EntreContos

Detox Literário.

As Sombras Mais Escuras – Conto (Angelo Rodrigues)

Após chegar de viagem, paguei algumas contas que corriam em atraso e fui visitar Vittorio e Rosalie no apartamento de Laranjeiras. Tia Leah e tia Sarina, irmãs de mamãe, também estariam por lá. Eram visitas de ano inteiro, do que lhes restava de suas vidas desafortunadas, quando nada lhes foi legado em herança pelos maridos que se foram, falidos no mesmo negócio, apanhados pela vergonha que os levou quando ambos se penduraram num caibro da loja que tinham.

Pouco ou nada se falava sobre esse revés, agora protegidas sob o teto em que agoniavam meus pais.

Tia Leah e tia Sarina ocupavam quartos em Laranjeiras. Ficaram um dia, depois outro, uma semana, e um ano passou com rapidez. Andavam por lá havia um pouco mais de dois anos. Não era ruim tê-las com Vittorio e Rosalie, pois, em horas de agonia, mostravam-se boas e fiéis companheiras aos dissabores de meus pais, que eram tão grandes quantos os delas.

Acompanhar as dores de alguém não é diferente de compartilhar felicidades. Não há dores perpétuas quando se sabe da morte que a tudo põe um fim; assim como não há felicidade que se mostre eterna, deixando que reste entre uma coisa e a outra a perpétua luta entre o riso, que sempre se mostra pouco, e a tristeza, que existe de sobra.

Tia Leah havia transformado suas amenidades em retórica, pois, para toda alegria que percebesse, encontrava de imediato uma palavra, um trecho que retirava das Escrituras para deprimir e atemorizar a felicidade de quem a ouvisse. Dona de uma memória prodigiosa, sempre tinha consigo um aforismo que ferisse a alma. Saber que tia Leah estaria em Laranjeiras me esperando era a certeza de ouvir seus inúteis bons conselhos de sempre.

Por todo o tempo em que os visitei, tia Leah disse que eu deveria retornar à religião, que voltasse a frequentar a sinagoga, e foi feroz quando ao advertir que me faltavam boas leituras. Não falava de Dostoievski, Flaubert, Shakespeare, Machado de Assis, pois tudo que um dia fora dito por estes, já estaria tudo em maior profundidade nas páginas do Pentateuco.

O lado bom de ouvir tia Leah com o espírito prevenido era saber que ela não necessitava dos ouvidos daqueles a quem julgasse merecer as suas boas palavras. Ela falava e falava e falava, e tudo o que dizia tinha origem numa mesma e infalível receita para qualquer mal que afligisse quem merecesse a grandeza das Escrituras.

Nela nunca haveria uma palavra que alegrasse seu ouvinte, uma vez que a alegria estaria sempre associada ao prazer vulgar. Foi firme quando imaginou que eu estivesse feliz ficando longe de meus pais, rápida ao me dizer que O coração dos sábios está na casa do luto, mas o dos insensatos, na casa da alegria. Imaginei dizer a ela que A opressão faz endoidecer até o sábio, mas não, nada disse. Jamais seria vitorioso numa discussão com tia Leah quando o assunto fosse o Testamento.

Tia Sarina, ao contrário, ficava feliz que eu fosse até lá para vê-los. Gostava de abraçar e beijar, de saber como andava a minha vida e o que eu fazia dela, o que escrevia, se havia uma nova mulher nos meus dias. Logo ficava satisfeita e corria até a cozinha para preparar alguma de suas receias mais doces, que logo me oferecia.

Mamãe, objetiva como sempre, insistia em que eu retornasse à universidade, concluísse o curso de Direito, estudasse para a Ordem e iniciasse uma próspera carreira como advogado, ou entrasse para a Diplomacia como Vittorio havia feito na juventude.

