EntreContos

Detox Literário.

A Minha Rua – Conto (André Lima)

Toda rua tem um jeito, mas a minha é diferente
Rua caída do infinito, rua torta, indecente
Rua-casa de um aflito, rua-estrada de um eremita
Lugar donde ninguém lembra, que até hoje me convida

Minha rua foi feita em prosa, se esticando na paisagem, sendo ela também a paisagem, não a descreveria em poucos versos. O meio-fio, meio feito, ia só até a metade, era rua inacabada, ainda assim parecia pronta. Aos meus olhos de menino, os lajedos que compunham o distante, junto às mangueiras umbrosas que o caminho desviava em respeito, faziam parte de uma tela única com as casinhas e seus beirais.

Rua esquisita… Hoje penso e me inconformo. A lembrança que me vem é que tinha um jeito de avenida embebezada, mas alma de viela e corpo de chão de barro. Lá não tinha governo, tinha só o Mata Longe, montado em sua égua, o bigode acinzentado e trinta e oito na cintura. Ditava as regras a todos que lá moravam, ai de quem não respeitasse. Era a mão da Lei, da Justiça que enxergava, bem cruel com quem falhasse e bem amável com as crianças. Eu mesmo queria ser Mata Longe, eu mesmo o desafiaria para ser o maioral, o venceria num duelo, mas não o mataria, em respeito ao símbolo que sempre fora para mim. Que saudade de Mata Longe, fazendo pisar firme a sua égua. Quem só o ouvisse de casa, tinha impressão de tempestade, ou de corrida de vinte cavalos, mas era só um, era só o dele.

Aquela rua tem um morro e hoje morro de vontade de um dia reencontrar. E Dona Rita me dizia que escondido lá atrás, havia um mar cheio de algas, de maré mansa. Havendo silêncio, escutava-se suas ondas preguiçosas, rolando na praia e se mantendo, sem quebrar. Por isso mesmo é que eu era marujo, na frente de um sobrado, que eu fingia quera onda em pé, pronta pra derrubar minha embarcação. Dolores, Tita e Tinoco, meus três confrades, amarravam as cordas onde dava e moviam as velas esgarçadas que manobravam nosso veleiro. Até num fim de tarde, veio Zé Preto, numa das vezes que a brisa do mar chegou na rua, pulando carniça no morro. Ainda com roupa de trabalho, Zé viu que ali se imaginava um barco que poderia ser tão real quanto todo o resto. Tornou-se, portanto, nosso capitão. Zé Preto era herói tanto quanto Mata Longe.

Tinha também
um riacho,
    no qual

    me acho
  afogado até
os dias de

      hoje. Riacho
lento, filete de
 água, com chapéu

de gigoga. Onde
    um dia
   dormiu

       um morto
e as crianças
       se banhavam, onde

          a égua bebia
água e Mata
         Longe

      descansava.
  Minha rua dava
em nada, era

pé de morro,
    fim da
       estrada,

  onde só se
imaginava o mar.

Era rua sem fronteiras, em que o morro separava de outras ruas que deviam existir, mas que não eram minhas, nem de Dona Rita ou do Ladrilheiro. Mas havia um bonde que trazia os trabalhadores, como Zé Preto, e as notícias lá de fora. Bonde este que chegava ao fim da linha, no pé do morro, depois de passar na pontezinha do riacho, e tinha que voltar. Quando dobrava a esquina em sua volta, ninguém sabia pronde ia.

O cão Injuriado mordia os embebedados e tinha humor que variava. Mas era cão amigo das crianças, dos vadios e dos esfomeados, pois tinha fome e também vadiava, com aquela sua alma infante. Era lugar de muitas imagens, e as imagens de terracota, logo abaixo de um alpendre, me faziam companhia junto ao Cão Injuriado. E eu sentava no meio-fio, me entregava pro meu cão, pra pensar em mim mais velho, ali mesmo, ao lado das santas. Muitas vezes eu chorava, imaginando meus pecados que um dia haveria de cometer. Será que Deus perdoa quem não é criança mais? Afinal, ali vivia um suicida, um louco e um embriagado, que andavam com passos de quem tem perdão.

Toda rua tem a lua e uma estrela pra chamar de sua. A minha tinha o vazio, a escuridão celestial, acima de nós, restando que imaginássemos os astros de mãos dadas, em ciranda. Ciranda de roda que eu fazia com Dolores, com o filho do Ladrilheiro e com Tinoco, menino que morreu cedo, mal nasceu, e Chico que anda vivo por aí. À noite, o que nos iluminava era um poste, que mais era um farol decorado de ladrilhos, que subia como torre, bem mais alto que as mangueiras, bem mais baixo que o morro.

