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Detox Literário.

Uma hora na vida – Crônica (Pedro Paulo)

Quarenta estudantes em sala, o mínimo permitido para formar uma turma segundo a Secretaria. São quarenta adolescentes e eu sou um só. A sala ampla com cobogós e ventiladores barulhentos não fazem frente ao calor de trinta e cinco graus, sensação de um sol para cada um. O cheiro de suor impregna a sala, tanto o deles como o meu, que escorre pela fronte e forma gotas na ponta do queixo. Procuro logo me sentar, pois fui informado pela gestão que não registrar aquela aula no sistema virtual com detalhada distinção entre introdução, objetivos, metodologia e avaliação resultará em marcação imediata da falta do professor, com prazo curto para agendamento da reposição e subsequente desconto no salário se não o fizer. Sou educado, ainda me reservo a dar um “bom dia” aos estudantes. Um ou dois alunos respondem. Há uma porção entretida em jogos em seus celulares, a jogatina tem a cobertura sonora de seus gritos e xingamentos. Alguns alunos conversam de pé ou sentados sobre as mesas. Não me viram ou, se viram, ignoraram. Não tenho a energia ou o tempo de corrigi-los. Afinal, avisá-los da minha presença não registra a minha presença, assim como os papeis que nos cobram de assinar todos os dias. É o sistema eletrônico que o faz. É esse sistema que me penaliza se não o fizer. Sento-me na cadeira bamba, coloco meu notebook sobre o birô torto, acesso o portal pela rede de internet oscilante para registrar a aula e todos os seus componentes prescritos.

Uma discussão entre os alunos ameaça estourar em briga, mas, felizmente, cada um vai pro seu lado antes que eu precise dizer algo. Volto ao sistema. É um endereço eletrônico recém-implantado, aberto somente no segundo trimestre do ano letivo e sem nenhum tipo de capacitação para o seu uso. A evidência disso é o quanto demoro para encontrar o acesso. Quando penso ter encontrado, percebo que me enganei. Na segunda tentativa, a instabilidade da rede não permite à página completar o carregamento. O terceiro login é o de sorte. Acesso a turma, chamo o primeiro nome, mas é só a segunda repetição que se faz ouvir, quando elevo o meu tom. Pigarro. Minha voz já não é a mesma de antes e sinto dor de cabeça pelos meus próprios gritos. Ao último nome da turma, a altura da minha chamada já abranda, mas serviu para silenciá-los. Levanto-me e olho o relógio, passaram-se quinze minutos. Suspiro.

Registrei um plano de aula que em nada equivale ao que anotarei no quadro. A turma jamais permitiu a progressão do conteúdo até o que estava prescrito e tampouco dominavam o conhecimento básico para acessar a complexidade do tema previsto. Ordeno que se sentem, larguem celulares e anotem. Não espero para conferir se acatam, viro-me para o quadro e começo a anotar o que decorei de repetir nas demais turmas da mesma série. Invisto trinta minutos nisso, sem nenhum lucro para uma caligrafia melhor, com algumas das sentenças delineando diagonais no quadro sujo. Vez ou outra, olho por cima do ombro, reparo que alguns anotam. Ao terminar, caminho pelas fileiras, sinalizo para que alguns retardatários de pé se sentem, o que não se estende a pegarem os cadernos. Vi que a maioria dos que escrevem não finalizará antes do término da aula.

O restante do período é andar, observar, ralhar para que larguem o celular, ou parem de conversar, ou se sentem, ou peguem os cadernos, ou copiem mais rápido. Agora só faltam cinco minutos. Poderia esperar que passassem, mas senti um incômodo em deixar o toque soar sem ao menos comentar o que anotei. Por que anotar, se não se fala sobre? A coerência me pressiona. Mesmo que muitos sequer copiem ou o façam pela metade, ao menos não poderão questionar que as anotações não foram devidamente explicadas. Peço a atenção de todos. O silêncio é mais pela surpresa do que pelo respeito.