Toda vez que voltava a encontrar meus pais, era como sentir que sobre mim desabavam as terras de uma avalanche. Acolhido pelo calor úmido e quente dos escombros, eu deveria permanecer quieto e agradecido, ouvindo as vozes que me tirariam do centro da tragédia em que vivia.

Ouvir aquelas mesmas receitas que sempre se repetiam, me fazia imaginar que mães são iguais, e querem os filhos todos semelhantes, sob um singular ideal, transparente, próspero financeiramente e distante de qualquer problema.

Papai, um agnóstico convertido ao judaísmo havia alguns tantos anos, parecia incansável em pronunciar intermináveis sussurros, indiferente a quem chegava ou saía do apartamento, ao que lhe diziam ou cobravam dele uma resposta, mantendo-se fiel às rezas, se eram rezas o que dizia, pois tudo o que falava sempre me pareceu uma interminável lamúria.

Com seu quipá sobre a cabeça, por todo o tempo em que passei com eles, Vittorio ficou balançando o corpo a um canto, lendo e falando de forma ininterrupta numa língua ininteligível para mim, que de tanto ouvi-la já não sabia se aquilo era um derrame incontinente de palavras ou o perpétuo murmúrio de um rio nascido em sua boca.

Alheio a tudo, acredito que desejasse definhar sem as culpas de o fazer, então se ensurdecia com a profusão hospitaleira de sua voz sussurrada ao próprio ouvido.

Vittorio ignorava que não esquecemos aquilo que queremos distante de nós, mas o que nos é fugidio, como são os bons momentos da vida, porque os maus, que são sempre muitos, empacam como mulas em nossa cabeça, e ficam por lá, girando em loucas espirais, sempre circulando como ventos selvagens.

A prisão e a tortura durante a ditadura militar, seu desterro da Diplomacia, eram os horrores que permaneciam vivos em meu pai, e, depois de tantos anos, ainda indeléveis. Então ele pensava, rezava, e se punha como aquele que imaginou transformar a pedra em pão, a água em vinho, e falhava como todos costumam falhar, e nele nunca haveria o destino de iludir-se ou iludir a alguém com tais imponderáveis transformações.

Não entres na vereda dos perversos — disse-me quando o cumprimentei —, nem sigas pelo caminho dos maus. Evita-o; não passes por ele; desvia-te dele e passa ao largo; pois não dormem, se não fizerem mal, e foge deles o sono, se não fizerem tropeçar alguém; porque comem o pão da impiedade e bebem o vinho das violências.

Sorri enquanto o abraçava. Já lhe deixara o corpo aquele cheiro bom de tabaco que inundou a minha infância, substituído pelo odor químico que têm certos remédios, e se exalam dos poros dos que ficaram enfermos.

Guardava em si uma memória prodigiosa, agora transformada numa triste máquina sectária, citando, como fazia tia Leah, longos trechos das Escrituras. Vivos ainda em sua mente, aqueles algozes dos dias de prisão. Todos estavam lá, perpetuamente por ele redivivos, causando em sua alma o mesmo dano de há alguns anos.

Sentia-me ligado a pais e tias, como se fosse responsável por todos, por seus desacertos. Sabia que era inútil pensar assim, pois a vida que nos acontece tem as suas particulares veemências, e revelá-las em hora errada pode mostrar suas mais fundas fragilidades.

Há marcos em cada um, e a derrota de papai frente àqueles que o levaram a um humilhante desterro de sua profissão e posterior prisão, jogou-os a todos nos braços de uma religião, em absurdos excessos, submissos inteiramente ao que dela desejavam obter, de sorte ou de azar, ao tempo em que a vida lhes exigia menos de esperanças e mais de ações de controle acerca de seus destinos.

Sabia que estar ali, junto deles, não poderia ser o acerto de contas com algo que os acolhia, confortava e os ajudava a enlouquecer com uma estranha dignidade. Eu não tinha um braço e nele não havia a mão que lhes pudesse estender fazendo-os retornar à lucidez, à vida, à alegria por estarem vivos e juntos daqueles que amavam.