Na última hora, numa noite qualquer, veio à rua um anjo que Injuriado até pensou que estava bêbado, mas que cambaleava por ser aleijado. Era desdentado e com penacho na cabeça. Desceu do último bonde, escorando-se, para nos dizer que o mundo é bom. Disse-nos, também, que lá fora há tudo que não existe cá na rua; e que veio a mando de um arcanjo, dar-nos a esperança de que o dia há de vir, o dia em que cada um de lá será um fora-da-lei, andarilho da Terra, eterno perseguidor. E veio para molhar os pés no nosso riacho, dar carinho ao Injuriado e mancar por toda a estrada, beijando os mármores das casas e os ladrilhos do farol.

Dessa noite, dessa noite, eu me lembro muito bem. Foi festa na rua, quase carnaval, estouramos os fogos de artifício e lavamos as asas cansadas do mensageiro. No dia seguinte, mal amanheceu, não quis esperar o bonde, disse que tinha que se apressar pros assuntos da ordem mística, então Zé Preto lhe deu um cavalo, bem magricela, lembrando o riacho, com as canelas esfaldadas que mal aguentavam o aleijado. De modo que Mata Longe ficou enciumado e cismou com Zé, o trabalhador. Disse, eu me lembro que disse, bem pertinho da casa de Valdeci, “ora, aqui não manda anjo, nem arcanjo, nem mesmo Deus há de tentar, nem quem quer que queira mandar. Aqui eu sou a Lei e a Lei é sempre boa. Este anjo todo torto que não venha aqui de novo. E Zé Preto, esse infeliz, vai pagar pelo transgressor”.

Mas era assunto de esperança, era assunto do sagrado, dos que vivem lá em cima, dos seres incompreendidos, que o mensageiro nos trouxe e nos encheu de vontade, de modo que nem demos ouvidos às ameaças, deslumbrados com o transcendente, que rompe os limites daquela rua, daquela rua.

 

Desde então, eu acredito, vivo a vida nessa espera
Desse mundo premedito, dessa imensidão de esfera
Preencher meu coração

Vida boa tem um rio, tem que ter um morro ao fundo
O meu dia já vem vindo, vou ser o dono do mundo
Minha rua será o chão

 

Nem no dia da vingança consegui sentir tristeza. Zé Preto foi empurrado morro abaixo por Mata Longe, desceu todo arrebentado, como um homem em convulsão, e já chegou no rio todo morrido. Dormiu no leito do riacho, descansou de sua queda, nem foi tirado no dia seguinte, todo sujo de gigoga, ninguém quis mexer no corpo, ninguém quis o violar.

Minha rua tinha um cheiro quinda sinto nos cabelos do meu filho. Eu me lembro, eu me lembro, até hoje com muito gosto, até no dia da morte de Zé, do que vinha em meu nariz e morava no meu corpo. Lembro também que ouvia um sino, mas não via igreja alguma. Hoje sei que era o coração da rua que batia de emoção. Rua etérea, sem destino, dava em nada, no pé do morro onde houve um assassinato.

Mesmo nos tempos de drones e raio laser, minha rua se manteve intacta, pois era ato de resistência, era o caminho da irreverência, do singelo, do atemporal. Lá não cabia um palácio, mas caberia uma cidade. Rua própria, auto-rua, lugar exótico ao mundo estranho. Foi assim enquanto estive lá.

Num carnaval, foi a apoteose de todos que lá viviam. Lamento até hoje ter dormido além da conta, acordado no susto, ouvindo os tambores indo ao longe. Fui correndo até o portão e vi a Portela indo embora, dobrando a esquina como o bonde. As crianças corriam atrás, mais rápido que Zé Preto ao rolar da ribanceira, e Mata Longe disparava tiros pro alto, dando o tom da boa confusão. Pelo chão, todos os confetes, as serpentinas e as máscaras de bate-bola, espalhados como colagens. Deve ter sido um dia e tanto, um dia e tanto!

Depois dali, eu fui embora, embora a contragosto. Não fui de bonde, nem fui de dia. Fui à noite, só o farol me viu. Não quis me despedir.

Hoje em dia, quando volto ao local onde ela esteve, não me sinto pertencente. Minha rua foi embora, como eu, não disse adeus. Acho que nem Dolores me reconheceria. Talvez, a visão que eu encontrasse, neste desencontro, seria Mata Longe bem velhinho, demente, sentado em banco bambo, sem ser considerado pelos transeuntes, ou Dona Rita viúva, ou quem sabe um prédio modernista onde fora o farol.