Já tinham copiado um quadro inteiro, o que mais eu poderia querer para aquela aula? Uns estão até mesmos indignados, reclamam: “deixa pra próxima, professor, tá bom, já!” Sigo resoluto. Começo a explicar o primeiro terço do quadro, enfatizo que sem aquele conhecimento prévio não entenderão o restante, mas a impaciência de alguns já se converteu em revolta. Pouco a pouco, o cenário de início da aula vai se reinstalando. Quase todos dos quarenta alunos se dispersam nas diversas atividades que não são a minha aula. A turma do jogo, a turma da conversa, a turma de pé, os dois alunos que se miram com promessas mútuas de violência… mesmo aqueles na frente já não retém a mesma atenção do início, com olhares divagantes perdidos para o nada. Paro de falar no meio de uma frase. Ninguém percebe.

O toque soa, muitos saem da sala, embora um outro professor já se dirija até ali. Cumprimento-o com um oi cansado que é idêntico ao oi que me retorna. Saio também, notando que uma única aluna, sentada na primeira carteira de uma fileira que segue encostada pela parede, ainda está anotando o que escrevi. Havia parado enquanto eu falava. Não percebi outro estudante além dela. Teria sorte se um ou dois tivessem realmente aprendido alguma coisa. Já estou pensando em registrar a próxima aula no sistema. Se pudesse, faria antes mesmo de entrar na sala. A menina da anotação detém a caneta e me olha, parecendo que vai falar algo. Paro de andar e essa estudante realmente insinua que perguntará alguma coisa, mas se arrepende antes de pronunciar qualquer palavra e retorna à anotação, meio apoiando, meio escondendo o rosto sobre e sob as mãos. Eu não insisto como um dia já fiz. Aperto o passo para a próxima sala, já meio esquecido dela. Não é o aprendizado dessa garota que registra o meu trabalho. Preciso chegar na próxima sala e acessar o sistema.

13 comentários em “Uma hora na vida – Crônica (Pedro Paulo)

  1. Pedro Paulo
    31 de agosto de 2025
    Avatar de Pedro Paulo

    Pessoal, demorei a responder, mas aqui vai. Primeiramente, obrigado a todos pela leitura e impressões. Escrevi este texto no início do ano, justamente durante a reunião em que nos foi apresentado o novo sistema digital de inserção de notas, conteúdos e frequências a ser trabalhado na rede em que estou inserido. Durante a introdução, foi enfatizado pelas mediadoras o quanto não alimentar o sistema poderia acarretar punição aos professores.

    De lá para cá, tropeços e desorientações quanto ao mesmo sistema ocorreram, assim como uma greve de mais de um mês colocou professores e Governo num embate por pautas que têm até décadas. Aparentemente, o peso dessa realidade constou no conto e fiquei surpreso como muitos o repercutiram justamente por suas experiências e noções com escola pública. Sobretudo, fui tocado pela compaixão dos comentários. Obrigado. Lembro que ao lê-los me peguei pensando que devo escrever um texto mais feliz e otimista sobre o cotidiano escolar. Não tenham dúvidas, de origens mais imprevisíveis são os momentos que fazem o profissional da educação sorrir.

    Novamente, muito obrigado pelas leituras e pela positividade!

  2. Marco Saraiva
    4 de julho de 2025
    Avatar de Marco Saraiva

    Leitura cruel. Me parece que vem do âmago, um dia ruim, registrado para sempre. Esta automatização do ensino, a robotização do professor que só aumenta a pressão que ele sente em ter que lidar com 40 (ou mais) furacões em plena atividade.

    O pior é que estamos falando do ensino de jovens adolescentes. A crônica vai além de mostrar a realidade do professor (você?), que já é cruel o suficiente. Mostra também a realidade dos alunos: o que aprenderão desta aula? Como será o seu futuro? E o sistema não permite que a única aluna que parece querer aprender tenha o seu espaço: o próximo professor já está para chegar, o professor atual tem que correr para a próxima aula, e se não o fizer, perde salário. A dinâmica não existe mais.

    Há anos eu acho que o sistema de ensino tem que mudar, e ouço isso de muitas pessoas também. São textos assim que renovam este sentimento. Muito forte!

