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Detox Literário.

Cidade sem nome – Conto (Jorge Santos)

Prólogo

Por ser única, a Cidade não tinha nome. Foi construída à pressa, por gente que tentava salvar a vida do caos que se tinha instalado por todo o lado. Com o passar dos anos tornou-se uma massa amorfa de edifícios grotescos, sem a mínima consideração estética. O lixo e a imundice grassavam pelas ruas esburacadas, a pobreza e a doença minavam as gentes que sobreviviam como podiam. As autoridades não passavam de palavras insignificantes numa cidade onde o crime imperava. Klaus Sektor era o verdadeiro rei da Cidade sem nome. Um gigante com o corpo modificado com o objectivo de se tornar invulnerável.

Ou, pelo menos, era assim que ele pensava.

 

Capítulo 1 – O fim da inocência

Lilly Sektor tinha seis anos. Segundo o pai, Lilly tinha herdado a beleza angélica da mãe. O profundo olhar azul, o rosto do mais puro mármore e longo cabelo encaracolado louro, trazia a Klaus uma profunda mágoa. Ella tinha falecido um ano antes. Em pouco mais de seis meses, o cancro ósseo corroera-lhe o corpo. Durante esse tempo apegou-se ainda mais à sua única filha. O seu tesouro. A única pessoa a quem ele deixava ver o seu lado mais humano. Aos outros, mostrava a sua força e inteligência. Em pouco mais de quinze anos, Klaus passou a controlar a cidade, sempre atento a novos pretendentes ao seu lugar. Vivia encerrado na cobertura de um prédio com quinze andares, um autêntico forte, supostamente intransponível.

Klaus estava no seu gabinete. As paredes estavam cheias de ecrãs que mostravam vídeos de vigilância e diagramas com o que se passava em toda a cidade. Os drones sobrevoavam permanentemente a cidade e um computador com inteligência artificial avançada avaliava qualquer eventual situação de perigo. Lilly brincava a um canto. Da janela via-se toda a cidade. Caótica e desordenada. Os placards de néon anunciavam produtos, automóveis a hidrogénio entupiam as estradas, alguns veículos atravessavam os céus. O barulho era intenso. Ouvia-se o som de disparos. No mapa acenderam-se as luzes vermelhas. Klaus examinou a situação, depois sorriu. Não esclareceu a filha do motivo do sorriso. Precisava da inocência da filha à sua volta. Era isso que lhe fornecia a força de que precisava para continuar.

Olhou para ela e sorriu. Depois, um barulho despertou o animal que havia nele. O desengatilhar de uma arma. Puxou a filha para ele e ligou o escudo. Um cilindo de energia pura ergueu-se até ao tecto. No centro estava Klaus e a filha, que ele pegou ao colo. Eram quatro, que entraram na sala de controle, armas apontadas para Klaus. Reconheceu-os.

“Traidores!”, gritou, mas ficou calado com a entrada de um quinto homem. Era baixo e tinha o olhar frio.

“Tu! Aquele a quem salvei a vida e tirei da lama!”, berrou Klaus.

Igor limitou-se a sorrir, rodeando Klaus e a filha.

“Devias saber melhor quem tens a teu lado, Klaus! Há anos que planeamos isto. Mas só agora foi possível…  a tua morte vai abrir o caminho para um novo senhor desta cidade. Eu.”

Klaus riu-se.

“E como pensas fazer isso? Eu sou invulnerável.”

Igor sentou-se no chão. Olhou para Lilly, que ainda estava nos braços de Klaus, onde eram visíveis os implantes metálicos.

“Tu pensas que a força é tudo o que interessa. Perdeste tudo por causa disso, Klaus. Há sempre alguém mais forte. Neste caso: eu. Eu sei que a verdadeira força reside na mente. Quem controla a mente controla a força. É tão simples como isso. É pena que não soubesses disso.”

Klaus fitou Igor. Era a pessoa mais insignificante que ele tinha ao seu serviço. Sabia que era inteligente e ambicioso.

“Daqui a dois minutos vai chegar a minha guarda de honra, homens que vão ser-me fieis até à morte. Eu sou invulnerável até ao mais forte dos ataques psíquicos. Devias saber disso, Igor.”

