o treinamento de vocês terminar, terão que decidir se seguirão comigo ou se retornarão às suas vidas.

– Vou seguir com você, Paschar.

– Eu sei. Você não tem muito para o que voltar.

– Eu tenho algumas coisas… – resmungou Alain, embora não conseguisse citar nenhuma.

– Mas Salina é a terceira filha da realeza de Livft. Há um papel importante esperando por ela.

– Aiê – respondeu, baixinho – Sal talvez volte para sua família.

– Ela vai. Especialmente se achar que não tem por que ficar aqui.

Alain pareceu ofendido.

– Você é Argor que sangrou a montanha, salvador de princesas e o único homem que partiu um raio. Teremos sempre o que aprender de você, Paschar. Que outro motivo ela precisaria?

Argor balançou a cabeça.

– Sabe, para um garoto esperto às vezes você é bem tonto. Tudo parece infinito, Alain. Até se tornar só uma memória. E ao contrário do que diz o povo, toda memória carrega em si uma tristeza.

Ele se levantou e foi em direção à Salina.

– Dê um motivo antes que tenha apenas a memória.

Alain ficou sentado, vendo o Paschar orientar Sal. Como era possível que ela fosse tão graciosa em cada gesto? O cabelo liso estava preso atrás das orelhas pontudas, revelando a delicadeza do rosto. O corpo dela parecia ter amadurecido num ritmo silencioso, e agora suas vestes já não o acompanhavam tão bem, como se revelassem mais do que escondessem. Sempre que notava isso, Alain sentia o calor que ela carregava nas chamas se acender também dentro dele.

Quando a fogueira finalmente se equilibrou, Argor reuniu seus alunos.

– Vou fazer um último reconhecimento nas proximidades, quero ter certeza de que estamos seguros.

– Não é melhor irmos com você? – perguntou Alain.

– Vocês ainda não se movem de maneira discreta na floresta.

– Eu me movo! – protestou Sal.

– Você tropeçou hoje mesmo, Sal – apontou Alain. – Talvez seja melhor se você ficar aqui e…

– Tinha um buraco tampado por folhas, não é justo!

– Mas aconteceu umas cinco vezes, eu vi.

– É mentira dele, Paschar! Foram no máximo três…

Argor sibilou e os dois pararam de falar imediatamente.

– Eu disse que vou sozinho – falou, agora mais ríspido.

– Aiê, Paschar – responderam em uníssono.

– Além disso, estou com fome e ainda não sou senil a ponto de deixar Alain cozinhar sozinho.

– Aiê – disseram de novo, embora dessa vez Alain parecesse mais incomodado.

Argor desapareceu entre as árvores e não demorou para que os jovens deixassem de ouvir qualquer indício de sua presença.

Começaram a preparar a comida pouco tempo depois. Alain separava os alimentos próximos à tenda, enquanto Sal organizava as panelas. Acabando antes do companheiro, reparou que ele erguia as bolsas pesadas com facilidade. Antigamente, precisava das duas mãos e de toda força das pernas. Agora, um braço parecia mais do que o suficiente para manipular qualquer coisa no acampamento e, sem se dar conta, perguntou-se se ele também conseguiria segurá-la com apenas um braço, se quisesse. Se ela poderia se soltar se ele decidisse mantê-la por perto. Se ela iria querer se soltar…

Ele voltou com os mantimentos.

– Está tudo bem?

– Por quê?

– Você parece vermelha – respondeu, tocando sua face. E a cor se intensificou.

– Fiquei muito próxima à fogueira – disse, ao se afastar do toque dele. – Pode salgar um pouco a carne enquanto preparo os legumes?

Ele fez que sim.

– O que acha de eu adicionar um pouco de erva vermelha para dar mais sabor?

Ela balançou a cabeça.

– Só salga a carne.

Ele mexeu um pouco mais na bolsa de temperos.

– Temos raiz de gengibre. Acho que daria uma boa mistura.

– Alain, só usa o sal.

O rapaz coçou a cabeça e então retirou um frasco amarelo de dentro da bolsa.

– Você vai achar loucura, mas se a gente botar mel, talvez…

– Tá, Alain. Você olha os vegetais para que não passem do ponto. Eu preparo a carne.

O rapaz resmungou algo e foi cuidar dos vegetais, movendo a colher na panela de metal sobre as chamas azuis.