Fiquei todo o tempo sentado numa poltrona escura, marcada por sombras antigas, querendo não saber de tudo aquilo, talvez sequer ter ido até eles, vendo-os como fazia naquele momento.

Aquele apartamento tinha o peso imenso da mais dura melancolia e o dom de me torcer a alma. Era uma casa tomada, sujeita ao cerco silencioso de móveis escuros, tocos de velas em castiças vestidos do verde do azinhavre, cercado por bibelôs que já não ornavam, não eram vistos, e ali permaneciam como se abandonados, fragmentos de histórias, observados por inúmeros pequenos retratos de homens de barbas brancas e longas ao lado de mulheres de véus e roupas fechadas até o pescoço, cujo único desejo era o de tirar o ar e a vida.

Desejei ir embora, tinha urgências até então insabidas por mim. Compartilhava com aqueles retratos o mesmo ar viciado, o peso acumulado por anos vividos naquela sala.

— Acho que já vou indo — disse sem me dar conta de que havia acabado de chegar.

— Mas você nem chegou, Samuel… — disse tia Sarina.

Voltei a me aquietar e permaneci sentado onde estava. Restava-me aceitar sem esperança o progresso das horas.

 

Luzes opacas da sala nos tingiam de uma cor crepuscular, triste, uma luz de âmbar que nos fora fiel por toda a vida, dizendo-nos que a felicidade sempre fora algo abstrato, guardando lembranças que não deveriam nos pertencer, ligando-nos uns aos outros e lentamente sufocando cada um de nós.

Estava ali mais uma vez para dar e receber afeto, e novamente percebia que tudo que via e ouvia eram muros sobre os quais eu deveria saltar, cercado por pedras, unido a valores antigos que olhados mais de perto só faziam aumentar as distancias que nos separavam.

Em meio a tantos desacertos, salvaram-me os rugelach açucarados e os deliciosos challah trazidos por tia Sarina, mais querendo dizer de afetos do que edificar com imponderáveis soluções do Pentateuco.

Ela me sorriu, displicente, segurando uma bandeja de prata cujo desgaste pelo uso deixava emergir o cobre subterrâneo de que fora feita, e me ofereceu aquelas delícias dizendo que eu deveria pegar todos que conseguisse comer.

Um mar, um céu, o doce mundo em que vivia tia Sarina.

Eram aqueles os momentos em que a vida à nossa volta parecia se resumir a isso, a docinhos deliciosos, que às vezes, por conta de um descuido da mão ou da vista que já não era tão boa tinham gosto ou cheiravam a baharat, zatar ou noz-moscada.

Era quando eu gostava mais de tia Sarina do que de tia Leah, que era ranzinza e resumia o mundo ao que conseguia tirar da religião, ao passo que tia Sarina vivia de forma simples e doce, plácida, e nunca falava de sabedorias e de leituras edificantes, indiferente e alheia, menos aos livros de Isaac Bashevis Singer, que estava sempre a ler quando não estava tornando o nosso mundo um pouco mais agradável.

No meio de tantos males sempre haverá aquele que não sendo exatamente um bem, nos conforta quando a ruína é grande, e era naqueles momentos que tudo à nossa volta, pelas mãos de tia Sarina, parecia se resumir a isso, a docinhos, que eram a síntese dos seus afetos.

 

Rosalie não estava bem. Nenhum de nós andava bem com o que lhes acontecia. Papai havia se tornado um homem pequeno, inerme, e tanta era a sua fraqueza moral, que se fosse de sua vontade jamais se moveria em direção a alguma forma de libertação, e com tamanha melancolia, arrastava mamãe à borda mais funda de um abismo, e ela o acompanhava, resignada como fora por tantos anos.