Igor levantou-se. Olhou fixamente para Lilly e disse: “Eu conheço a tua invulnerabilidade. Mas não estava a falar de ti. As pessoas que te rodeiam não têm essa capacidade.”

Igor fez um gesto. Lilly tirou uma agulha que tinha escondida na manga e, sem hesitar, espetou-a no braço de Klaus, num dos poucos pontos que não estava coberta pelo implante metálico. Klaus olhou para a filha e caiu no chão, inanimado. Lilly carregou no botão para desligar o escudo, um dos homens de Igor aproximou-se de Klaus e deu-lhe um tiro na cabeça.

A menina ficou a ver a cena, parecendo não estar ali. Viu o sangue, o olhar inexpressivo do pai. Quis chorar, mas Igor ordenou que não chorasse nem ficasse triste e ela não chorou nem sequer ficou triste. Foi-se embora com ele como se fosse um boneco sem vontade própria.

 

2 – Sem anestesia

O carro estacionou no meio do lixo e sob o olhar atento de várias pessoas. Um segurança saiu do carro e abriu a porta a uma mulher jovem, de formas sedutoras. O outro saiu, vagarosamente e olhando para a vizinhança, com a mão dentro do casaco de cabedal preto. Não fossem eles quem eram e poderiam ter problemas naquele bairro. Mas todos sabiam quem eram e a ninguém, absolutamente ninguém, passaria pela cabeça atacá-los. Eram intocáveis. Se lhes acontecesse alguma coisa não seriam apenas eles ou as suas famílias a sofrer as consequências, mas o bairro inteiro. O segundo segurança tirou uma esfera do bolso, que atirou ao ar. Da esfera saíram quatro lâminas que formaram uma hélice. Começaram a rodar, elevando o drone muito além da altura do edifício. O segurança apontou para uma varanda, onde um homem observava a cena. Este tirou uma pistola da cintura e pousou-a no chão da varanda, erguendo as mãos numa atitude apaziguadora.

“A zona está segura”, disse o segundo segurança, numa voz gutural.

O primeiro segurança abriu a porta à mulher e ambos entraram no edifício, que não podia contrastar mais com o luxo evidente da mulher, que tudo ignorava. Subiram três andares (o elevador tinha um cartaz em chinês a indicar estar avariado). Pararam à frente da porta 315. Não precisaram de bater à porta, que se abriu naquele mesmo instante. Dentro do apartamento estava um homem de cabelo branco comprido. Não teria mais de quarenta anos – uma idade respeitável naquela cidade  – , óculos de lentes escuras que pareciam incrustados na cara. A mulher fez um gesto ao segurança, que ficou à porta, depois de alguma hesitação.

“Espera aqui”, disse ela numa voz sintetizada. Era uma mulher de extrema beleza, mas a cara tinha evidentes sinais de maus-tratos. Ela entrou no apartamento sem qualquer hesitação, mesmo sem ter alguma vez entrado ali. À sua volta só via equipamentos eletrónicos e lixo. O mau cheiro era indescritível, mas ela não o conseguia sentir: tinha o nariz e o maxilar partidos.

“Sente-se”, disse ele, sem qualquer tipo de cerimónia. Ela sentou-se numa cadeira que ocupava o centro da sala.

“Abra a boca”.

Ela abriu a boca a custo. Estava profundamente drogada, mas o produto estava a perder efeito.

“Isto vai doer. A anestesia que tenho é fraca. Ou prefere sem anestesia?”

Ela lançou a mão ao bolso e mostrou-lhe um saco com um pó branco. Ele pegou no saco. Aproximou um dedo do pó e da ponta do dedo saíram duas minúsculas sondas que se enterraram no produto.

“Tem boa qualidade. Não esperaria menos.”

“Despache-se”, disse a voz sintetizada. Ela escrevia com a mão direita num pequeno teclado que tinha no punho do braço esquerdo. Ele preparou a anestesia, não voltando a falar.

