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Detox Literário.

Para Elisa – Conto (Alexandre Parisi)

Elisa tinha uma predileção: brincar de se esconder. Certa vez, papai construiu para ela um esconderijo com as almofadas do sofá. Elisa adorou. Entrou lá e não queria saber de sair. Ficava rindo a valer, os dedos na boca e o cabelo espalhado. Era o seu pedaço de mundo, onde ninguém, a não ser ela, era admitido.

Um dia, papai estava lendo o jornal quando percebeu Elisa entrando em seu local secreto.

“Um dia vou descobrir por que você gosta tanto dessa sua cabana, minha filha”, disse ele, aproximando-se espiar dentro do esconderijo. Ela, normalmente, ao ser surpreendida, caía na maior gargalhada. Era o que papai queria ouvir. Mas, ao contrário do que ele imaginara, Elisa não estava ali.

“Cadê a Elisa?”, perguntou ele, em voz alta, esperando que os risinhos dela mostrassem onde se escondia. Mas não houve som algum. “Elisa? Cadê você?”, insistiu papai, com uma pontinha de preocupação na voz.

Veio mamãe: “Onde ela está?”, foi logo intimando. Papai deu de ombros: “não sei… Achei que estava aqui na cabaninha…” Mamãe se abaixou para espiar também, mas o resultado foi o mesmo. Nada. “Essa menina tem que estar aqui, em algum lugar. Não pode ter saído assim sozinha!”

Elisa estava em um túnel escuro. Não imaginava que fosse tão comprido. No início, ficou apreensiva pois não queria deixar papai e mamãe preocupados. Além disso, logo seria hora de almoçar.

Pensou em voltar, mas não havia luz alguma do local de onde viera. Apenas no sentido oposto é que brilhava alguma coisa. Sem opção, decidiu seguir naquela direção. A luz foi ficando mais intensa e maior a cada passo e logo ela começou a ouvir vozes. Não eram papai e mamãe, mas outras pessoas.

“Não, não! Não está bom!” dizia um homem vestido com uma roupa engraçada, que parecia uma cortina, de tão grossa e enfeitada. “Você está se atropelando nas notas, meu filho! Preste atenção, sim?”

Elisa viu-se atrás de um baú. O túnel tinha desaparecido e agora ela estava no canto de uma sala ampla, com o teto mais alto que já tinha visto. De lá, enxergou o tal sujeito, dirigindo-se a uma criança mais ou menos da mesma idade que ela. O menino estava sentado diante de um piano pequeno.

“Assim, Wig: dó, sol, mi, fá, dó”, mostrou, pressionando as teclas. O menino olhava atentamente, sem dizer palavra. “Pratique, sim, filho?”

Wig (Elisa achou que esse nome era muito estranho) tocou igualzinho o pai o ensinara. O homem, ao invés de sorrir, soltou um grunhido e em seguida um “está bom, mas pode melhorar.” O garoto deu um suspiro. Elisa imaginou que ele devia estar entediado.

“Johann!”, chamou alguém fora do quarto. “Venha até aqui, por favor!”

O homem saiu pisando duro. Provavelmente não gostava de ser interrompido. Antes de chegar à porta, parou e virou-se para o menino: “Vá tocando a peça toda. Daqui a três dias temos a audiência com o arquiduque.” Depois saiu e bateu a porta.

Elisa achou que o menino iria mostrar a língua para aquele sujeito, mas, ao contrário, ele começou a tocar o piano. E era a música mais bonita que ela já tinha escutado. Wig tocava com suavidade, arrancando notas perfeitas, que acariciavam o seu ouvido, fazendo-lhe cócegas no estômago. Era uma melodia leve e triste até.

Elisa não resistiu e saiu de trás do baú. Parou ao lado de Wig, que tocava concentrado, sem perceber a presença dela. Por fim, Elisa perguntou: “Como você aprendeu a tocar assim?”

Wig tomou um susto. Parou de tocar na hora e instintivamente fechou o piano.

“Quem é você? Como entrou aqui?”