– Você ficou muito boa nisso.

– No quê?

– Controlar o fogo. Você cauterizou as feridas do Paschar em Anghal, fez chamas verdes que sobrevivem à água e agora cria fogo que devora a fumaça. De uns meses para cá, parece que cresceu muito.

– É?

– É… como uma flor que de repente desabrochou, sabe?

A menina ficou em silêncio.

– A magia é seu perfume e ficou mais forte conforme as pétalas ficaram mais belas.

Ela enrubesceu de novo.

– Obrigada, Alain. Você também ficou melhor em…

O rapaz olhou para ela.

– Em… – Sal gaguejou.

– Sim?

– Montar a barraca mais rápido – disse por fim.

– Ah, sim. Criaturas do mal se preparem, aqui vem Alain, aprendiz de Argor. Aquele capaz de montar uma barraca de acampamento em dois minutos.

Ela sorriu.

– Sua mira também cresceu muito, mas, diferente de mim, que mal podia criar qualquer chama, você sempre foi bom nisso. Agora eu não consigo pensar em nada que você não consiga atingir. Ele sorriu.

Ficaram em silêncio por um tempo, preparando o guisado e Alain percebeu que não queria que aquele momento fosse apenas uma memória.

– Vai voltar para Livft quando terminar o treinamento? – perguntou

.

– Esse sempre foi o plano – disse, sustentando tristeza na voz.

– Você pode ficar. Sempre há o que aprender com Argor, sabe?

Sal não respondeu.

– E quem sabe o que pode acontecer? Há histórias sobre princesas que encontraram a felicidade fora do castelo, sabe? E elas se casam e são felizes com pessoas inesperadas.

– Casar?

– É… algumas até com plebeus… e pessoas de… raça diferente.

Alain aproximou a mão da de Sal, tocando levemente seus dedos. Ela não se afastou.

– Quem… quem sabe? – disse a menina. – Planos mudam – comentou, movendo a mão um pouco mais próxima da de Alain, entrelaçando levemente seus dedos. O fogo na lareira trepidou quando seu coração bateu mais rápido e ela sentiu seu corpo aquecer. Dentro do peito, no rosto, entre suas pernas…

– Eu lembro que uma vez Nina disse que a gente nunca sabe o que o futuro…

A fogueira de repente fez uma pequena explosão e Alain caiu para trás. Quando se recuperou, viu que Salina estava de pé, com a cara fechada.

– Vou procurar mais legumes nos mantimentos – ela disse, seca.

– Sal, o que foi que…

Mas ele não teve tempo de terminar sua pergunta. Argor cruzou as árvores do acampamento e, apressado, requisitou a atenção dos dois.

– O que houve, Paschar? – perguntou Sal.

– Você se machucou? – Alain indagou, apontando para o sangue nas roupas do Paschar.

– O sangue não é meu – respondeu. – Recolham os cantis. Alain, pegue seu estilingue e o que puder carregar de munição. Estamos voltando para a cidade.

– Mas e as outras coisas? Se me der dez minutos posso…

Argor sibilou.

– Eu disse água e estilingue. Não carregaremos peso. Chegaremos à cidade hoje.

– Mas levou três dias para chegar aqui – comentou Sal.

– E vai levar um para voltarmos – disse, com semblante fechado.

Os jovens obedeceram. Mesmo se apressando, fitavam seu Paschar de vez em quando e não podiam deixar de notar sua frustração.

– Paschar, tenho permissão para palestrar? – Alain perguntou, quando voltou com os cantis e seu estilingue.

Argor pareceu incomodado, mas ainda assim deu-lhe a palavra.

– Você nunca perdeu uma luta, Paschar. Eu não sei o que o senhor viu, mas sabemos que você pode derrotá-lo – disse, e Sal anuiu.

Argor parecia cansado.

– Nem tudo encontra seu fim na ponta de uma espada, Alain. Seu Paschar foi descuidado e espero que um dia me perdoem por isso. Não estamos prontos para o que está aqui. Com os artefatos apropriados, talvez. Mas não hoje. Agora, sem mais conversas.

E, dizendo isso, Argor tomou a dianteira. Sal sentia-se tonta. Ouvira canções sobre Argor derrotando um dragão alfa em Khandor. Não conseguia pensar em nada mais perigoso do que isso. Apressou os passos, de repente percebendo como a floresta à frente agora parecia muito mais escura e sinistra.