 

3 – O pedido

Lilly Sektor tornou-se uma visita frequente ao consultório de Bram Pratt. Era a única justificação para sair de casa. A única mostra de liberdade. Pratt era um homem estranho, mesmo para ela que vivia num mundo de homens estranhos, onde o crime e a violência imperavam. Pratt era diferente. Era um médico autodidata, exclusivo. Tinha uma grande parte do corpo com implantes e modificações, algumas delas feitas por ele próprio. Tinha um tumor no cérebro, que controlava com implantes que ele próprio fizera. Esse mesmo tumor tirara-lhe a visão, que substituíra por um implante ocular, e impedia-o de sentir dor, o que ele apreciava particularmente. Mesmo assim, sabia que podia morrer a qualquer momento o que, tanto ele sabia, ainda não tinha acontecido.

Lilly viu-se ao espelho, depois de mais uma consulta. O maxilar ainda estava num ângulo invulgar. Pelo menos já conseguia comer e beber sem ser por uma palhinha.

Ela atirou dois créditos para a mesa.

“Precisava de falar consigo. A sós. Sem ouvidos.”, sussurrou ela.

Pratt olhou para a porta do apartamento. Do outro lado estava o segurança que devia estar, naquele preciso momento, a ouvir a conversa deles. Pratt pegou num comando remoto e ligou a aparelhagem sonora. Iron Maiden, no máximo. Ela sentou-se na cadeira.

“Preciso da sua ajuda.”

“Toda a gente precisa. Mas só alguns podem pagar os meus serviços. Especialmente quando são exclusivos.”

“Todos temos necessidades diferentes. Quando eu era criança, Igor Singh infectou-me o cérebro com neurites. Sou obrigada a fazer aquilo que ele quer. Não tenho vontade própria e todos os dias vivo com os remorsos daquilo que fiz. Todos os dias vejo a cara do meu pai, depois de lhe terem dado o tiro. Igor obrigou-me a ver, tal como me obrigou a gostar de viver com ele. Eu sou o seu troféu, agora que ele é o homem mais poderoso da cidade. Eu quis ir-me embora, fugi, mas não há nenhum sítio nesta cidade onde me possa esconder. Há sempre um espião, alguém ligado a Igor. E não há nada fora da cidade, apenas deserto. Uma mulher denunciou-me. Uma pessoa que eu tinha como amiga e em quem depositei toda a minha confiança. Ela vendeu-me a Igor, como Judas traiu Cristo. Como punição, em vez de me matar humilhou-me. Preferia mil vezes a morte. Ele mandou-me entrar num quarto onde estavam quatro homens. Deixou que me violassem. Pior: mandou que eu quisesse, e eu desejei aqueles quatro homens. É assim que ele me controla. No final, o maior dos quarto deu-me um murro que me partiu o maxilar.”

Pratt ficou impávido e sereno. Vivia há tempo suficiente naquela cidade para se ter habituado a histórias de sofrimento como aquela. A cidade sem nome e sem lei forçava todos aos seus limites.

A música mudou. Pratt aumentou ainda mais o volume.

“Tu és o melhor neuro-hacker da cidade”, disse Lilly.

“Eu só consigo lidar com pequenas infecções de neurites. Não me parece ser o seu caso.”

“Faça o que puder. Imploro-lhe.”

Lilly sentou-se novamente na cadeira mas, pela primeira vez, não teve de abrir a boca. Pratt sentou-se num banco por trás dela e colocou as mãos na cabeça de Lilly.

“Isto vai doer e, desta vez, não podemos usar anestesia.”

“Eu aguento.”

Dos dedos biónicos que tinha em cada mão saíram sondas que se cravaram no couro cabeludo de Lilly, e ela berrou ainda mais alto do que a música.

“Eu vou introduzir neurites no seu cérebro. São pequenas máquinas, um prodígio de nanotecnologia. Elas infectam o cérebro e estabelecem ligações com os neurónios. Através delas posso saber o que está a pensar.”

Pratt vasculhou no cérebro de Lilly, e o que encontrou não era animador.

“O seu cérebro está bastante afectado. Não consigo eliminar a infecção.”

Lilly olhou para Pratt, sem conseguir processar o que ele tinha dito. Levantou-se.