“Eu sou Elisa. Também não sei como vim parar aqui, mas quero dizer que estou muito contente, porque você é o melhor pianista que eu já ouvi!”

“Eu não muito gosto de piano” confessou Wig, para espanto de Elisa. “Toco por causa do meu pai.”

“Não gosta de piano? Como assim? Você toca tão bem…”

“Nunca é bom fazer algo por obrigação.”

Elisa meditou por um instante. O que ele acabara de falar era a mais pura verdade. Ela mesma não gostava quando mamãe a obrigava a arrumar o armário.

“Do que você gosta então, Wig?”, perguntou ela, com as mãos na cintura.

O menino sorriu meio sem graça, descendo do banco do piano. “Eu gosto mesmo é de tocar violino.”

O garoto foi até um armário no outro lado da sala e sacou de lá um violino pequeno. Começou a tocar. Elisa viu-se embalada novamente. Por incrível que pareça, era ainda mais belo do que o piano.

“E o pior é que meu pai nem sabe”, disse Wig, o arco do violino suspenso no ar.

“Por que você não fala com ele?”

“Está louca?”

“Aposto que ele vai gostar.”

De repente, a porta da sala se abre. “Ludwig! Por que não está ensaindo?”

O menino arregalou os olhos e derrubou o violino. “Eu… Papai…”

“Quem é essa menina?”

Elisa tomou um susto. Saiu correndo para trás do baú. Havia umas almofadas e uns cobertores ali. Ela se enfiou no meio deles, torcendo para que o homem não viesse em seu encalço.

“Ei, volte aqui!” disse ele, o som da voz abafado por causa de todo aquele tecido que a encobria.

No escuro, Elisa ficou o mais quieta possível. Apertou os olhos e torceu para que estivesse sonhando. Imaginou que se ficasse parada como uma pedra, o homem não a encontraria. Logo, outra música se insinuou. Primeiro abafada, depois mais nítida, notas se sucedendo numa melodia crescente.

Quando finalmente teve coragem de espiar o que acontecia percebeu que estava de volta em sua cama. A música, porém, permanecia no ar, como um feitiço.

Um tanto confusa, caminhou até a sala. Ali, atrás do sofá agora arrumado com almofadas e mantas, papai analisava um encarte quadrado, com ar satisfeito. Enquanto isso, o som do piano escapava de um aparelho sobre a estante, as notas musicais se escalando invisíveis, agradáveis aos ouvidos, quase carinhosas.

“Ah, aí você está!”, disse o homem, a expressão feliz estampada no rosto. “Gostou de se esconder de novo? Ninguém conseguiu te encontrar dessa vez!”

A menina deu um sorriso tímido, de quem não sabe como responder.

“Já ouviu essa música, filha?”

Ela fez que não com a cabeça, mas estava intrigada.

“Seu nome vem dela”, prosseguiu papai. “Quem compôs foi um cara chamado Beethoven. Já ouviu falar?”

“Acho que não…”

“Für Elise. Para Elisa…”

Um sorriso brotou no rosto pequeno e ela se lembrou, quase sem querer, do menino pianista que preferia tocar violino.

“Fico aqui pensando quem seria essa Elisa da música”, prosseguiu papai. “Imortalizada pelo maior compositor que já existiu!”

“Imortalizada como musiquinha do caminhão de gás…” disse mamãe lá da cozinha.

“Você está com inveja, Ana Flávia!”

“Estou é esperando uma música sua para mim…”

A pequena Elisa já não ouvia mais os pais. Estava ocupada agora. Queria reconstruir a cabana com as almofadas do sofá.

7 comentários em “Para Elisa – Conto (Alexandre Parisi)

  1. Gustavo Araujo
    17 de julho de 2025
    Avatar de Gustavo Araujo

    O conto navega no onírico, nas possibilidades e explicações que só acontecem na cabeça das crianças. Interessante a “explicação” para o nome da música, que apesar de reconhecível até por quem não gosta de música clássica, não tem sua origem plenamente registrada. Valeu a viagem.