 

Meu tempo de brincar virou memória
É tempo de ganhar o mundo afora
De olho no futuro, eu fui-me embora
Que o anjo desdentado anunciou

Inda carrego em mim o meu riacho
A imagem do aleijado e seu penacho
Quem sabe além de mim é que eu me acho
O farol com seus ladrilhos me guiou

 

Mesmo quando o bonde foi-se embora, para nunca mais voltar, dando lugar às novas invenções, deixou a marca de um esqueleto em trilho, que até os dias de hoje lá naquela rua deve estar. Coisa assim aconteceu comigo, quando a rua foi embora de mim e deixou as suas costuras em minha alma.

Eu sou corpo esburacado, como o cadáver de Zé Preto. Sou feito de retalhos. Desde então, não fui feliz, como fui naquela rua. Lá, eu sabia que o mundo era bom. Ainda acho que deve ser, mas não tenho mais aquela certeza. Hoje em dia é só tristeza… Mata Longe está mesmo demente, eu tenho certeza! Está velhinho, enfraquecido, resmungando sem ser ouvido, ninguém mais o considera, ninguém mais o leva em conta. Hoje lá, muitos passam por ele, ninguém mais faz reverência. Está todo acabado, é um coitado pior que Injuriado, que tristeza essa visão. Aquela terra não tem mais Lei, não é mais a ribanceira, o riacho é valão, do morro ninguém se joga, lá só tem a novidade com sua força de podridão. O farol já se apagou, o cheiro de mar é de automóvel… Se soubessem o que esse homem fez por ali, teriam lhe dado ao menos a eternidade num busto ou num monumento, num momento em que encontrassem os olhos do passado, quando havia altivez, da nobreza do seu cavalgar. Só precisava de um trinta e oito e duma égua, e dum cafuné nas crianças. Se soubessem como Zé Preto trabalhava, ah, se soubessem, se desqualificariam, pediriam o chapéu, se reconheceriam como incapazes, teriam vergonha de descer do bonde, nos seus trajes modernosos. Seria uma retirada em série.

Ah, mas minha rua tinha um jeito, uma forma de existir. Era empedrada de memórias, que fluiam rio abaixo, tinha cheiro de mar, cheiro de bonde, cheiro de cachorro molhado. Era onde fazíamos ciranda, debaixo do céu sem estrelas, onde o sobrado era onda que nunca conseguiu virar meu veleiro. Se esse mundo é mesmo bom, não há de ter injustiça, há de ter um Deus igual Mata Longe, que enxerga tudo que é certo, dando retidão à existência, me fazendo velejar tranquilo, na mansidão da maré-vida. Não posso, jamais, me contentar com as migalhas deste mundo acinzentado, da frieza desse chão, dos rios feitos de óleo diesel, ou em nunca mais contemplar a minha rua, nem de nunca mais ter a sorte de descansar à sombra de mangueira, dar carinho ao Injuriado ou da companhia das santas imagens. Será que, no fim de tudo, eu volto? Será que Deus vai permitir um último deslumbre? Não sei nem pronde apontaria os meus olhos de homem… Seria pro riacho? Pro corpo de Zé? Pro morro? Pros ladrilhos do Ladrilheiro? Acho mesmo é que olharia para mim mesmo, ali naquele contexto, ouviria o cansaço do mar e me entregaria ao além-rua. Se Deus me desse a chance deu morrer como Zé Preto! Queria que meu último sono fosse no leito do riacho, com um cobertor de gigogas. Ah, se eu tivesse desfilado na Portela! Naquele dia, seria ela, seria ela a quem eu veria… No fim de tudo, jogando os confetes pro alto, no fim de tudo, a espuma, o carnaval. Minha alma é de maré mansa ou d’água parada, é na vista pros lajedos que eu pertenço, que eu me sinto em casa.

Hei de um dia voltar, um dia voltarei, e lá ela estará, naquele caminho composto em prosa, fazendo as curvas de um bonde, paz descansada de um trovador, peito rouco, nota grave de barítono, destino eterno deu mesmo e também de um anjo índio, com Mata Longe, em sua égua, dizendo que se lembra de mim, sorrindo sem sorrir, recitando as boas-vindas: “sê bem-vindo de volta, filho desta rua, se não pode faltar um só ladrilho no farol, tu também não poderias”. E também estará o morro. O morro sempre morro, como o ponto alto da Lei. Lá que é a minha sentença, se Deus quiser, é lá que eu me despeço. Se me for permitido, vou me jogar. Rolarei morro abaixo. Ato último, serei morrido também.