“Então não há solução para o problema?”

Pratt abanou a cabeça.

“Fiquei com sede.”

“Há whisky naquele armário.”, indicou Pratt.

Lilly aproximou-se do armário, verificou que a porta estava fechada e precisava de código, introduziu-o e tirou a garrafa.

“Já não há cavalheiros neste mundo.”, disse ela, deitando o líquido amarelo no copo menos imundo que encontrou.

“Diga-me, Pratt: agora também é capaz de me controlar? Basta-me um filho da puta na minha cabeça.”

“Consigo. A prova disso é que a Lilly foi capaz de saber o código do armário das bebidas.”

Ela ficou pensativa, depois riu-se. Tinha ficado com um sorriso estranho, intercalado com espasmos de dor.

“Portanto, vou ficar ligado a ele, a menos que o mate?”

“Faria um favor a esta cidade.”

“Não consigo. Mas posso torná-lo um homem rico, Pratt. Creio que não seria a primeira vez que mataria alguém.”

Pratt pensou um instante. Aquela seria coisa mais importante e perigosa que faria na vida. Também ele tinha contas pessoais a ajustar com Igor. Delineou um plano.

“Aceito, mato-o pro bono, mas preciso da sua ajuda.”

 

4 – O plano

Igor, para além de ser o homem mais poderoso da cidade, raramente saía do edifício que antes tinha sido de Klaus. Uma autêntica fortaleza de segurança reforçada. Pratt nunca conseguiria entrar, mesmo explorando uma falha do sistema. No cúmulo da preguiça de Igor, ele deixara a autorização de entrada de Klaus. O falecido Klaus de cujo túmulo ninguém sabia a localização. Mas Lilly ia lá com frequência.

“Tenho um plano”, sentenciou Pratt. Explicou os passos a Lilly. Precisava da ajuda dela, e da sua permissão. A princípio, ela protestou. Depois, reconsiderou. Não havia outra forma, por mais nojo lhe desse o plano.

 

5 – Visita ao velho amigo

Não passava de uma cave num prédio decrépito. Apenas mais um prédio decrépito. Pratt abriu a porta, arrombando a fechadura com as suas sondas que saíam dos dedos como se fossem pequenos tentáculos de um polvo. Lá dentro estava escuro, mas os seus olhos biónicos não precisavam de muita luz para ver. Desceu um vão de escadas, tendo o cuidado para não tropeçar numa montanha de lixo. Encontrou uma porta, que parecia não dar para lugar nenhum, mas não podia haver maior mentira: do outro lado, Pratt encontrou um caixão. O caixão daquele que tinha sido o homem mais poderoso da cidade. E, facto que Pratt preferiu ocultar de Lilly, um bom amigo. Mesmo que lhes custasse a vida, jurou vingar a sua morte. Teria Klaus feito a mesma coisa por ele? Não. De certeza que não. Longe iam os tempos em que vadiavam os dois pelas ruas da cidade.

Pratt abriu o caixão. Ele ali estava, em avançado estado de decomposição, o rosto desfeito pelo disparo a queima-roupa que lhe tinha tirado a vida. Os braços e as pernas com os traços evidentes das chapas implantadas que lhe serviam de armadura. Pratt pediu desculpa ao amigo e, pegando num alicate e numa serra, retirou-os do cadáver de Klaus.

 

 6 – O renascer do mago tecnológico

Depois de desinfectadas as placas, Pratt introduziu-as no seu próprio corpo, sem qualquer anestesia. O sangue, menos do que ele estava à espera, escorreu para o chão. No final deixou-se cair da cadeira onde tinha operado o maxilar de Lilly para o chão. O seu corpo tinha de recuperar de mais um implante. Devia, agora, ser mais máquina do que homem, o que não lhe causava qualquer problema de consciência. As máquinas não traíam os amigos. Se lhe fosse dado a escolher, Pratt preferiria mil vezes ser máquina. No dia seguinte, arrastou-se penosamente pelo chão. Bebeu um whisky duplo. Estava um autêntico lixo. Viu-se ao espelho. Pareceu-lhe ver Klaus. Seria o suficiente para que os mecanismos de segurança do edifício que planeava invadir o confundissem com o falecido dono da cidade?