Um relâmpago cor de rosa cortou o céu e muitos outros se seguiram, clareando a escuridão da noite. Alain olhou para o alto. Não havia nuvens e também não houve o som de trovão. Houve, contudo, uma brisa, que atravessou seu corpo. A sensação de frio deu-lhe um agradável senso de conforto, trazendo cheiros da mata que nunca havia notado. Agora, sentia-os todos e percebia como seria maravilhoso experimentar outros aromas.

Quando estavam perto do limite entre clareira e floresta, Argor parou abruptamente.

– Paschar? – Sal perguntou, quase esbarrando em seu mestre.

Argor ficou em silêncio por um momento. Então virou-se.

– Ajoelhem-se.

Nem Sal ou Alain protestaram. Dobraram o joelho e abaixaram a cabeça. Não encararam seu Paschar, mesmo quando ouviram a enorme espada de Argor ser desembainhada. Sob a luz de mais um raio no céu, Sal pensou sobre como o som da espada era uma bela canção que ela nunca notara e como muitos outros barulhos, como o farfalhar das folhas e o estalar da fogueira traziam-lhe uma agradável sensação que nunca percebera. Mesmo quando a arma de Argor cortou o ar e parou sobre seu ombro, ela sentiu o toque gelado da lâmina acariciar sua pele, provocando-lhe arrepios na espinha.

– Salina de Fryer, filha de Helena e Esthor de Fryer, princesa de Livft e agora mestra das chamas. Você me seguiu por três anos e o seu treinamento chegou ao fim. Te concedo o título de mestre da magia e tenente da ordem dos guardiões.

– Paschar? – ela perguntou, confusa.

Foi a vez de Alain sentir o peso de aço sobre o ombro, compartilhando a mesma sensação que Sal tivera há pouco. No céu, os relâmpagos rosa se multiplicaram, assim como os cheiros e os sons agradáveis. O gosto dos vegetais que preparavam tocou seu paladar através do aroma e por pouco ele não voltou para prová-los.

– Alain derChain, filho de pais cujos nomes se perderam, criado por Alfer derChain, possuidor do coração mais belo que já vi e agora senhor de armas. Você me seguiu por seis anos e o seu treinamento com armas de longo alcance chegou ao fim. Te concedo o título de mestre de combate, recrutador e tenente da ordem dos guardiões.

E, dizendo isso, Argor recitou um pequeno cântico que fez com que o peito de ambos os jovens queimasse. Eles tocaram o lugar, sentindo as marcas de seus títulos forjadas em sua carne.

– O que está acontecendo, Paschar? – Alain perguntou, erguendo os olhos.

– Regozijem-se. O treinamento de vocês terminou. Agora são livres para voltar às suas vidas, formar seus próprios círculos ou seguir comigo. Aceitem o título e levantem-se.

– Mas…

– Aceitem o título e levantem-se – repetiu, impaciente.

– Aiê – ambos disseram, se levantando não como aprendizes, mas como membros efetivos da ordem dos guardiões.

O infinito agora variava entre as estrelas e a luz rosada e o espaço parecia se deformar, indeciso entre um e outro. Da floresta, ouviam-se ruídos. Sons humanos.

– Quando atravessarmos a floresta agora, matem qualquer pessoa pelo caminho, em silêncio. Se um de vocês for pego, vou libertá-los com a minha espada e nos veremos na próxima vida – disse, decidido.

– Pegos pelo quê? Paschar, o que está acontecendo? – Sal perguntou.

– Quero que saibam que tenho muito orgulho de vocês.

– Paschar! – Alain exigiu.

E Argor finalmente cedeu.

– É um Sucubus.

– Oh – Sal disse, perdendo a cor das bochechas.

****

Apesar de se dedicar a estudar demônios nos antigos livros que Argor carregava, Alain pouco sabia sobre Sucubus. Enquanto atravessavam a floresta, não podia deixar de pensar que o mestre exagerava.

Salina não compartilhava a esperança.