 

O morro de gente que morre
Aquele seio telúrico
Feito mãos juntas de Nossa Senhora
Separando o Mar do Mundo

Está lá até agora, o dedão tocando o rio
E o calcanhar molhado de mar
Qualquer dia me convido
No fim de tudo, vou voltar

 

No fim de tudo, se houver justiça, eu vou voltar…

29 comentários em “A Minha Rua – Conto (André Lima)

  1. Fabio D'Oliveira
    16 de julho de 2025
    Avatar de Fabio D'Oliveira

    Densidade, poesia, camadas e mais camadas.

    É um estilo literário difícil de manter, de construir, de chegar no ponto ideal. Um desacerto e perde-se o rumo.

    Gosto muito de textos experimentais, que brincam com o formato, que desafiam a inteligência do leitor. Acho que gostaria mais desse conto se ele fosse menos denso, menos complicado, menos pomposo. A leitura exigiu muito. Já estava fatigado na metade do texto. Admiro todo o trabalho que existe na prosa poética, mas prefiro quando ela é dosada e equilibrada, sem excessos. Uma narrativa poética tem um potencial enorme de cativar o leitor, pois, além de entregar beleza na forma, ela tem uma capacidade única de envolver o leitor em emoções e sensações.

    A história é simples. Não foge muito da realidade que vivemos, dos causos de bairro que todos escutamos. Existe certa beleza nisso. Acho que o maior desafio dessas premissas reside na execução da forma e da narrativa, que são os fatores determinantes na hora de diferenciá-lo de trabalhos semelhantes.

    Particularmente, não é o tipo de literatura que consumo por prazer, mas o texto tem muitos méritos e está indiscutivelmente bem escrito. Como disse acima, sinto que gostaria mais se fosse menos denso e com uma dosagem na pompa narrativa.

    • André Lima
      17 de julho de 2025
      Avatar de André Lima

      Fiquei feliz com seu comentário. Claro que há universalidades na infância, mas, ao mesmo tempo, sinto que esse texto é carioca demais, mesmo que isso transpareça de maneira sutil para muitos. Então muito me alegrou a sua identificação!

  2. Pedro Paulo
    15 de julho de 2025
    Avatar de Pedro Paulo

    Gostaria de ter lido esse texto em um momento de mais vigor. Sua densidade me cansou sobremaneira, não pela escrita em si. É bela, experimenta a combinação de formatos distintos e até se utiliza de cores. Mas os rodeios que nos permitem, sem sair dela, conhecer a rua titular, exigiam mais atenção da minha parte. São elementos da natureza, da urbanidade e da própria humanidade que povoa e rege a rua. O tom melancólico do último terço é catártico, com a rua concorrendo com a modernidade em manter a sua originalidade enquanto o protagonista medita a redenção do seu destino pela possibilidade de um retorno à origem. Isso ressoou mais comigo, aliás. Saí da minha rua há alguns anos, tenho uma relação de afeto com o lugar, mas muito antes de deixá-lo já sentia que não cabia ali. Hoje, estou mais a meio caminho do que em qualquer um dos lugares que até poderia chamar de, mas não sentir como, casa. Lar fica sendo uma ideia e uma curiosidade do futuro. Ao contrário do narrador, rogo para frente, não para trás.

    Obrigado pelo texto, André!

    • André Lima
      17 de julho de 2025
      Avatar de André Lima

      Obrigado pelo comentário, PP. Fico feliz que tenha gostado. Acho que temos experiências parecidas nesse sentido. No meu caso, sinto saudades da minha rua de infância, mas jamais me imaginaria retornando para ela também. Também rogo para frente! haha

  3. claudiaangst
    13 de julho de 2025
    Avatar de claudiaangst

    Confesso que ao verificar o tamanho do conto me deu preguiça de ler. Um conto com vocação para romance? E por que não?

    Prosa poética, densidade, metáforas, um teor psicológico-dramático. Acho que me identifiquei um pouco, hein… Você mergulhou em memórias e se deixou levar pelo fluxo de um rio que talvez nem lhe seja familiar (um bom autor sempre engana seus leitores quanto a isso).

    Seu texto me fez lembrar de “Se essa rua fosse minha” e “Canção do Exílio”. Talvez pelos versos, mas muito mais pelo conteúdo.

