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Detox Literário.

Caderno Proibido – Alba de Céspedes – Resenha – Kelly Hatanaka

12 DE OUTUBRO DE 2024

Hoje, comecei a ler o Caderno Proibido. Apesar das ótimas críticas, iniciei minha leitura sem grandes expectativas. Normalmente, tenho mais sorte com aqueles livros que são amados por uns e odiados por outros. Ou com aqueles com os quais ninguém se importa mesmo.

Mas, rapidamente, meu ceticismo foi substituído por certo atordoamento. Estamos em Roma, 1950. Valeria Cossati compra seu caderno clandestino e nele relata seus pensamentos clandestinos. Esconde seu caderno clandestino em algum canto da cozinha, que, por isso, se torna clandestina.

Por que, me perguntei, tanto caso por um caderno? Por que ele tem que ser um segredo?

Porque a existência deste caderno é uma evidência de que Valeria possui uma vida particular, um universo íntimo e pensamentos perturbadores. Uma ideia que, ao ser sugerida a Michele, seu marido, e a Mirella e Riccardo, seus filhos, causou risos e comentários carinhosos. Condescendentes.

Valeria busca um lugar privado em sua casa. Um recinto onde pudesse escrever a sós. Uma gaveta que pudesse fechar à chave para guardar seu caderno. Não há. Ela percebe que não possui um espaço pessoal. Por isso, esconde o caderno dentro do açucareiro e escreve escondida depois que todos vão dormir.

Senti vontade de chorar.

 

14 DE OUTUBRO DE 2024

Fiz mal em começar a ler este livro. Muito mal, mas agora é tarde para lamentar. O estrago já está feito e eu me questiono o quanto eu tenho de Valeria em mim. Certamente, muito mais do que a própria Valeria, que não tem uso sequer para seu nome. Ela é “mamãe” para os filhos e o marido. Sim, para o marido. Ela é “filha” para seus pais. Ela é “Cossati” para as amigas com as quais não tem mais nada em comum. Ela representa, para cada pessoa, uma função. E não é mais Valeria para ninguém.

 

15 DE OUTUBRO DE 2024

A culpa é do caderno. O maldito caderno, encerrado em seu esconderijo, que torna a casa toda clandestina. O caderno em que Valeria escreve todas as noites, escondida. O marido pensa que ela escreve cartas, tem ciúmes, dos quais logo esquece. Os filhos nada percebem, ocupados que estão com seus próprios dramas. Valeria escreve madrugada adentro e, ao longo do dia, lida, cansada, com o trabalho, a casa e as feridas revolvidas pelas palavras.

A vida lhe parecia melhor quando não escrevia e podia esquecer da rebeldia da filha, das reclamações do filho, das frustrações do marido, do cansaço, da velhice e da falta de dinheiro. Quando a passagem do tempo podia diluir a importância dos problemas e manter tudo como sempre foi.

O caderno e as palavras registradas nele não permitem mais o esquecimento. Ter acesso a seu próprio universo íntimo é um fardo que era esquecido enquanto Valeria representava seus vários papeis. Agora, seus pensamentos são palavras registradas em papel e a assombram.

 

17 DE OUTUBRO DE 2024

A velhice se confunde com inutilidade. Mirella não precisa mais dela e a afasta. Riccardo, por seu lado, precisa cada vez mais e a exaure, além do que ela pode prover. Michele ilude-se com uma última chance de grandeza, enquanto ouve Wagner. Os filhos a puxam e empurram em diferentes direções e em todas, ela é inútil.

Há a possibilidade de uma nova fantasia de juventude, de ser Valeria novamente para alguém. Guido, o chefe de Valeria. Se Valeria é uma mulher sufocada por seus papeis, Guido é sua contraparte masculina. Se ao menos a clandestinidade pudesse ser eterna…

 

19 DE OUTUBRO DE 2024

Mirella. No começo, uma forte antagonista da mãe. Ao longo da história, ações de mãe e filha mostram-se espelhadas. A tão dolorida diferença resvala numa igualmente dolorida semelhança. Quantas “Mirellas” Valeria precisou silenciar dentro de si? Mas Mirella não se deixa silenciar. Ela aponta um caminho diferente, que Valeria, apegada ao passado, desaprova, mas que bem poderia ser sua salvação.

A mãe de Valeria, aristocrata falida, é outro espelho. Ela é o passado que, mesmo sendo passado, aponta para o futuro. Um vestido velho, dentro do qual Valeria vai entrando sem perceber, um papel que ela começa a interpretar, sem escolha. Seu nome nunca aparece na história. Se Valeria não é mais Valeria para ninguém, tampouco sua mãe. Esta é tão somente a mãe, a sogra, a avó. Aquela que faz os melhores tortellini.

 

20 DE OUTUBRO DE 2024

Estamos em Roma, 1950.

Mas poderíamos estar em qualquer lugar e em qualquer tempo.

7 comentários em “Caderno Proibido – Alba de Céspedes – Resenha – Kelly Hatanaka

  1. Gabriela Pacheco
    7 de fevereiro de 2025
    Avatar de Gabriela Pacheco

    Li muitas resenhas desse livro tão introspectivo e reflexivo . Essa, sem dúvida, foi a mais interessante… Beira perfeição.

  2. claudiaangst
    25 de janeiro de 2025
    Avatar de claudiaangst

    Maravilhosa sua resenha, Kelly, impecável. Quem já teve a oportunidade de ler a obra de Alba de Céspedes percebe logo a familiaridade com a “cara” do livro. Você acertou muito na escolha da estruturação do seu texto.
    Eu terminei a leitura há pouco tempo, e meu exemplar está todo grifado e anotado (mas tudo no capricho, com zelo de quem pretende manter o diário para sempre). Como mulher foi impossível não me identificar com os conflitos de Valeria, muitos eu vivi, alguns eu superei, outros ainda estão por aqui a me atormentar. Como homem, como mulher, como ser humano, todos podem se beneficiar (e sofrer um pouco também) com esse livro. É maravilhoso mesmo e assim como você, recomendo fortemente a leitura.

  3. Gustavo Araujo
    25 de dezembro de 2024
    Avatar de Gustavo Araujo

    Esse é o tipo de resenha da qual ninguém sai incólume. É o que torna um livro já aclamado ainda melhor. Impossível resistir. Quantas Vitorias não conhecemos, quantas Vitorias não se escondem pelas sombras, solitárias, entregando suas confissões às páginas amareladas de um caderno qualquer? Obrigado, Kelly, por nos levar a contemplar o abismo. Ele certamente nos encarou de volta.

    • claudiaangst
      25 de janeiro de 2025
      Avatar de claudiaangst

      Trocou o nome da protagonista, Gustavo. É Valeria. 🙂

  4. André Lima
    23 de dezembro de 2024
    Avatar de André Lima

    Muito legal a resenha, Kelly! Parece-me aqui que “o caderno” é um personagem importante na trama, dividindo o protagonista com a Valeria.

    Me lembrou de “O Caderno”, de Toquinho.

  5. Priscila Pereira
    20 de dezembro de 2024
    Avatar de Priscila Pereira

    Caramba, Kelly!

    Que vontade que deu de ler o livro!

    Até em resenha vc é boa, pelo amor de Deus, né, assim já é demais…. Deixa um pouco de talento pros outros 😅

    • Kelly Hatanaka
      23 de dezembro de 2024
      Avatar de Kelly Hatanaka

      Ah, obrigada, Pri!

      Procurei escrever esta resenha com a “cara” do livro. Que é maravilhoso, realmente recomendo.

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Publicado às 20 de dezembro de 2024 por em Resenhas e marcado , , .