  2. Pedro Paulo
    16 de julho de 2025
    Avatar de Pedro Paulo

    Achei nostálgico, remete à potência da imaginação na infância. Enquanto lia havia esquecido o título e fui pego de surpresa pela reviravolta de quem realmente era o garotinha e o que estava sendo tocado. Muito bom!

  3. Kelly Hatanaka
    15 de julho de 2025
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Um conto doce gostoso de ler. Brinca com o impossível, com a fantasia e inocência.

    Gostei muito dessa história por trás da inspiração para Fur Elise, uma música que, batida ou não, é belíssima. Nenhum caminhão de gás do mundo vai conseguir estragar essa beleza.

    No começo, achei que a história seguiria um caminho mais sinistro, que esta seria uma história de terror. Que bom que me enganei. A história que voê desenvolveu é muito melhor.

    Parabéns!

  4. claudiaangst
    13 de julho de 2025
    Avatar de claudiaangst

    Um belo conto com referências musicais, o clássico do clássico. Durante minha trajetória junto ao piano, nunca quis tocar Pour Elise, talvez pela melodia estar tão batida. Sem dúvida, é uma linda composição com grande apelo popular.

    O seu texto faz essa ligação entre o onírico, o lúdico e a música. Realmente, esses elementos combinam muito bem. A leitura flui muito fácil devido à harmoniosa narrativa, palavras bem escolhidas, sem pesar em explicações desnecessárias.

    Parabéns!

  5. Priscila Pereira
    11 de julho de 2025
    Avatar de Priscila Pereira

    Olá, Alexandre! Tudo bem?

    Que fofo! 😍 Amei!!

    Gosto muito da música Para Elisa e quando vi o nome do seu conto torci para que fosse sobre ela e gostei demais do resultado!

    Conto lindo! Faria sucesso no desafio passado, pena que não participou!

    Parabéns pelo conto!

    Até mais!

  6. Luis Guilherme Banzi Florido
    11 de julho de 2025
    Avatar de Luis Guilherme Banzi Florido

    Boa tarde, Alexandre! Otimo conto, gostei muito!

    Voce escreve muito bem, me dando a impressao de ser um veterano. A escrita é segura e muito correta, o ritmo é muito bom, as descrições, dialogos, personagens, tudo redondinho. Gostei da forma como conduz a fantasia. No começo, quando ela encontra o tunel, achei que seria algo do tipo Coraline, mas a historia se mostrou diferente, trazendo pitadas de viagem temporal, com a protagonista modificando a linha do tempo ao sugerir a um jovem Bethoven seu nome para a musica que estava compondo. Quer dizer então que nem Bethoven agradava ao pai que exigia demais dele? Acho que certas coisas sao atemporais, né? kkkkk.

    Enfim, uma leitura muitissimo agradavel, escrita impecavel e bem revisada. Gostei muito mesmo, parabens!

  7. Angelo Rodrigues
    10 de julho de 2025
    Avatar de Angelo Rodrigues

    Olá, Alexandre.

    Ótimo conto.

    Aqui, a pequena Elise utiliza um portal simbólico para o inconsciente. Ponto de transição entre o mundo interior da criança e a realidade que a cerca. Sua toca do coelho para uma jornada introspectiva.

    Sua cabana é o refúgio simbólico que a põe protegida e livre para transitar em pensamentos/sentimentos.

    Ao obliterar-se do mundo real quando submerge em sua cabaninha, caminha em direção a um novo espaço de descobertas.

    Você utiliza esse “esconder-se” como meio para o inconsciente. Um espaço seguro onde ela pode explorar suas angústias, desejos e sentimentos, certamente livre das vigilâncias dos pais – no caso.

    Quem nunca brincou, na infância, de “cabaninha”?

    Legal isso. Essa transição – realidade/ficção – infantil, tendo como elemento seu nome e o autor “do seu nome”, cria um bom espaço para construções futuras, com um desenvolvimento mais abrangente do conto, com outras e muitas aventuras.

    Parabéns pelo trabalho.

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Publicado às 10 de julho de 2025 por em Contos Off-Desafio e marcado .