  3. André Lima
    28 de junho de 2025
    Avatar de André Lima

    Achei muito legal, PP. É uma crônica com jeitão de conto, se pararmos pra pensar. Gosto da narrativa crua, dos parágrafos longos, da sensação claustrofóbica que as frases dão, como se estivessem amassadas para caber numa caixa, pois a narrativa é muito, imensamente maior que o que as palavras dizem.É um texto que me lembra um pouco o estilo do Givago em algumas passagens. Aliás, acho vocês dois muito bons nesse aspecto de ambientação e sensações através da forma do texto em si.A frase “Afinal, avisá-los da minha presença não registra a minha presença” é muito boa. Lembrou-me o jargão “respeito não se pede, se conquista”. Mas como conquistar se a figura do protagonista dessa crônica é simplesmente jogada a própria sorte numa arena com leões, sem espada e sem escudo?Lembrou-me também do velho debate público sobre violência urbana, especialmente aqui do Rio de Janeiro. Os relatos se aproximam, educação e segurança pública. A sensação de estar “enxugando gelo”, mas, ao mesmo tempo, se não estiver lá para enxugar, tudo rui, tudo enfim termina da maneira mais trágica possível.A boa crônica do cotidiano é assim: nos faz pensar, refletir. Nos tempos de escola, eu até que era feliz. Muitos ali, personagens dessa narrativa, lembrarão com nostalgia do contexto em que estavam, até com certo apreço. Mesmo no caos se consegue coisas positivas. Mas o fim, o objetivo, este não se alcança em sua plenitude… é isso. Dura realidade do nosso Brasil.

  4. Givago Domingues Thimoti
    25 de junho de 2025
    Avatar de Givago Domingues Thimoti

    Olá, Pedro Paulo (vulgo PP!)! Tudo bem? Essa sua crônica está muito boa. É de um teor brutal. Assim como vários outros países, a saída escolhida pelos administradores (tanto públicos quanto privados)
    foi pelo sucateamento da Educação. Essa crônica reforça isso. Se o clichê de histórias desse tipo é a velha Máxima do “se um aluno acreditar, eu mantenho essa fé…”

    • Givago Domingues Thimoti
      25 de junho de 2025
      Avatar de Givago Domingues Thimoti

      (continuando), infelizmente, não observamos a continuidade desse clichê. Resta a fé que a curiosidade inata do ser humano resida na aluna como residiu na Kelly. Enfim, cada vez mais caminhamos para um mundo no qual os professores tomarão o caminho de uma vida melhor e fora das escolas. Triste…

      Enfim, PP, eu diria que esse foi um dos melhores textos que li na área OFF. Creio que isso diga bastante para você, embora não seja uma surpresa, considerando seu talento literário! Parabéns pela crônica e muita força para você!

  5. Kelly Hatanaka
    22 de junho de 2025
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Oi PP (gostei).
    Sua crônica me deu uma sensação de tristeza e de dejà vu. Tristeza pela frustração palpável do professor (você) e dejà vu porque fiz todo o fundamental e médio em escola pública. Aquela menina que se senta na frente, encostada à parede e presta atenção na aula? Sou eu. Ela vai ficar bem. Aquilo que ela não conseguiu perguntar, ela vai pesquisar.
    Que dureza, amigo. Torço para que algum dia, alguma coisa que preste seja feita em prol da educação e vocês, professores, tenham, enfim, algum apoio e consigam dar aula com gosto.

  6. Mariana
    20 de junho de 2025
    Avatar de Mariana

    Eu tenho treze anos de sala de aula, fundamental… Cansei, já fiz tudo o que tinha que fazer ali e é esse o exato sentimento mesmo. Tu vai se amortecendo. Tentar concurso é é isso, não tenho o privilégio de poder jogar tudo pro alto.