    Parabéns pelo conto, pela inspiração que o conduziu além das margens desse caudaloso rio que é a escrita.

    • André Lima
      17 de julho de 2025
      Avatar de André Lima

      Muito obrigado, Claudia! Feliz por ter gostado. Os ladrilhos do Ladrilheiro no farol da rua acabam mesmo por ser uma homenagem à cantiga popular.

      E Canção do Exílio é inspiração para sempre.

      Obrigado, novamente!

  4. Priscila Pereira
    11 de julho de 2025
    Avatar de Priscila Pereira

    Olá, André! Tudo bem?

    Se esse texto fosse anônimo, saberia na hora que era seu. Me lembrou Barbosa e Os sapatos do meu Pai.

    Apesar da escrita poética e da história interessante, esse conto não é o estilo que gosto. Está longe de ser ruim, só não faz o meu estilo de leitura preferida (pq de escrita tá a anos luz de distância.. até queria saber escrever assim… Vou tentar um dia)

    Parabéns pelo conto!

    Até mais!

    • André Lima
      12 de julho de 2025
      Avatar de André Lima

      Muito obrigado pelo comentário, Pri. Sou fã declarado do seu trabalho.

      Fico feliz que tenha admirado o texto, mesmo sendo numa abordagem diferente do que você consome/gosta. Aliás, isso foi um dos motivos para eu não utiliza-lo no próximo desafio. Como ele tem esse jeitao prosa poética e alguns aspectos experimentais, pensei que seria algo que não fosse agradar a todos.

  5. Marco Saraiva
    10 de julho de 2025
    Avatar de Marco Saraiva

    Cara, que texto bonito, daqueles que soam que vem do coracao, de memorias vividas. Me senti uma crianca, me senti um homem vivendo nostalgias. Por que parte das descricoes da rua sao universais, aquele sentimento de casa, de um momento na vida ao qual nao se volta, de uma infancia onde as coisas que hoje nos sao triviais eram as mais importantes e impactantes.

    O trecho abaixo me pegou. Eh forte, eh perfeito:

    “Muitas vezes eu chorava, imaginando meus pecados que um dia haveria de cometer. Será que Deus perdoa quem não é criança mais? Afinal, ali vivia um suicida, um louco e um embriagado, que andavam com passos de quem tem perdão.”

    Gosto de como a rua eh um personagem tanto quanto eh tambem uma porta para o coracao do narrador (aqui, falo do narrador, que pode ser visto como voce, autor, ou como um outro personagem no conto). O narrador aqui ve a rua como imutavel, uma reliquia do tempo, resistente as mudancas do mundo:

    “Mesmo nos tempos de drones e raio laser, minha rua se manteve intacta, pois era ato de resistência, era o caminho da irreverência, do singelo, do atemporal.”

    Mas em seguida ele fala que a rua esta diferente, que jamais o reconheceria. Entende-se que a rua permanece, mas o narrador mudou e, assim, a rua tambem muda aos seus olhos. Conforme o narrador mesmo fala: “A rua foi embora de mim”. A rua eh a infancia aqui, um tempo diferente, de pertencimento, ao qual o narrador um dia quer voltar – tempos simples, onde o mundo era restrito a uma rua sem-saida.

    E que prosa! E poemas! O uso da palavra aqui esta sensacional, e as poesias muito legais de ler. Imagino o trabalhao que deu pra postar o poema em ondas em tons azulados! rs rs rs

    Parabens mesmo!

    • André Lima
      12 de julho de 2025
      Avatar de André Lima

      Muito obrigado pelo comentário, Marco. Fico feliz que tenha conseguido te transportar pra sua própria rua de infância. É bom saber que mais gente compartilha desse mesmo sentimento.

      E sobre o poema em forma de riacho, deu um trabalhinho, quase desisti dele kkk

  6. Angelo Rodrigues
    9 de julho de 2025
    Avatar de Angelo Rodrigues

    Olá, André,

    Desculpe-me por haver chegado tão tarde ao seu conto. Mas vamos a ele.

    Conto poético, com linguagem nostálgica. Tem um tom gostoso de ler, particularmente quando a leitura não é apenas uma leitura, mas uma revisão do próprio passado, que ascende de uma dormência que o tempo quer esconder. Um poema em pé, e pronto. Parabéns.

    Esse texto, me parece, é daqueles que, depois de escrito ou lido, traz aquela nostalgia de querer voltar a ser criança mais tantas vezes. Quem, tendo vivido nesse espaço-tempo do seu conto não teve um Mata Longe que dava medo ou admiração? O braço mais forte que apaziguava conflitos ou os iniciava segundo um flerte de ideias, acima ou abaixo, do acho que sei, mas tenho certeza. Onde tudo desanda ou solidifica.