Ela sabia que Alain nunca poderia entender, porque não teve aulas formais de filosofia. Muitos mestres anciãos acreditavam que o mundo em que viviam era apenas um espelho que repetia, com imperfeição, conceitos absolutos de outros mundos. Uma incoerência caótica de infinitos valores que existiam em sua própria dimensão. O Sucubus, postulavam, nada mais era do que o raríssimo derramamento de um desses planos na nossa realidade, não como um reflexo imperfeito, mas com a sua própria natureza absoluta. E o conceito que existia nessa outra dimensão era…

Argor sinalizou que parassem. À frente dele, um homem sujo e nu farejava o ar, procurando por algo no céu. Ele deu sinal para que Alain usasse seu estilingue. O jovem puxou o elástico, segurando a bola de aço com firmeza.

Mas antes que soltasse, uma mulher surpreendeu o infeliz do homem e caiu sobre ele com uma selvageria bestial. Alain e Salina olharam com horror a briga, que terminou com severas dentadas da mulher no pescoço do sujeito, até que ele parou de se mexer.

Ela começou a farejar o ar e Argor deu sinal novamente.

No céu, os relâmpagos silenciosos cresceram.

O projétil atravessou o pescoço da mulher e ela caiu em silêncio.

– Cabelos ruivos, miúda e sardas – Sal disse, baixinho. – É uma das meninas que fomos contratados para encontrar… A filha do ferreiro. Qual era o nome dela? Sara? Lara?

– Samara – Alain respondeu. – A filha do ferreiro. Ele nos pediu para que encontrássemos a filha dele, Paschar. E eu…

Sal notou o leve tremor na mão em que o jovem segurava seu estilingue.

– Você obedeceu à minha ordem, Alain. E obedecerá de novo. E de novo.

– Mas…

– A filha do ferreiro se foi há semanas. Nada dela remanesce aqui senão seu corpo.

Sal não tinha tanta certeza assim. Aquela ainda era Samara, mesmo que reduzida a uma única vontade primordial. O Sucubus não controlava mentes, afinal. Apenas oferecia algo além desse mundo. E o que fazia as pessoas se comportarem daquele jeito depois disso… bem, aquilo sempre esteve dentro delas.

– É verdade, Alain – Sal disse, tocando em seu ombro.

– Se não houver mais ninguém por perto, a chance de serem tocados pelo Sucubus novamente aumenta – Argor sussurrou. – Não se esqueçam. Não há volta. Façam o que precisarem fazer.

Quando chegaram ao riacho que cruzaram no dia anterior, foram surpreendidos não por um, mas por seis tocados, que deixaram de se atacar assim que notaram a presença dos três. Correram em direção aos membros da ordem, em um cessar-fogo momentâneo.

Sabem que não fomos tocados, e que a chance do Sucubus nos escolher é maior, Sal pensou, enquanto se preparava para queimar um ser humano pela primeira vez. Não foi preciso. Alain derrubou dois com seu estilingue e Argor se antecipou aos demais. Correu ao encontro deles e sua espada gigante tingiu o riacho de vermelho.

Argor sinalizou para que se apressassem, mas um novo relâmpago ganhou o infinito e segurou sua posição no firmamento. Todos olharam hipnotizados, enquanto o raio se transformava em uma fenda, abrindo forçosamente uma ferida no céu. E da fenda, da ferida da realidade, um feixe de luz rosa se derramou e atingiu Alain, cobrindo-o completamente.

Salina gritou. Sem pensar duas vezes, Argor correu empurrando o aprendiz, tomando seu lugar na luz.

– Corr – tentou dizer, antes de começar a levitar.

Alain e Salina gritaram pelo seu Paschar, mas ele não respondeu. Sal correu para tentar puxá-lo de volta ao chão, mas foi impedida por Alain, segurando-a com força.

– Me solta! – ela gritou.

– Não pode tocar nesse negó…

Ela deixou seu corpo ferver e Alain não conseguiu segurá-la. Quando se soltou, Sal correu o mais rápido que pôde. Podia salvar seu Paschar. Sabia disso. Ainda conseguia alcançá-lo. Estava perto.

Mas Alain caiu novamente sobre ela.

– Mandei me soltar! – gritou novamente.

O chiar da pele dele ardendo se confundiu com o som do riacho. Mas ele a apertou mais forte.

– Eu não vou perder você também, Sal. Vou queimar vivo antes de te soltar – disse, tentando conter a dor.

E, de repente, ela parou.

– Alain? Pelos deuses, desculpa, eu…

Ele anuiu.