 

7 – Requiem por um sonho, ou um café e uma Kalashnikov, por favor.

Pratt investiu grande parte do dinheiro que tinha recebido de Lilly num Inversor de Gravidade, que era uma das máquinas mais caras. O grupo de mafiosos chineses que lhe vendeu o equipamento ficou curioso sobre a proveniência do dinheiro, e chegou a segui-lo, mas não era fácil pressionar um homem como Pratt – que o digam os dois homens que jaziam no fundo dos esgotos da cidade.

Ligou o equipamento, que parecia ser uma simples mochila, e o seu corpo elevou-se no ar. Demorou algum tempo até dominar a máquina. Incorporou os comandos nos seus implantes, e passou a poder controlar o voo com o pensamento. Enviou uma mensagem para Lilly. Estava pronto. Agora começava a parte dela. Igor era um homem orgulhoso e desconfiado. Uma mistura que o protegia: o traidor tinha medo de que outro igual a ele seguisse os seus passos, por isso era paranóico, o que era uma condição essencial para se sobreviver na posição em que estava. Klaus também tinha sido paranóico, mas virara a sua atenção apenas para o exterior. Confiava demasiado nos seus homens. Igor, por outro lado, não confiava em ninguém. Até quando estava na cama com uma das suas concubinas havia um segurança no quarto, perfeitamente ciente de que caso comentasse o mínimo pormenor seria torturado e executado da forma mais cruel possível – e a lista daqueles que tinham sofrido este fim era grande e sobejamente conhecida.

Pratt elevou-se nos ares e dirigiu-se ao edifício que, para todos os efeitos, era um castelo. Lá em baixo ficava a cidade, desordenada, barulhenta, feia. Não havia outra forma de se referir à “coisa”. Antigamente as cidades, por muito confusas que fossem, eram minimamente ordenadas. Mas numa cidade sem lei cada um faz como entende, semeando-se aberrações um pouco por todo o lado. O castelo distinguia-se pela sua sobriedade e pela imponência. Por questões de segurança, não havia prédios de altura semelhantes nas imediações. Klaus tinha feito essa exigência e alguns tinham pago com a vida a infrutífera teimosia. Igor seguiu-lhe as pegadas, aumentando ainda mais o edifício que herdara do antigo patrão.

Por superstição ou medo, a zona do edifício antes ocupada pelos aposentos de Klaus e onde tinha sido morto, estava agora desocupada. Lilly dera a Pratt todas as indicações. A porta da pequena varanda tinha uma versão antiga do programa de segurança. Klaus tinha permissão para entrar, permissão essa que era dada pela leitura dos implantes que agora estavam nos braços e pernas de Pratt.

Mas uma coisa era a teoria. Quando Pratt pousou no terraço era noite cerrada. Sentia-se especialmente nervoso. Aproximou-se da porta. Esperou alguns segundos e ouviu o trinco a abrir. Entrou para um quarto abandonado. No meio do chão via-se ainda a mancha de sangue de Klaus. Ninguém a tinha tentado sequer limpar. Lilly não tinha permissão para entrar ali. No cérebro de Pratt tinha as plantas que Lilly tinha enviado. Havia uma rede de túneis de baixa segurança que levavam ao coração da fortaleza e a uma pequena divisão que ficava por trás do quarto de Lilly.

“Tens certeza de que queres fazer isto?”, perguntou Pratt, enquanto discutiam o plano. Lilly disse que não, mas não via outra forma. Igor tinha de morrer. Mesmo que para isso Lilly tivesse de o seduzir. Não seria simples: para ele, esse seria o maior prémio que poderia ter. A filha do homem que tinha traído, apaixonar-se por ele, de livre vontade. Para ela, veria o rosto do pai morto em cada beijo e em cada carícia, em cada minuto em que teria de suportar o seu fedor nauseabundo e a sua voz. Ele gostava de recordar a Lilly que ela lhe pertencia, que era a sua escrava predileta. A única que ele realmente desejava. Também gostava de lhe dizer que não conseguia confiar nela, pelo que sempre que iam para a cama estava um segurança num dos cantos do quarto. Para Lilly, essa era a vergonha absoluta e absurda. Como era prática normal para Igor, nunca levava mulheres para o seu quarto, que ficava numa zona da fortaleza onde Lilly não tinha acesso. Lilly não sabia o que havia lá dentro. Para compensar, Igor não sabia que, numa divisão que ficava por trás do quarto de Lilly, se escondia um neuro-hacker que esperava pela melhor oportunidade para o matar.