    Conheci um desses caras. Chamava-se Jorge Cheira-boi. Ganhou esse nome ainda menino, pois, vivendo numa vacaria, passava os dias tocando bois em direção à área de leiteria ou de pasto. No fundo Jorge Cheira-boi era uma redução, dado que, tocando sempre aquela boiada, ficava cheirando o traseiro dos animais, recebendo respingo do que os bichos espalhavam pelo chão. Era Jorge Cheira-cu-de-boi, na verdade. Quando cresceu, um pouco mais velho que eu, meteu uma pistola na cintura e virou apenas seu Jorge. Quem ousaria mais que isso diante do brilho fulgurante que sempre trazia na cintura?

    Mas seu poema em pé é mais que tudo isso. É mais doce e de boas nostalgias, e até tem a lua toda, a escuridão celestial. Uma rua encapsulada pela infância, onde tudo cabe ali, e o que não cabe chega aos poucos, vindo de fora, aos poucos, e esse mundo imenso da rua vai aos poucos crescendo pelas mãos daqueles que, já crescidos, se aventuraram ao exterior daquele pequeno mundo que é tudo, é a rua descalça.

    “Vida boa tem um rio, tem que ter um morro ao fundo
    O meu dia já vem vindo, vou ser o dono do mundo
    Minha rua será o chão”

    Quem precisa de mais que isso?

    Conto belíssimo. Uma canção sobre a memória pessoal. Uma infância, um ideal que se parte com o tempo, a desilusão que chega. Tudo muito singular e bonito com domínio emocional.

    Mais uma vez, parabéns pelo belíssimo conto.

    • André Lima
      9 de julho de 2025
      Avatar de André Lima

      Angelo, muito obrigado pelo comentário. Gostei muito do relato sobre o Jorge Cheira-Boi. Esses personagens tão únicos e ao mesmo tempo tão universais são peças importantes na nossa vida, não é mesmo?

      Sabe o que é mais engraçado? Eu sou de Realengo, um bairro da Zona Oeste do RJ que, infelizmente, é dominado pelo tráfico em muitas regiões. A rua em que nasci e que serviu de inspiração para essa prosa poética era bem diferente no tempo do meu avô. E ele dizia que, antes dos traficantes modernos a dominarem, tinha mesmo um sujeito que andava a cavalo com trinta e oito na cintura. E que ele era quem ditava as regras por lá. Só que, infelizmente, eu não consigo me lembrar do nome (Apelido) desse sujeito e meu avô já não está mais aqui para me relembrar… Fica na ponta da língua. Já tentei inutilmente me forçar, mas não vem. Então acabei por me inspirar nele e coloquei o nome de Mata Longe, pois lembro que era algum apelido irreverente assim.

      É muito interessante como os padrões acabam se repetindo e a infância parece ser uma experiência quase que única, compartilhada por todos nós.

      • Angelo Rodrigues
        9 de julho de 2025
        Avatar de Angelo Rodrigues

        Olá, André.

        Muito legal tudo isso. De Realengo lembro bastante. Por algum tempo servi num Quartel de Cavalaria que havia por lá. Na Escola de Equitação do Exército, em 1973, ao lado da Estação de Trens, diante do Campo de Marte. Outro dia, olhando no Google Maps, vi que tudo por lá foi destruído. Estava tudo em escombros.

        Boas lembranças de Realengo daqueles anos. Imagino que, como em todo lugar nos subúrbios, as coisas tenham realmente piorado. De modo geral, tudo são bens de heranças, deixados pelos antepassados. Os jovens já não conseguem comprar seus imóveis, e tudo vai “favelizando”, com apinhamento de casas em terrenos exíguos, abrigando filhos, depois netos, depois bisnetos e agregados.

        Então surgem os traficantes modernos…

        Grande abraço!

  7. Kelly Hatanaka
    8 de julho de 2025
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Lindo conto sobre memória, saudade, infância, nostalgia. Ele evoca um clima onírico, que é mesmo muito parecido com o universo das memórias distantes. Os eventos passados parecendo mais épicos do que realmente foram, a objetividade perdendo lugar para a forma como nos lembramos das coisas.

    Ficou bem forte para mim o sentimento de que a rua jamais poderia ser revisitada, pois ela é parte física (rua) e parte tempo, que ficou para trás e se perdeu.

