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Detox Literário.

A Orquídea – Conto (Vladimir Ferrari)

Sentir o perfume dos cabelos dele a fazia evocar um bosque no auge da primavera. Cheiravam assim, após ter adotado o shampoo novo. Vera se aconchegava ainda mais, grudando-se ao corpo moreno sob os lençóis, espremendo os seios em suas costas e se encaixando. Como uma roupa desenhando os contornos dele. O despertador a tirou do deleite. Girou o corpo e tocou o botão para silenciar o aparelho. O Sol se insinuava pelas cortinas entreabertas. Calçou pantufas e saiu do quarto, passando o dedo entre os cabelos para depois amarrar o roupão na cintura.

Preparou o de sempre: café, leite, algumas torradas. O pão da tarde anterior, requentou no micro-ondas. Daiane surgiu no uniforme da escola, Roberto no terno. Ela ajeitou o nó da gravata. Um beijo rápido, o perfume da loção pós-barba.

“Nossa! Deu tempo de pôr o terno e fazer a barba? Demorei tanto assim para fazer o café hoje?”

A filha pediu aos dois para ir ao clube naquela noite. Ensaios da peça de teatro: “O Mágico de Oz”. O olhar de cumplicidade com o marido, os sorrisos e o aceite.

— Vai ter futebol hoje e à tarde. Você vai comigo, está bem? — disse ele.

— Bonito! Os dois vão se divertir e a tonta fica em casa, vendo TV — reclamou sorrindo.

— Ah, Mãe! Qualé? Vamos assistir ao ensaio também? Vai ser legal.

— Não quero fazer comparações, Daiane — disse à menina — Lembra que lhe contei sobre ter feito essa peça na época do colégio? Vou ficar julgando e…

— Você sabe como é sua mãe, filhota! — emendou Roberto, mordendo a torrada.

Os dois foram para a rua e Vera foi para o banho, trocou-se e foi para o consultório. Quarta-feira era dia de Dona Antônia e sua rixa com a irmã. À tarde, teria Rodolfo com seu TOC. Se não houvesse nenhuma surpresa na agenda, estaria livre por volta das quatro da tarde. Antes de almoçar, titubeou diante da floricultura:

— Queria tanto colocar essa muda de orquídea naquele galho diante da janela da cozinha — pensou. Paquerava a rama florida na vitrine há tempos. Um estranho sentimento invadiu seu coração. Uma necessidade expressa de entrar na loja, como se aquilo fosse crucial para o restante do dia, da vida.

Adorava flores. Tinha inúmeros vasos amarrados ao muro além da citada janela e a quaresmeira tinha ultrapassado o campo de visão. As flores ficavam no alto e se não houvesse cor no muro, restava observar o tronco meio seco, meio descascado e o verde ao fundo. Uma cascata de orquídeas phalaenopsis amabilis ficaria maravilhosa ali. Adaptadas ao local, poderiam perdurar por três meses, ouvira dizer.

Entrou na loja e algo mágico invadiu seu coração. Alegrou-se por decidir levar. Precisaria da ajuda de Roberto, para instalar a nova habitante da casa.

“Ele deixará o futebol para mais tarde, com certeza.”

— Se bem que, tem aquele negócio de “segundo quarto”, sei lá — tranquilizou-se.

Rodolfo, o paciente, estava angustiado. Não conseguia se tranquilizar e desobedeceu às regras que ambos haviam estabelecido diante das situações de estresse. Vera reforçou todo o trabalho de concentração e administração da atenção com ele e saiu apressada, torcendo para chegar em casa antes do marido. Passava — e muito — das quatro da tarde. Os dois haviam combinado partir para o clube por volta das cinco e meia.

Colocou a muda sobre a mesa da cozinha. Foi separando todas as ferramentas e apetrechos para a instalação. Era um capricho, sabia disso. Poderia muito bem deixar para a noite seguinte:

— Mas e se chove? E se ele arranja outro compromisso? Vendo a muda e as coisas de jardinagem, vai entender que pretendo fazer isso hoje. Só irão se atrasar um pouco, ora bolas.

E foi dito e feito. Ele não se importou de participar apenas do “segundo quadro” — riu sobre o “segundo quarto” — e Daiane não se aborreceu por perder um pedaço da peça. A muda estava instalada. Vera ficou apreciando sua nova queridinha. A iluminação da rua tornou-se dominante ali na lateral da casa e deixou o zelo para o dia seguinte. Tomou seu banho e deixou pratos prontos, com o jantar, para seus outros dois tesouros.

Sentou-se diante da TV e distraiu-se mais com as conversas de seus pacientes naquela tarde do que com a programação. Os dois chegaram. Conversou com a filha sobre os personagens da montagem da peça na sua época e de como interpretou o Homem de Lata, mesmo sendo mulher.

Roberto aconchegou-se a ela no sofá. Logo todos foram para a cama. Apesar dos chamegos, não fizeram amor, pois ele alegou cansaço. Adormeceu feliz.