 

8 – A morte do amor no Séc. XXII

“Não vou aguentar muito mais tempo”, pensou Lilly. Estava sentada na cama, a fumar um cigarro electrónico. O fumo fazia já uma espessa nuvem no tecto.

“Está quase”, disse a voz de Pratt no seu cérebro. Ele tinha a ligação ao cérebro de Lilly, através das neurites. E, através destas neurites, esperava conseguir usar a ligação que Igor tinha ao cérebro de Lilly para entrar no cérebro deste. Tinha dado instruções precisas a Lilly: os três tinham de estar bastante próximos e o processo poderia demorar vários dias. Todas as noites Igor aparecia no quarto dela e Pratt sentia o que ela sentia: a revolta, a humilhação e um imensa raiva. Igor estava convencido da veracidade dos sentimentos de Lilly. Sentia-se eufórico com a vitória e, com isso, baixara a guarda.

“Tens de conseguir bloquear os tens sentimentos verdadeiros.”, dissera Pratt, “Uma pedra não tem sentimentos, não sente prazer, nem dor. Tens de ser uma pedra.”

Mas uma pedra não tinha de sentir o fedor do hálito de Igor na sua boca.

“Despacha-te. Eu não quero gerar um filho deste monstro. Eu não quero odiar o meu filho.”

Lilly desligou o cigarro e aproximou-se da janela. Seria tão simples, acabar tudo. Não fosse o condicionamento mental imposto por Igor. Ela não podia matar-se nem pedir a alguém para o fazer. Estava presa no papel de uma prostituta. Era isso que se sentia: uma prostituta de luxo.

 

9 – O profundo sabor do silêncio

No seu buraco sem luz, Pratt sentiu que Igor entrava novamente no quarto de Lilly. Nos últimos dias tinha feito avanços. Sem Igor notar, Pratt já conseguira entrar no seu cérebro. Tinha sido a tarefa mais desgastante que tinha feito. O neuro-hacker sentia que estava no limite, psíquico e físico. A cabeça latejava de dor. Ligou-se ao cérebro de Lilly. Sentiu uma sensação diferente. Medo. Dor. Conseguia ouvir os berros do outro lado da parede. Conseguiu ligar-se às neurites que Igor tinha implantado no cérebro dela na infância. Desde estas neurites conseguiu ligar-se ao cérebro de Igor. Sentiu vontade, ele próprio, de berrar. A dor que Lilly sentia era igual ao prazer mórbido que Igor sentia. E esse prazer fazia-lhe descer todas as barreiras.

Pratt conseguira. Controlava Igor. Mandou que ele parasse. Os berros de Lilly pararam.

“Mata-o”, ordenou Pratt. Ouviu um disparo do outro lado do quarto. Igor tinha abatido o seu segurança.

“Mata-te”.

A nova ordem foi seguida por um segundo tiro. E, depois, o silêncio.

 

10 – A última valsa

Pratt continuou escondido até que Lilly o mandou sair.

“Acabou.”, disse ela.

Ele cambaleava.

“Estás ferido.”

Ele abanou a cabeça.

“Não importa. Está feito.”, disse ele. Notou algo estranho na expressão de Lilly. Orgulho. Tentou entrar no seu cérebro, mas já não conseguiu. Ela defendia-se dele. Tinha sido uma boa aluna. Demasiadamente boa aluna.

“Foi tudo encenado”, sentenciou ele.

Ela sorriu.

“Foi complicado partir o maxilar. Mas foi por uma boa causa.”

“Usaste-me.”