    Nossos heróis de infância continuam sendo heróis? Os vilões ainda são vilões? O conto parece sugerir que o tempo concilia o inconciliável.

    Senti neste texto um quê de Barbosa. Será que estou, finalmente, aprendendo com a Priscila?

    Excelente!

    • André Lima
      9 de julho de 2025
      Avatar de André Lima

      Muito obrigado, Kelly, pelo comentário. Acho que tem muito a ver com Barbosa mesmo, principalmente na atmosfera quase onírica, como você bem citou. Fico feliz pelo apontamento!

  8. Luis Guilherme Banzi Florido
    8 de julho de 2025
    Avatar de Luis Guilherme Banzi Florido

    Fala, Andrézão!

    Um conto muito poético, metafórico, sinestésico. Me parece, de certo modo, algo pertencente ao multiverso do sapatos do papai. Parece que voce encontrou um estilo muito interessante, um jeito de trabalhar com memorias dos muitos Brasis que existem fora dos holofotes, dos universos por onde o povo brasileiro transita, da esperança em meio à miséria, do amor em meio ao abandono. Esse conto, por exemplo, trabalha muito bem essa ideia de nostalgia de um mundo onde faltava tudo, mas sobrava amor e felicidade. Me lembrou muito minha propria infancia, minha propria rua. Minha rua de periferia, onde havia muita violencia e pouca preocupação do governo. Onde a gente vivia feliz, abandonado pelo resto da cidade, que preferia fingir que a gente nao tava la. E onde tudo era simples, onde eu imaginava e de minha cabeça de criança brotava um mundo maravilhoso e pulsante. Seu conto tem tudo isso, e me transportou de volta pra essas memorias. Muito bonito. A linguagem é excelente, como sempre, voce é um poeta escrevendo narrativa. Como nem tudo são flores de pessego, devo dizer que em algum momento no meio do conto, achei que começou a divagar em excesso, e quando chegou ao final eu ja tinha perdido um pouco da imersao que tive até uns 80%. Acho que isso tirou o impacto final. Claro que isso tem muito mais a ver comigo leitor que com voce escritor, mas achei que valia mencionar. Acho que seria mais solido se fosse um pouco mais curto, mas foi apenas minha ssensacção. Enfim, belissimo conto, tão profundo e poetico que me transportou 25 anos no passado. Parabens!

    • André Lima
      8 de julho de 2025
      Avatar de André Lima

      Muito obrigado, LG! Fico feliz que tenha conseguido te transportar no túnel do tempo. Há aspectos universais da infância que acredito que a maioria de nós compartilhe.

  9. Givago Domingues Thimoti
    8 de julho de 2025
    Avatar de Givago Domingues Thimoti

    Oi, André! Tudo bem? Esse é um conto que não funciona muito bem para os quadradinhos literatos (tipo eu quando comento contos no desafio). Ou, talvez, não funcionaria em tese. Mas ele é ideal para área off (ou talvez num tema experimental)

    Aqui você brincou com as palavras, mostrando todo o seu talento com elas. É uma brincadeira lírica, que joga entre as fronteiras do conto e da poesia. É, por si só, um texto interessante, em decorrência desse jeito diferente de trabalhar as ideias. Neste sentido, foi muito bom ler. Em tempos de IA, a literatura clama por trabalhos autênticos e acho que esse texto caminha neste sentido. Não só pelo estilo de escrita, mas também por sentir a pessoalidade do autor e suas vivências transcritas nas entrelinhas.

    No mais, sendo coerente com a minha própria chatice enquanto leitor, embora seja palpável a nostalgia e a saudade nesse conto, acho que o fio da narrativa se perde no emaranhado da brincadeira das palavras por vezes. Seja por inserir drones numa narrativa repleta de nostalgia, seja por a história seguir o fluxo da memória do narrador-personagem e este se perder em suas memórias, terminei a leitura com a sensacao que poderia haver um pouco mais de equilíbrio.

    • André Lima
      8 de julho de 2025
      Avatar de André Lima

      Eu cogitei enviar esse conto pro próximo desafio, mas mudei de ideia justamente por tudo que você citou kkk. Experimental demais e está mais para uma prosa poética do que para uma narrativa mais elaborada.

      Mas fico feliz que tenha gostado!

  10. Thaís Henriques
    7 de julho de 2025
    Avatar de Thaís Henriques

    Não tenho, ainda, gabarito para avaliar como crítica, mas a saudade presente em seu texto foi sentida por mim. Lindo!

    • André Lima
      8 de julho de 2025
      Avatar de André Lima

      Obrigado, Thaís!

