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Detox Literário.

(mais) um fragmento do homem que comeu os próprios sapatos – Conto (Mariana Carolo)

Abriu os olhos azuis que não dormiam.

O seu desjejum consistiu em café com vodka, um pão com atum e banana. A vida lhe ensinou a gostar de bananas. Ali pagava caro por elas, como se realmente fossem feitas de ouro, mas, ao contrário das minúsculas berries, elas enchiam a boca e o alimentavam. Valiam o que pediam.

Na Alemanha, a terra em que nasceu, o sol brilhava de forma envergonhada.

Após o intestino funcionar, limpou a bunda com a coluna do jornal que o chamava de louco e maníaco. Sabia que a afirmação era verdadeira, o que não importava. A sua largura não cabia na brancura acolchoada do hospício. Preferia ser um maluco gastador do que um jornalista trancado em um cubículo como um rato, que bate as patinhas na máquina de escrever para ganhar cigarros.

Por um tempo se manteve calmo, em suspensão. A odisseia na Amazônia deveria ter sido o suficiente, só que não foi. A ânsia por filmar tomou-o desde que começou a sonhar com a sua garganta assaltada por formigas. Eram grandes e de formas arredondadas. O estranho é que elas brilhavam, como se fossem vaga lumes que decidiram parar de piscar. Uma minúscula horda de luz verde radiação, que, a partir da sua boca, cavavam túneis invisíveis em seu corpo ao longo das madrugadas.

Saiu e o ar da rua penetrou-o pelo nariz. No bolso esquerdo da calça, a Walther P38 pesava como uma pedra que deveria ser jogada em um lago.

Repetiu para si mesmo que tinha de lembrar de nunca mais chamar o doido do Kinski para nada. Imaginou um cadáver pequeno e loiro boiando na pesada água verde e sorriu. No fundo, gostava do quanto ele o irritava. Contudo, ainda queria filmar novamente com Mick Jagger. Uma pena não ter dado certo.

As seis balas deveriam ser suficientes. Planejou atirar em duas janelas, talvez no chão ou para cima. E, como último recurso, uma flor de metal penetraria a sua têmpora.

Não negava a sua veia dramática e suicida. Sempre teve fascínio por óperas, Eros e Tânatos brigando em um palco. Porém, pulsava mesmo pelo cinema, desgraçada arte, a razão da sua existência. Se tudo desse certo, assistiria a um filme de noite. Ainda não sabia qual, o que estivesse em cartaz. Tudo cabia na tela gigante, que transformava o ruim em bom.

Considerou a ideia intrusiva e sensual de lamber rolos de filmes.

Parou, no meio do caminho, para admirar a catedral. As abóbadas pontiagudas contra o céu azul soavam como um prenúncio de guerra. Sentiu-se estranhamente calmo com a quietude dos sinos e da praça, apertando o cabo da P38 contra a própria coxa.

Apreciava as ruas de Mainz. Era uma cidade como as outras, de vida e morte. Ali, três mil judeus foram executados, acusados de portadores da Peste. Ao mesmo tempo, foi onde Gutemberg inventou a prensa de livros e mudou a humanidade.

A sua memória o recordou de como sempre devorou livros. Tinha muita fome desde menino. Tácito, Tito Lívio, Suetônio, Marcelino. Além da história romana que nunca abandonava, os seus últimos meses foram dedicados a ler todo o Milirrpum v Nabalco Pty Ltd e seus desdobramentos.

Pilhas de folhas que despertaram o apetite das formigas verdes. Por causa delas, acordava suando e sem conseguir emitir qualquer som. Não conseguia identificar de onde elas surgiam, mas, entendeu que elas exigiam que ele contasse a história. Uma parte sua se considerava honrada de ter sido escolhida por elas. A outra, tinha medo que elas carregassem os seus dentes embora.

Desde jovem tinha a consciência de que nasceu para ser uma espécie de escriba moderno, registrando terras distantes e as suas vidas em imagens. Não sabia trabalhar com outra coisa que não o cinema. Odiava a metalurgia, que queimava mãos e sonhos. Em outra realidade, poderia ter virado um sapateiro. Gostava da ideia de pegar o couro em suas mãos, cortá-lo, costurar e transformar o pedaço de matéria morta em outra coisa. A loja pela qual passou indicava a calmaria da profissão, com o dono encarando bovinamente a rua enquanto esperava alguém para calçar.

Era provável que causasse um novo desastre.

Financeiro, emocional, mais pernas sendo cortadas por motosserras. Apesar da culpa, aceitou a missão de fazer o filme. Pesou na balança e todos os seus erros eram menores. Só que, para isso, precisava de dinheiro. Mesmo que não entendessem, iria até as últimas consequências, expropriar pelo sagrado da arte.

Chegou na frente da sede da emissora. Perto dele, meninos de fardamento vermelho e branco corriam com uma bola de futebol. A carreira como jogador profissional era uma alternativa mais provável do que a de sapateiro e também envolvia pedaços de couro. Jogava bem, como se fosse brasileiro. Um dos garotos chutou a bola, que quebrou a vidraça do edifício e fez com que as mulheres no recinto gritassem. Achou graça no bando fugindo.

Passou pela primeira recepcionista, pegou o elevador. Não há detectores de metais no prédio. Subiu oito andares, a cabeça baixa em sinal de respeito à caixa de metal que o cercava. Um pequeno instante e ela poderia acabar com tudo. Viu-se estraçalhado no fundo do poço, cravejado de ferragens. São Sebastião. Associou-o a sacralidade de suas invasoras e o quanto elas precisavam dele. Apalpou a Walther e suspirou.