Quando o sono ficou pesado, girou o corpo na cama, se ajeitando.

Viu-se a sós.

Ergueu-se sobre os cotovelos e vasculhou a penumbra do quarto. Algumas coisas pareciam fora de lugar. Havia um suporte para soro fisiológico ao lado da cama e algo lhe dizia que ali não era seu quarto de dormir. A cama era estreita, a janela menor. Via a lateral de outros prédios lá fora, pela fresta das cortinas brancas.

— Hospital?

Um interruptor na parede brilhava na semiescuridão e dava para ler o rótulo “ENFERMEIRA” grudado logo acima do botão. Sentia-se zonza. “Remédio? Fui sedada?” — pensou.

Ajeitou-se para pressionar o botão e então notou alguém se levantando de uma cadeira no canto daquele quarto. “Você acordou, Verinha!” — reconheceu a voz da mãe. Ela se adiantou e a abraçou, pressionando o botão e ligando um abajur na cabeceira.

Ao afundar o rosto no peito da mãe, lembrou-se de que não comprou orquídea alguma. Ficou pregada na calçada, admirando a brancura das flores e o arranjo lindo no vaso de plástico, mas desistiu. Lembrou-se de considerar: “Posso comprar amanhã!”

Roberto e Daiane não se demoraram em casa e foram ao clube ali pelas cinco e meia. Estava vendo a novela, entretida, quando a campainha tocou e um policial estava na porta:

— Dona Vera da Conceição? Infelizmente, houve um acidente…

8 comentários em “A Orquídea – Conto (Vladimir Ferrari)

  1. JP Felix da Costa
    25 de outubro de 2024
    Avatar de JP Felix da Costa

    Eu gostei deste conto. É de um estilo que gosto bastante, para além de que tem um twist final mesmo ao meu estilo.

    A apontar tenho apenas a transição realidade-sonho que me parece que poderia ser melhor explorada. Não cria aquela sensação de “algo está errado mas não sei o que é” que depois potencia o twist.

    Exceto isso, gostei bastante da história e prendeu-me até ao fim.

    Parabéns

    JP

  2. Antonio Stegues Batista
    8 de outubro de 2024
    Avatar de Antonio Stegues Batista

    Um bom conto do cotidiano tem que ter uma reviravolta no final e esse não deixou de ter uma surpresa, trágica e comovente. Parabéns.

  3. Gustavo Araujo
    7 de outubro de 2024
    Avatar de Gustavo Araujo

    Olá, Vladimir. Gostei do conto. É rápido e certeiro, bem escrito e com o drama trabalhado na medida certa. Achei bacana a maneira como você construiu o enredo, focando na relação familiar, manipulando o leitor no melhor sentido da expressão, tudo para dar um ippon no fim, um arremate inesperado mas bem encaixado. Ficou muito bom.

  4. Priscila Pereira
    30 de setembro de 2024
    Avatar de Priscila Pereira

    Olá, Vlad! Tudo bem?

    Ótimo conto!! A escrita está segura e flui muito bem, e o tom cotidiano e casual dá ainda mais impacto para o final. As vezes a nossa mente prega peças, tentando nos mostrar o que teria acontecido “se” …

    Vera vai ficar eternamente arrependida de não ter comprado a orquídea que tento queria…

    Parabéns, é um ótimo conto!

    Até mais!

  5. Kelly Hatanaka
    30 de setembro de 2024
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Curto e impactante. Muito bom!

    O começo soou meio estranho, a decisão de instalar a orquídea naquele mesmo dia, fazendo marido e filha se atrasarem, pareceu meio esquisita, mas no final, tudo se encaixa.

    De jeito nenhum eu imaginei esse final.

    Parabéns!

  6. Givago Thimoti
    29 de setembro de 2024
    Avatar de Givago Thimoti

    Boa noite!

    um conto bom e curto que aborda uma parte banal do cotidiano da personagem. Está bem escrito e arrebata mais pelo plot twist inesperado do que pela escrita mais lúdica. Acho que eu gostaria de ter lido um pouco mais desse aspecto.

    Ainda assim, não ofusca em nada.

    Obrigado por compartilhar seu texto conosco!

  7. André Lima
    28 de setembro de 2024
    Avatar de André Lima

    É impossível não fazer comparações com o conto “Mar do Silêncio” do desafio passado.

    Aqui vemos uma narrativa do cotidiano, coisa totalmente diferente do conto supracitado, mas o plot é muito semelhante.

    Particularmente, gostei bastante deste aqui. A simplicidade com que o cotidiano é narrado, com todas as camadas da família sendo bem exploradas, dão uma força potente ao final do conto.

    Gostei bastante da leitura leve e impactante!

    • vlaferrari
      29 de setembro de 2024
      Avatar de vlaferrari

      Muitissimo grato, amigo, pela análise. Esse conto é do primeiro semestre de 2024, quando ainda estava criando para concursos.

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Informação

Publicado às 28 de setembro de 2024 por em Contos Off-Desafio e marcado .