  11. Gustavo Araujo
    4 de julho de 2025
    Avatar de Gustavo Araujo

    É um texto que abusa (no bom sentido da expressão) da prosa poética, com o acréscimo bem vindo de certo lirismo, para homenagear o passado.

    Mais do que mera nostalgia, o que se vê é uma pintura, já que as linhas e as palavras são traçadas com sinuosidade, revelando uma técnica cujo objetivo é tragar o leitor para uma espécie de sonho, quase uma idealização do passado, com seus heróis, com seus embates homéricos, suas lendas e tragédias, com seu chamamento eterno.

    Nada obstante, é um texto que exige entrega do leitor já que, por parecer repetitivo, pode cansar os menos pacientes. Trata-se, em verdade, de reforçar ideias, num devir permanente. É como a própria vida, que insiste em lançar recordações que se sucedem de maneira involuntária, não raro embotando nossos sentidos com imagens difusas ou, como expressaria Van Gogh, com suas estrelas espiraladas.

    Creio que há uma oportunidade de melhoria, porém, relativa ao parágrafo que fala em drones… Desnecessário trazer algum tipo de modernidade para um texto como este, que é fincado no passado e na saudade.

    É isso. Parabéns pelo trabalho. Ficou muito bom.

    • André Lima
      5 de julho de 2025
      Avatar de André Lima

      Fico feliz que tenha gostado, Gustavo! No início, seria apenas uma prosa poética, mas acabou que ganhou um pouquinho de narrativa a medida em que fui escrevendo.

  12. LEO AUGUSTO TARILONTE JUNIOR
    3 de julho de 2025
    Avatar de LEO AUGUSTO TARILONTE JUNIOR

    Gostei muito do conto. Bastante poético. Uma verdadeira ode à sua rua. Me emocionei.

    • André Lima
      3 de julho de 2025
      Avatar de André Lima

      Grande, Leo! Muito feliz por ter te emocionado. Enquanto escrevia, lembrei da minha rua onde morava na infância. Inevitavelmente, acabei evocando essas memórias no texto.

      Abraços e obrigado pelo comentário!

  13. ramonalfa
    3 de julho de 2025
    Avatar de ramonalfa

    Parabéns pelo conto amigo.A escrita em prosa ficou interessante. O tema da saudade do protagonista nos insere na história, afinal todos temos uma rua/momento que sentimos falta.Engraçado notar que o tempo transforma lembranças, como quando Mata Longe assassina Zé Preto e mesmo assim o protagonista tem nostalgia desse evento.O detalhe das palavras formando o riacho também trouxe uma imersão ao texto.Parabéns mais uma vez, grande abraço.

    • André Lima
      3 de julho de 2025
      Avatar de André Lima

      Obrigado pelo comentário, meu amigo. Lembro que muitos anos atrás (talvez uns 15), você me mostrou um conto que havia escrito. Era sobre relação pai e filho. Por que não voltar a escrever? Aqui é o ambiente perfeito.

      Abraços!

  14. andersondopradosilva
    2 de julho de 2025
    Avatar de andersondopradosilva

    Olá, André! Li este seu conto! Talvez aspectos do enredo tenham me escapado. Talvez seja um texto que peça releitura. Talvez seja um texto que clama por incompreensão e entrega, um texto para ser sentido.

    Por exemplo, não me ficou completamente clara a relação entre o protagonista e Zé Preto e do protagonista com Mata Longe. Zé Preto soa como herói. Brinca de faz de conta com o protagonista. Se Zé Preto é herói, Mata Longe é algoz. Mas o protagonista parece ter uma relação ambígua com Mata Longe, admirando-o em diversos momentos. A falta de clareza nessas relações me confundiu, mas não depõs contra o texto. Julguei proposital. O texto é sobre memória e saudade da infância. E a memória costuma ser assim: confusa, ambígua. Não me preocupei demais em entender o enredo, nem em construir uma clara visão de personagens, ambientes e imagens. Procurei sentir o texto, me entregar à saudade que é do protagonista, mas também do leitor convidado ao retorno à rua de sua própria infância. Gostei do que li! Parabéns pelo trabalho!

    • André Lima
      3 de julho de 2025
      Avatar de André Lima

      Obrigado pela leitura e comentário, Anderson! Fico feliz que tenha gostado. Quase guardei esse conto para o próximo desafio, mas decidi seguir meu coração e continuar na ideia que estou desenvolvendo kk

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Publicado às 2 de julho de 2025 por em Contos Off-Desafio e marcado .