– Eu sei. Não passou da pele, não se preocupa.

Olharam novamente para seu Paschar. Agora no alto. Inalcançável. Ouviram suas risadas enquanto jogava suas roupas no chão.

– Temos que ir – ele disse, puxando Sal pelo braço.

Mas assim que pisaram no riacho, notaram o brilho rosa desaparecendo e ouviram algo caindo no chão. Quando se viraram, lá estava ele. Seu Paschar, se erguendo.

Salina, como todas as mulheres que já olharam para Argor, fantasiara sobre o corpo do herói lendário. Vendo-o nu pela primeira vez diante de si, soube que ninguém jamais teria imaginado uma beleza tão real. Via a musculatura definida, coberta por pelos escuros, o membro sedento e vivo e as cicatrizes que gritavam os feitos de suas batalhas. Ela não fantasiava mais com seu Paschar, pois crescera além dessa fase. Contudo, saber que era tão violentamente atraente a enchia com ainda mais orgulho sobre seu mestre. Novas canções surgiriam sobre como o Paschar resistira a um Sucubus.

– Paschar? – ela disse, caminhando em sua direção. Mas Alain continuou segurando seu braço.

Quando Argor alcançou sua espada no chão, ela entendeu o motivo.

O que restou de seu Paschar correu em direção a eles, espada erguida para um abate rápido. Alain disparou com seu estilingue, mas Argor girou sua arma e se protegeu do projétil como se não fosse nada. Antes que Alain pudesse tentar de novo, ele já estava diante dos jovens.

A lâmina de Argor cantou, mas Sal criou uma pequena explosão, lançando ela e Alain em direções opostas e a lâmina de aço encontrou apenas pano. Quando ela olhou para cima, viu Argor novamente. Agora em pé, diante dela. O corpo nu, sedento, violentamente forte, violentamente belo, erguendo a espada uma vez mais. E, mesmo diante da morte, ela não conseguiu deixar de sentir orgulho de seu Paschar.

Mas sangue jorrou do olho de Argor e o vazio tomou o lugar da carne. Argor que sangrou a montanha abaixou sua espada pela última vez e caiu em silêncio, ao lado de sua aprendiz. À distância, ela viu Alain, ajoelhado, ofegante, segurando o estilingue. Estava chorando.

Salina engatinhou até ele, também chorando. Queria dizer que ia ficar tudo bem. Mas o céu se abriu de novo. E com ele, veio a luz rosa

.

O feixe se derramou mais uma vez sobre Alain.

Salina gritou com horror quando o rapaz começou a levitar. Ele podia ouvi-la, mas não entendia a preocupação. Sentia o corpo sendo erguido em direção à fenda e não podia estar mais feliz.

É maravilhoso, quis dizer para ela. Sentia a membrana do Sucubus cobrindo sua pele, e cada pequeno brilho, em cada pequeno poro, era um beijo indizível de uma mãe, de um pai, de um irmão, de um amigo, de uma amante. Pelos deuses, como as roupas atrapalhavam. Decidiu removê-las e a luz abraçou o resto de sua pele e cobriu seu membro com mais força e penetrou seu corpo dando-lhe prazer que achava que apenas as mulheres podiam sentir e sussurrou palavras gentis no seu ouvido e absorveu a sua essência quando ele explodiu e convidou-o a fazer de novo, para sempre e ele disse que sim.

No chão, as árvores em volta do riacho ardiam em chamas enquanto Sal direcionava tudo o que tinha contra o feixe de luz. Os tocados que se aproximaram tiveram o mesmo destino da mata. Ela não ligava, desde que conseguisse salvar Alain.

Mas não conseguia.

O Sucubus era uma ideia. O conceito de prazer verdadeiro na sua mais pura forma. O feixe de luz ignorava suas chamas como se não estivessem ali. A perfeição não podia ser manchada.

Mas e o céu?

Não era parte de suas habilidades cauterizar machucados em homens? E o que era aquela fenda, senão uma ferida no espaço?

Lançou suas chamas ao céu. Descobriu que havia algo na borda do corte, uma imperfeição da realidade que podia moldar. E assim o fez, mesmo quando se sentiu fraca, mesmo quando seu nariz sangrou, mesmo quando seu coração ardeu. Sal gritou, moldando o céu e fechando a passagem na realidade.