Quando já deixava o apartamento de Laranjeiras, tia Sarina me entregou um Tupperware cheio de Hamantaschen. Agradecido, pus dentro da minha mochila para levar comigo. Quando já estava à porta para retornar a Copacabana, Vittorio me alertou de onde estava, do fundo da sala, com sua voz de pífaro, como se me avisasse de um perigo que súbito passou a dominá-lo:

Não declines nem para a direita nem para a esquerda; retira teu pé do mal.

Sorri enquanto balançava a mão espalmada para cumprimentá-lo. Algo involuntário em mim impedia que eu me movesse para tocar sua mão, abraçar seu corpo sentindo o cheiro da minha infância. Repugnava-me o odor químico que Vittorio exalava. Deixei-o onde estava e tomei o caminho de casa.

A única ideia lúcia que conseguia ter naqueles momentos era a de que jamais teria forças para voltar a vê-los. Nenhuma punição seria maior que voltar a estar com eles — o confronto entre ideias que já não conversam, sentimentos derrotados que ainda insistem: eu lutava contra sentimentos tão precocemente derrotados, insistia e continuava, ao passo que eles abraçavam suas dificuldades como se as amassem, e aquilo me parecia estranho além do que eu poderia suportar.

8 comentários em “As Sombras Mais Escuras – Conto (Angelo Rodrigues)

  1. Pedro Paulo
    3 de dezembro de 2025
    Avatar de Pedro Paulo

    Este seu me passou uma certa claustrofobia, Ângelo. Também interagi com ele num patamar pessoal. Desde que deixei a minha casa de criação, minhas passagens por lá são esporádicas e pontuais, que parece ser a medida em que são prazerosas. Prolongar-se sempre aborrece, confirmo estar mais e mais deslocado naquele contexto que de muitas formas de altera e se mantém da mesma maneira. Foi o que senti com o personagem de Samuel. Uma boa parte do conto é um retrato fascinante de uma família cujas particularidades se sobressaem sem necessariamente deixá-la peculiar. É como tantas outras famílias, um agrupamento imprevisível de pessoas com origens similares e temperamentos distintos a que o narrador, mais do que ninguém, sente dificuldade de pertencer. É sobretudo a verossimilhança desse retrato familiar, que cruza raízes judaicas com decadência econômica e política, traumas da ditadura, o que eleva o conto. Não os acontecimentos. O protagonista chega e sai. Não acha que tolerará mais daquilo, mas quem lê tem a impressão de que depois daquela última linha a primeira poderia continuar o conto com todas as linhas e parágrafos seguintes, em ciclo.

    • Angelo Rodrigues
      11 de dezembro de 2025
      Avatar de Angelo Rodrigues

      Olá, Pedro Paulo,Muito obrigado pela leitura e pelo comentário tão atento.

      Engraçado: esse conto costuma provocar em muita gente a mesma sensação que você descreveu. Talvez porque ele não nasceu como um texto isolado. Ele é, na verdade, o capítulo final de um romance em que o Samuel — esse meu rapaz meio perdido, meio curioso — atravessa o mundo, tenta ser alguém “lá fora” e, no fim, acaba voltando. Não exatamente para o lar de origem, mas para um lugar próximo o bastante para reconhecer o cheiro de casa.

      O romance inteiro é um percurso de formação. Samuel passa por Diamante, essa cidade fictícia do interior do Rio de Janeiro onde tudo começa; depois encara Nova York como quem busca ferramentas para se tornar algo “na vida”; e, por fim, retorna ao Rio, deixando para trás todos esses projetos que um dia acreditou que o definiriam. É um jovem à procura de um canto que possa chamar de seu.

      O curioso — ao menos para mim — é que, tentando criar um personagem singular, acabei tropeçando num arquétipo que todos nós conhecemos bem: o do filho. Somos (ou fomos) todos filhos de alguém, e nunca deixamos realmente de ser. Ser filho é carregar uma herança involuntária — gostemos disso ou não. Esse é o drama silencioso do Samuel: ele ainda não entende que aquilo que herdamos não se troca, não se vende, não se abandona. A gente simplesmente leva junto. E, ao mesmo tempo, herdar não significa ser reduzido à herança. É aí que ele tropeça.