Entrou no escritório principal e uma secretária loira o convidou a tomar um café, enquanto avisava o seu chefe da ilustre presença de Werner Herzog. Aceitou a bebida, que achou doce demais. A poltrona de espera, no entanto, era confortável. Um couro marrom e cheiroso.

A moça o olhava e ele leu em seu rosto uma veia de preocupação, como se ela temesse que ele quebrasse algum vaso caro. Parecia que cuidava alguma criança rica, que pensa que pode destruir tudo. Não, ele não faria nada que a prejudicasse. Porém, a música ambiente lhe arrancou uma careta involuntária de desprezo, o quanto aquelas melodias eram patéticas em sua animação inofensiva. Sim, já iria ser recebido.

Estava pronto para matar e morrer.

— Werner, seja bem-vindo!

O cheque também estava pronto. Não houve resistência, negativas, discussões, nada. Aquele homem não lhe deu a chance de sequer empunhar a arma. Iam lhe fornecer o dinheiro, as passagens para a Austrália, o que precisasse. Ele era uma estrela alemã e  estavam sedentos pela publicidade que uma nova aventura do cineasta selvagem poderia trazer. A única cláusula era a de que ele deveria registrar também os bastidores e tudo o que ocorresse ao longo da empreitada. Pensavam em criar um programa, seria sucesso garantido e cobriria os custos de qualquer insanidade.

Aceitou o papel com o número que tinha nele.

A volta teve como trilha o seu assovio frustrado. Infernal Galop. Queria ter dado alguns tiros. Ação! Parecia que, no seu bolso, a pistola também reclamava. Acalmou-a com o suor de suas mãos e com o cheque que foi lhe fazer companhia.

Voltou para casa, esperou e foi ao cinema. O filme contava a história de uma vampira que estava envelhecendo. Também sentiu o peso da idade chegando nos seus ombros, mas iria continuar. No futuro, terá oitenta, noventa anos atrás de uma câmera, atravessando a Antártida, entrando em templos astecas, ainda contemplará com entusiasmo as teias do mundo… Até o fim.

Enquanto devaneava, misturava os dois sacos de pipoca em seu colo. Salgada, doce, doce, salgada, salgada, doce, salgada… A festa deixava vestígios de manteiga e açúcar em seus dedos.

O quarto vazio causava sono. Dormiu e se encontrou com a horda de formigas luminosas. Dessa vez, elas fizeram uma fila para entrarem por sua boca e pareciam mais amistosas. Acordou com todos os dentes intactos.

Uma semana depois, antes do sol reinar, já estava arrumando a sua mochila. Pegaria o voo para Sydney em poucas horas. Levava consigo três obras sobre o tráfico de escravos na África, uma  sobre aborígenes, gravações de diversas óperas e uma Polaroide. Queria comprar uma faca, mas não no aeroporto. Quando chegasse, em alguma feira australiana. Uma lâmina, para enfrentar os animais monstruosos da Oceania.

Embarcou ansioso.

No deserto, as formigas verdes dançavam. Estavam à sua espera.

6 comentários em “(mais) um fragmento do homem que comeu os próprios sapatos – Conto (Mariana Carolo)

  1. Thiago Amaral Oliveira
    31 de janeiro de 2025
    Avatar de Thiago Amaral Oliveira

    Gostei muito do conto, que me fez rir em vários momentos.

    Ouso dizer que ficou ainda melhor que o anterior, o do circo. Aqui, dá pra ver mais da mente do cineasta e suas loucuras. Pelo menos é o que me parece, baseado no pouco que conheço dele.

    Imagine fazer um conto dentro da cabeça do Kinski, então, que loucura?

    Ansioso para ler mais coisas suas, Mariana. Parabéns!

  2. andersondopradosilva
    17 de janeiro de 2025
    Avatar de andersondopradosilva

    Olá, Mariana! Depois de ter esquecido o livro em casa, este seu conto me fez companhia enquanto aguardava uma pizza pra viagem… Tenho gostado de tudo que tenho lido seu. Obrigado por compartilhar!

    • Mariana
      17 de janeiro de 2025
      Avatar de Mariana

      a pizza tava boa?

      hehehee obrigada pela leitura

  3. Kelly Hatanaka
    7 de janeiro de 2025
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Muito interessante! Deu vontade de saber mais sobre Herzog e sobre Kinski. Gostei a maneira como vc desenhou os pensamentos e ímpetos do homem que comeu os sapatos.

  4. Priscila Pereira
    3 de janeiro de 2025
    Avatar de Priscila Pereira

    Olá, Mariana! Tudo bem?

    Muito boa essa sua série sobre o homem que comeu os próprios sapatos! Não conhecia e agora quero assistir seus filmes e conhecer mais sobre sua vida.

    Você emulou muito bem a mente de um gênio criativo, de certo por você mesma ser uma! Gosto muito dos seus contos!

    Parabéns pelo conto e espero ler mais contos dessa série!

    Até mais! 😘

    • Mariana
      3 de janeiro de 2025
      Avatar de Mariana

      Você é muito gentil e eu adoro ler os seus comentários. Obrigada pelas palavras

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Publicado às 2 de janeiro de 2025 por em Contos Off-Desafio e marcado .