Tentou correr para Alain, quando ele caiu no chão. Mas estava fraca. Não podia fazer mais do que caminhar. O amigo se ergueu, como o mestre se erguera. Estava nu e sedento, como o mestre estava. E pegou sua arma, como o mestre havia feito. Ele olhou para Sal, que ainda caminhava e procurou um de seus projéteis no chão.

Mas Sal continuou andando, mesmo quando ele puxou o elástico.

– Eu não vou perder você também. Se for fazer isso, Alain, por favor, atira aqui – ela disse, queimando o que restava da blusa e apontando para o coração.

Ele a fitou por um instante, enquanto ela ainda caminhava. Por quanto tempo quis vê-la daquele jeito? Os seios expostos, se entregando, pedindo que atingisse seu coração, como ela atingira o dele? Estava confuso.

Sal mesmo não sabia o que estava fazendo. Talvez fosse por ser sua última chance de estar com ele; Talvez fossem os resquícios da influência do Sucubus, alimentando seus desejos e suas sensações, mas ela caiu sobre Alain, sua língua explorando a boca do rapaz. Sentiu o membro dele ainda vivo, contra sua barriga, e queimou o que restava das próprias calças.

– Seu idiota – disse. – Você quis me trocar por uma druida e agora quer me trocar por um conceito?

Ele a apertou quando se tornaram um. Seu corpo abandonou, aos poucos, a sensação do prazer perfeito e abraçou algo diferente. Algo pior. Algo melhor. E, ali, no resto da noite, Sal e Alain se amaram como queriam há muito tempo.

Acordaram no dia seguinte, ao mesmo tempo. Ainda abraçados. Sal se afastou, com medo de que ele tentasse algo de novo, mas havia paz nos olhos dele. E admiração. Alain se aproximou e a beijou. Ela retribuiu. Tocavam a testa um no outro quando ela perguntou:

– Como?

Ele não tinha certeza.

– Eu lembro de quando fui coberto pelo Sucubus. O que eu senti, Sal… o prazer… – cobriu o rosto, tentando esconder as lágrimas – é indescritível.

Ela abaixou a cabeça.

– Mas quando você me beijou, eu senti outra coisa. Algo mais forte. Imperfeito, sim, mas mais forte. E eu trocaria aquele toque mil vezes mais para poder sentir isso com você.

– O quê? – ela perguntou.

Ele parecia encabulado.

– Amor, eu acho.

Ela corou. Então, se levantou, ainda nua e maravilhosa, como Alain se lembrava.

– Precisamos enterrar o Paschar – disse, resoluta.

– Aiê – ele concordou, suspirando. – E depois?

– Não importa, se você estiver no meu círculo.

– Aiê – ele disse, uma vez mais.

7 comentários em “Sob o céu cor-de-rosa – Conto (Leandro Barreiros)

  1. Pedro Paulo
    18 de dezembro de 2025
    Avatar de Pedro Paulo

    Em forma e gênero, tudo de bom. Excelente conto fantástico para o nosso acervo. Escrever em fantasia já desafia e em conto eu acho ainda mais difícil, pois requer a apresentação mínima de um mundo com uma própria lógica interior a esse universo. Aqui, o cuidado narrativo faz com que se apresente o suficiente sem ficar expositivo ou excessivo. O texto poderia ficar poluído pelo didatismo, mas todas as informações são relevantes e transmitidas organicamente por meio de seus personagens e suas relações. Aliás, os protagonistas equivalem a arquétipos que são muito bem executados neste texto, com os personagens sendo mais do que apenas suas funções textuais. São os dois jovens, Sal e Alain, que mais cativam pela verossimilhança do amor púbere que, catarticamente, finaliza consumado. Todas as descrições são vívidas, no que destaco a caracterização do súcubus, que impõe um antagonismo apavorante no conto.

    Eu leria mais disso, hein, Leandro? Quero saber o futuro deles dois.

    • leandrobarreiros
      18 de dezembro de 2025
      Avatar de leandrobarreiros

      Obrigado, Pedro. Você, como sempre, muito gentil.

      Tenho arriscado um pouco no gênero de fantasia. Também acabei gostando dos personagens. Talvez consiga explorar um pouco mais depois.

      Estou com outras histórias na cabeça, em outros mundos, com algumas cenas rascunhadas. Espero ano que vem conseguir explorar isso em um formato mais longo. Acho que um romance ainda não rola, mas talvez uma novela.