  7. Gustavo Araujo
    20 de junho de 2025
    Avatar de Gustavo Araujo

    Creio que a qualidade literária de um texto pode ser medida pelo grau de desconforto que ele nos provoca. Claro, há textos que nos emocionam, que nos comovem, que nos fazem rir ou chorar, mas há textos, também, que nos provocam indignação, desesperança, agonia. É esse o caso aqui, nesse retrato nu da educação brasileira, mais especificamente nos ensinos fundamental e médio em que um professor, você, meu caro amigo, não pode se dar ao luxo de nutrir qualquer sentimento de esperança pela única aluna que parece se importar com a aula, eis que sua preocupação maior é atender às demandas do sistema eletrônico que pretende refletir um panorama divorciado da realidade. Triste mas verdadeiro. Por isso choca. E pior, não parece ter saída. Por isso causa desespero. Ainda assim, penso eu, é o que temos. Se você salvar um só, ou uma só, a despeito da maré de dificuldades, a despeito de qualquer sistema eletrônico, já terá valido a pena. Não sou adivinho, mas penso que no fundo é isso o que te move. Parabéns pela crônica.

    • Bia Machado
      21 de junho de 2025
      Avatar de Bia Machado

      Olá, Pedro! Que conto angustiante, porque parte dela é a minha. O único diferencial é que meus alunos têm 10 anos, ainda não se sentam nas mesas te ignorando, mas ignoram em outros momentos… E esse sistema da prefeitura, estou passando por isso desde o ano passado, ainda estressa demais… O sistema só quer o controle, de todos… Professores, alunos… Quem dera eu pudesse trabalhar só um período, ser responsável por apenas metade da quantidade que tenho todo ano, desde 2008… Ótima e angustiante crônica…

      • Bia Machado
        21 de junho de 2025
        Avatar de Bia Machado

        Abri uma caixa de texto, nem vi que foi no comentário do Gustavo, desculpa aí. Também chamei de conto no início do comentário, depois no final chamei de crônica, enfim, está na hora de dormir, rsss…

  8. Luis Guilherme Banzi Florido
    20 de junho de 2025
    Avatar de Luis Guilherme Banzi Florido

    Fala, P.P.!

    Caramba, sua crônica me deixou com um incômodo na boca do estômago. Um amargo na boca. O estado da educação pública no BRasil é alarmante, e contado da perspectiva de um professor, é algo ainda mais assustador. Sua crônica em muito se aproxima de uma história leve de terror psicológico, já que o psicológico do narrador-protagonista está devastado, e isso é o tema central da trama.

    Tirando as questões sociais que servem de base para a crônica, quero destacar que ela tá muito bem escrita, como é seu padrão. Você comentou no outro conto e sim, é real: de algum modo você sempre me conquista com o que escreve. Esse aqui não foi diferente. Deu uma sensação de impotência, desesperança, bem como você planejou. Espero que possa escrever outras histórias reais sobre um país diferente, algum dia.

    Parabéns pelo conto e também pela dedicação que sei que tem como professor. São vocês, aqueles que ainda lutam e ainda acreditam, que seguram a ponta da lança, na linha de frente da batalha por um futuro diferente.

  9. Priscila Pereira
    20 de junho de 2025
    Avatar de Priscila Pereira

    Olá, PP! Tudo bem?

    Que tristeza ler sua crônica. Não consigo nem imaginar como você realmente se sente com isso, mas conseguiu escrever uma ótima crônica, passando para o leitor o sentimento de frustração e incapacidade de mudar alguma coisa. Desejo que um dia você possa dar a aula dos seus sonhos!

    Muito respeito e admiração pela sua profissão!

    Até mais! 🥰😘

  10. Alexandre Costa Moraes
    20 de junho de 2025
    Avatar de Alexandre Costa Moraes

    Poxa, Pedro Paulo. Que triste essa realidade do ensino público, né. Pelo seu relato, continua bem parecido com a época em que estudei em escola pública (uns 3 anos). Me senti de volta à esse tempo. Era bem assim, um conflito intenso entre alunos, professores, falta de estrutura, problemas de toda ordem, caos geral. A gente só entende algumas coisas depois, e o conteúdo faz falta a vida inteira. Tem aprendizados também, claro, mas é mais sobre embate e convivência do que conhecimento teórico. Mas… não sei nem o que dizer. Sinto muito e sonho com o dia que tudo isso será diferente e melhor. Parabéns pela crônica, um recorte brutal do dia a dia nas escolas públicas.

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Publicado às 20 de junho de 2025 por em Crônicas e marcado .