“Sim. E obrigado por me ensinares a defender-me do bloqueio mental. Foi muito útil. Agora, só existe uma pessoa que me pode controlar. Só existe uma pessoa entre mim e o poder absoluto. Vou continuar o trabalho do meu pai, mas não vou confiar em ninguém. Muito menos em ti. Desculpa.”

Pratt ligou o escudo dos implantes de Klaus dois segundos antes dos drones entrarem no quarto. Rodearam-no e começaram a disparar.

“Sentes-te invulnerável?”, perguntou Lilly. Os drones pararam de disparar.

“O meu pai também se sentia invulnerável. Mas confiou demais em quem não devia. Confiou em mim. Devias ter aprendido a lição.”

Lilly saiu e deixou Pratt sozinho com os drones, que recomeçaram a disparar. Tentou abrir a janela e a porta, mas estavam fechadas. Aquela era uma divisão de segurança máxima. Era ali que Igor costumava torturar e executar as suas vítimas. Teve consciência do seu erro quando o escudo começou a desvanecer.

A sua ligação sináptica com o cérebro de Lilly Sektor estava activa. Ela estava próxima. Divertia-se com o seu fim. Sentia prazer na sua morte.

“Eu sei que estás aí, Lilly.”

O pensamento surgiu no cérebro da filha de Klaus Sektor.

“Não consegues controlar-me.”, pensou ela.

“Não preciso. É aqui que a nossa história termina. Há um provérbio chinês que fala do Sol que ilumina mesmo os mais desafortunados.”

Sentiu o escárnio de Lilly. Ria-se num estado de euforia total.

“É também o nome da bomba de anti-matéria que lhes comprei. Adeus, Lilly.”

3 comentários em “Cidade sem nome – Conto (Jorge Santos)

  1. Givago Domingues Thimoti
    19 de junho de 2024

    Olá, Jorge! Tudo bem?

    Eu particularmente não sou muito fã de contos cyberpunks (não sei se é assim que você definiria seu conto, não sei nem se é a definição do gênero literário risos). Mas eu gostei do seu conto. Ele é extremamente bem construído. Foi uma leitura resumida (no sentido de parecer um resumo de um livro), mas sem pressa: descrições no tamanho certo, utilizadas quando realmente precisava ser uma descrição mais detalhada num aspecto da história. A construção do universo da Cidade sem nome é perfeito ao meu ver.

    Bem escrito também no sentido gramatical.

    Um bom (para excelente) conto

    Parabéns!

  2. Priscila Pereira
    18 de junho de 2024

    Um conto muito inteligente, Jorge! Cheio de reviravoltas e o que há de mais doentio e monstruoso na humanidade. Você explorou muito bem esse estado de consciência caída, onde o poder é tudo o que importa e os sentimentos de lealdade, amor, cumplicidade já estão extintos. Ótima ambientação. Muito interessante de ler. Parabéns!

  3. Antonio Stegues Batista
    15 de junho de 2024

    O termo cyberpunk apareceu na década de 80, um movimento literário que mistura alta tecnologia e o caos de uma sociedade sem lei e ordem. Depois veio Steampunk e seus derivados que dão inspiração para muitas histórias de SyFy. Então, o título do conto já mostra o desinteresse dos habitantes pela Ordem e, consequentemente, pela Lei, não dando nome à cidade. Com o caos instalado, cada individuo quer tirar vantagem e onde há caos, o mais forte e o mais astuto vence, domina e reina sobre todos. Há uma eterna luta pelo poder e a alta tecnologia oferece as armas necessárias para vencer. No entanto, ninguém está a salvo, mesmo protegido com as melhores armas. Klaus foi traído pela filha, Lilly, que foi dominada por Igor para matar o pai. Mesmo assim, no cérebro da jovem foi preservado bem no fundo, o sentimento de vingança. E Lilly concebe um plano macabro, mutilando-se sem medo, para tomar o poder que era do seu pai. No final há uma luta, não de armas sofisticadas, mas um duelo de inteligência. Quando um pensa que venceu, o outro surpreende com uma atitude inesperada, uma carta escondida na manga, a arma mais incrível que existe, a bomba antimatéria. Muito bom.

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Informação

Publicado às 15 de junho de 2024 por em Contos Off-Desafio e marcado .