      Talvez por isso ele desperte esse misto de identificação e estranhamento: qualquer leitor, não importa de que família venha, reconhece um pouco desse “filho” dentro de si.

      Como mencionei, o romance é composto por contos que se encaixam, cada qual com início e fim arredondados para que a leitura flua como um romance contínuo. Cada conto é uma experiência, e cada experiência molda o Samuel de um jeito novo.

      Enfim, já falei demais.Grande abraço pra você, Pedro Paulo. E, mais uma vez, obrigado pela leitura generosa e pelo comentário.

      Isso faz diferença.

  2. Gustavo Araujo
    9 de outubro de 2025
    Avatar de Gustavo Araujo

    De todos os contos seus que já li, Angelo, este talvez seja o mais complexo, o que detém mais camadas (para usar a expressão da moda). Chego a pensar que existe algo de pessoal aí — se você não é Samuel em alguns pontos, talvez esteja falando de alguém como ele, alguém que você conhece intimamente. Bem, a escrita bebe nessas fontes de intimidade, né? Pelo menos a boa escrita, como acontece aqui, o faz.

    Chega de divagações, rs

    Testemunhar a agonia de Samuel, que se vê compelido a cumprir o que entende como dever, é como olhar no espelho. Acredito que muitos de nós (eu, pelo menos) já passamos por situações semelhantes, em que temos que ir à casa daquele parente chato ou cheio de manias, muitas vezes dotado daquele ar professoral, por vezes religioso, enervante, simplesmente porque é a coisa certa a fazer. Nesse aspecto, como disse, a identificação com o seu protagonista é imediata.

    No entanto, algo me incomoda. Samuel é alguém jovem ou, senão tão jovem, alguém que ainda tem muito tempo pela frente. Por isso é fácil a identificação com ele. Mas, a partir de certo ponto, no médio prazo, dá para pensar que talvez minha identificação não devesse ser com Samuel, mas com seu pai, sua mãe, alguma de suas tias… Talvez, num futuro não tão distante, serei eu a despejar minhas verdades em meus filhos e sobrinhos, querendo passar a eles minhas lições de vida, cobrando deles as leituras dos mesmos livros que eu li, que eles passem pelas mesmas experiências que eu passei…

    Acho que o conto é bom justamente por isso, por servir como uma espécie de espelho multifacetado, ora devolvendo como reflexo alguém capaz de criticar soberanamente o mundo e as pessoas a sua volta, ora alguém que já se encontra na borda da existência, ansioso por dar sentido à vida repassando ensinamentos que não importam a ninguém.

    Lembro que quando li a biografia de Einstein, escrita pelo Walter Isaacson, o famoso físico recorda a certa altura, quando já se aproxima da velhice, que quando jovem ele era o rebelde, o contestador, características que o ajudariam a formular as Teorias da Relatividade; depois, já no terço final da vida, lamentava ter-se tornado como os que combatia, chato, conservador, descrente que estava da teoria quântica, de Heisenberg e Schrodinger.

    Enfim, somos Samuel, mas, se pararmos para pensar, não tardará para sermos Vittorios, Leahs e Sarinas — se é que já não somos.

    • Angelo Rodrigues
      15 de outubro de 2025
      Avatar de Angelo Rodrigues

      Olá, Gustavo,
      Desculpe responder só agora, com tanto atraso. Confesso: estava tão envolvido com Samuel que mal fui às redes sociais.

      Obrigado pelos comentários. São gestos muito gentis de alguém que vem se mantendo firme, há tanto tempo, na condução desse oásis que é o EntreContos. As gentilezas, sem fim, cabem de nós a você.

      Ao conto:
      Como disse abaixo, Samuel existe. Bem, não em carne e osso: é uma colagem. Creio que a literatura seja isso — colagem.