  2. Kelly Hatanaka
    28 de outubro de 2025
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Um conto de fantasia muito bem conduzido. A ambientação é ótima e vai se revelando aos poucos. O entendimento daquele mundo se dá de forma natural e orgânica.

    Os personagens são carismáticos e cheios de personalidade. Há uma química entre Sal e Alain desde o primeiro momento.

    É um conto longo, mas não parece. A leitura flui que é uma beleza. Leria fácil mais cem páginas assim.

    • leandrobarreiros
      31 de outubro de 2025
      Avatar de leandrobarreiros

      Mas seria Sabrinesco? 😡

      • Kelly Hatanaka
        31 de outubro de 2025
        Avatar de Kelly Hatanaka

        Acho que sim! Há um clima romântico entre os dois. Seria um “friend to lovers”, acho.

  3. marco.saraiva
    14 de outubro de 2025
    Avatar de marco.saraiva

    Cara! Muito bom! Muito raro encontrar contos de fantasia assim por aqui no EC, e sao sempre muito bem-vindos, ainda mais textos assim tao soltos e corajosos!

    Algo me diz que voce escreveu isso para o desafio de Sabrinesco mas ficou com palavras demais, certo? rs rs rs

    Gostei da leitura. Tem um tom e um ritmo de “anime”, com algumas cenas e dialogos lembrando muito a midia japonesa. A dinamica inteira do trio me lembrou o anime “Frieren”, especialmente a relacao entre Alain e Salina lembrando a dinamica entre Stark e Fern. Eu tenho me cansado de ver elfos e anoes em historias fantasticas mas, bem ou mal, nao vejo motivo para nao usa-los caso o autor queira.

    Em pouco tempo voce trabalhou a relacao entre Alain e Salina, e tambem a presenca de Argor como o mestre dos dois, mantendo uma excelente qualidade no tom e no fluxo da narrativa!

    A sua abordagem do Sucubo tambem eh incrivel, bem inovadora, nunca vi uma abordagem parecida. Ao inves de um demonio sedento por sexo, o sucubo eh um conceito terrivel que domina as pessoas que toca. Quase uma doenca. Muito interessante.

    O conto tem as suas imperfeicoes, eh claro. Acho que houve uma certa pressa em alguns trechos, o texto pedia um pouco mais de espaco, mais emocao em certas descricoes. Algumas coisas estao um pouco “inglesadas” demais, tipo o “Aiê” que eles usam meio que no lugar do “Aye” ingles, e termos do tipo “A sua mira tambem cresceu muito”, que soa quase errado quando trazido para o portugues (por que nao “melhorou” ao inves de “cresceu”?)

    Mas, ainda assim, gostei muito da leitura, da ambientacao, da criacao deste mundo, dos personagens, e tudo! Parabens!

    • leandrobarreiros
      14 de outubro de 2025
      Avatar de leandrobarreiros

      Valeu, Marco!

      Sim, esse foi o primeiro conto que terminei pro desafio, mas depois de passar a moto serra ainda sobraram umas 4 mil palavras.

      O engraçado é que eu acho que também não seria visto como dentro do tema kkk

      Não conheço esse anime, vou dar uma olhada depois. Essas raças que já são meio estabelecidas acabam facilitando um pouco na percepção do leitor do mundo sob a história, o que ajuda muito com esse limite de palavras do desafio.

      Eu fiquei com medo da resolução final estar muito abrupta, mas mexi aqui e ali e acabei achando que estava perdendo no ritmo, então deixei como está;

      Sobre a Sucubo, faz bastante tempo que eu queria usar uma ideia de um conceito do mundo platônico como antagonista. Bastante mesmo. Desde que comecei a escrever, lá vão vinte anos, mas nunca consegui projetar nada concreto. Aqui, finalmente saiu. Por isso que gosto muito do entrecontos; não fosse o desafio, eu não teria escrito essa história.

      Muito interessante o apontamento do encaixe ruim em pt. A maior parte do que eu consumo atualmente é em inglês. Acho que está vazando para a escrita. Vou tomar cuidado com isso.

      Muito obrigado pela leitura e feedback!!

E Então? O que achou?

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Publicado às 5 de outubro de 2025 por em Contos Off-Desafio e marcado .