      Há anos, cometi um ato irresponsável comigo mesmo: criei uma cidade e, aos poucos, fui preenchendo cada pedaço dela com vida — famílias, empresas, crimes, pequenas felicidades, grandes tragédias…

      Por decorrência dessa irresponsabilidade, fui criando contos, novelas e romances. Não há novidade nisso: Juan Carlos Onetti criou Santa María; William Faulkner criou uma ainda mais complexa, Yoknapatawpha County (iok-na-pa-tó-fa) — nome difícil de guardar. Eu criei — humilde — Diamante.

      A família de Samuel vem de lá, de Diamante. Com toda a dificuldade do mundo, Vittorio — que trago neste conto — entrou para a Diplomacia. Cristão, casou-se com Rosalie e converteu-se ao judaísmo, tornando-se um ger. Vieram morar aqui perto, em Laranjeiras. Foi pego pela “Redentora” e pagou um preço que não devia. Morreu em 1978, esquecido — salvo pelo obituário escrito por Samuel, na contracapa de um livro de capa de couro:

      Obituário de Vittorio Serran
      12 de setembro de 1978
      (por seu filho, Samuel)
      Faleceu em Laranjeiras, aos 62 anos, Vittorio Serran, diplomata cassado, preso e torturado pela Ditadura Militar.
      O papel timbrado cheirava a mofo e a carimbo torto: o País assinava com a mão suja.
      Desde 1968, a carreira foi arrancada com papeladas e carimbos; a saúde, com ferros e porões. Buscou nas Escrituras a ordem que o País lhe negou — não encontrou.
      Deixa esposa e filhos e um processo sem sentença: o nosso.
      Não houve justiça. Não houve pedido de perdão. O Brasil continua a fingir que não o matou.
      Que descanse, se houver lugar para quem foi mantido acordado por dez anos.

      Esta semana terminei um romance em que Samuel é o protagonista. É jornalista — não entrou nem para a Diplomacia nem para o Direito — e trabalha no jornal Correio, no Centro do Rio. Vive, na história, o drama do que se tornou. Seu desejo é tornar-se escritor de verdade — e consegue, ao menos no texto. Dei a esse romance o nome Um desejo todo seu — tanto ao dele quanto ao meu.

      Bem, de novo: tudo nele — em Samuel e no romance de que é protagonista — é colagem.
      E… interessante: não seríamos todos colagens?

      Retornando: sim, acho que sou Samuel em colagens — assim como Vittorio, Rosalie, Sarina e Leah o são, dentro e fora de mim. Da minha família, pedaços; da família de amigos, outros pedaços; da imaginação, o que resta.

      Isso reforça a ideia — ao menos em mim — de que, no fundo, somos colagens do que nos envolve. E isso é bom. Quem não se deixa colar fica pequeno; não tem a cola que agrega pedaços.

      Verdade: somos Samuel, como você disse. Grande abraço e, mais uma vez, muito obrigado por dividir conosco o seu sonho na literatura.

  3. Thiago Amaral
    2 de outubro de 2025
    Avatar de Thiago Amaral

    Um conto que é mais um quadro, como os da imagem, focado em alguns dos membros da família, e suas sombras, suas imperfeições.

    Muito efetivo ao bater naquela tecla que creio muita gente experimentar na vida, aquela mistura de dever, de necessidade, de costume, de vontade até, em conviver com familiares ou pessoas do passado que simplesmente carregam um pesso tão grande que te fazem carregar também.

    Nosso protagonista Samuel está farto, e a história soa mais como um desabafo e uma descrição dos familiares.

    Parece não ter sido a intenção, mas a tia Sarina me chamou mais atenção, pelo contraste e por talvez guardar mais sombras por trás da luz em excesso. Talvez porque eu tenha convivido com pessoas que tinham algo disso…

    Fun fact: li também esse conto, assim como o do Borges, pra minha esposa, e ela pediu pra falar que gostou bastante da metáfora da avalanche. Também gostei, e digo que é muito representativa desse tipo de situação e do que se espera numa relação de pais, filhos, tios, etc. Infelizmente, no entanto, as pessoas estão normalmente muito em volta de seus mecanismos de defesa para mudar.

    • Angelo Rodrigues
      3 de outubro de 2025
      Avatar de Angelo Rodrigues

      Olá, Thiago,

      Obrigado pela leitura e pelo comentário.

      É isso: família. Todos temos – ou quase. Melhor encarar o fato.

      A rigor, família é como entrar numa festa em que você não escolheu estar – ela acontece em torno de você.

      Bem, sendo assim, se divirta enquanto for possível. Se não puder, pegue suas coisas e dê o fora na hora que parecer justa.

      E conto é isso, você vai escrevendo, escrevendo e, ao mesmo tempo, pondo tudo na pele de outro o que é pele sua – ou não.

      Nosso protagonista – por acaso – quase existe.

      Gente boa que, talvez, não saiba que arrasta correntes que nunca estiveram em suas canelas, mas em canelas alheias.

      A vida segue, e aceitando que seja ela – a vida – um rio que nos leva a todos em direção ao mar, melhor entender que só há duas margens. Escolha um lado e veja a água passar. Às vezes clara e calma, às vezes turva e caudalosa. Mas sempre um rio. Apenas um rio.

      Se divirta, então. Seja em que margem estiver.

      Acho que nosso Samuel não escolheu a margem, mas a água.

      Grande abraço e, novamente, obrigado pela leitura e comentário.

  4. Kelly Hatanaka
    30 de setembro de 2025
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Relações familiares desgastadas pelo tempo. Ou melhor talvez seja dizer que são relações com familiares, estes sim, desgastados pelo tempo. O conto fala desse tipo de relação em que os afetos não têm poder para mudar nada. E, quem sabe, não seja sempre assim mesmo. O único papel que nos cabe, por vezes, é observar as dores de quem amamos, sem que nada possa ser feito.

    Há reveses na vida de cada um. Mas será que somente os reveses explicam ou justificam o que parece ser um sucumbir à dor? De toda forma, há sempre uma tia Sarina e mesmo ela, sofre. Sofre, em meio às suas caldas açucaradas e seus quitudes cheios de memórias.

    Um conto excelente que diz muita coisa em suas poucas linhas, coisas com as quais é tão facil de se identificar, mesmo que sua família seja completamente diferente da de Samuel.

    • Angelo Rodrigues
      30 de setembro de 2025
      Avatar de Angelo Rodrigues

      Olá, Kelly,

      Muito obrigado pela leitura e pelo comentário.

      Acho que você foi no ponto exato: famílias são cacos de espelho — refletem múltiplos lugares.

      Tolstói, que de certa forma me possibilitou este texto, já na primeira linha de Anna Kariênina, diz que “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.”

      Imaginei uma família sob o eixo fundado em culpa e controle. Cada personagem da trama encontrou para si uma solução parcial — nenhuma delas satisfatória, todas elas capaz de apaziguar, ainda que de forma temporária.

      A ideia central é a de que uma família pode se curar pela doçura e, ao mesmo tempo, punir pelo fel da lei — tanto religiosa quando social –, e tudo ao mesmo tempo.

      Samuel, que parece ser capaz de entender claramente o que lhes ocorre, já foi fisgado por todas as tramas familiares a que sempre esteve sujeito: não quer ser mais um bibelô, um quadro na parede, um castiçal com meia vela queimada. Ainda assim, sujeito às dores de sua redenção.

      Samuel experimenta toda essa singularidade familiar — a infelicidade à sua maneira –, e foi isso que me fez escrever a sua história.

      Valeu, Kelly e, mais uma vez, obrigado pela leitura e comentário.

E Então? O que achou?

Informação

Publicado às 28 de setembro de 2025 por em Contos Off-Desafio e marcado .