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Detox Literário.

Ponche de Maçã – Conto (Paula Giannini)

Ponche de Maçã

 

Ingredientes

Comprar 1 litro de cidra espumante para o ponche, que a Maria adora.

2 litros de guaraná.

1 cacho de uvas.

E maçãs 5.  3, grandes para cortar em cubos de gelo a gosto

 

Comprar uma agenda nova que a velha desapareceu.

E flores para Maria. Amarelas, suas preferidas.

Comprar fita vermelha para um laço bem bonito. Dourada.

E lentilha. Hoje é ano novo e na televisão disseram que isso dá sorte.

Passar na feira.

Trazer frutas.

Bananas. Maçãs.

E uvas para a Maria, que ela adora.

Comprar ração para o gato. E perguntar para o porteiro se alguém o viu. Não passou a noite em casa. Ou seriam duas?

Ligar para o Doutor Simão.

Trocar o remédio?

Comprar uma agenda nova.

Perguntar para a Maria se ela viu o gato.

Comprar forminhas de gelo, que as antigas racharam.

E um jarro para as flores. De vidro.

Maçã. E Uvas.

E passas, para a lentilha para o arroz.

Chamar o seu Adeilton para consertar a pia. Ela pinga. A do banheiro.

Lavar as roupas brancas. Hoje é ano novo. Ou será amanhã?

Comprar uma agenda.

E cigarro. Não fumo mais. Quem fumava era a Maria.

Retirar o lixo, está fedendo.

Comprar aquela coisa que perfuma a casa.

Desodorante.

Sabão em pó.

Chamar o seu Adelino para consertar a pia. E a máquina de lavar.

Comprar lentinha, que semana que vem é ano que vem.

Comprar cueca branca.

E uva passa para o arroz.

Perguntar para a Maria… Mas o que era mesmo? Depois eu lembro.

Comprar caneta, que essa aqui está falhando.

E Gillette. Ir ao barbeiro.

Comprar flores, Girassóis, para o gato e trazer ração, para a Maria.

Comprar uma poncheira. Não sei o que é, para misturar todos os ingredientes e servir bem gelado. Na televisão falou que fica uma delícia. A Maria vai gostar.

Ligar para o Doutor.

O remédio acabou.

Trocar de médico?

Comprar espumante cidra para o Natal.

E pedir para o seu Anteninho para carregar as compras.

Dar uma caixinha para os porteiros. De fósforo serve? Perguntar para a Maria, talvez um tupeware. Não sei se é assim que se escreve.

Trocar a lâmpada da geladeira.

Está fedendo.

Comprar … Esqueci o que era. No mercado eu lembro.

Trazer agenda. A outra rachou.

E flores, que sumiram.

Perguntar ao seu Antero Aldeilton, se ele viu a Maria. Não passou a noite em casa. Ou seria o mês?

Mês que vem é ano novo.

Comprar vela para acender na praia. A Maria gosta.

E flor, com laço e vaso.

Lavar a camisa preta, que a Maria acha elegante e hoje mês que vem é ano novo.

Comprar pasta de dente.

Estou fedendo.

Achar o telefone do médico. E procurar a sacola, que é onde está a carteira, que é onde está o telefone. Anotado atrás do cartão. Mas que cartão?

Procurar o gato.

Regar a flor.

E interfonar ao porteiro. Reclamar com o sindico. Faz duas horas que os vizinhos não param de fazer barulho. Parecem foguetes. Os jovens de hoje brigam muito.

Procurar o aparelho de audição.

Ligar para o porteiro.

Comprar sete uvas. Na televisão disseram que dá sorte.

Agenda.

Arroz.

Passa.

Ração.

Flor.

Procurar a máquina de fotografia. Os fogos esse ano estão lindos. A Maria ia gostar.

Pedir ao porteiro para chamar um táxi.

Procurar a chave.

O gato.

Maria.

A planta.

A flor.

Fazer a barba.

E vestir branco. Preto. Nunca mais será ano novo em minha vida.

Apagar as luzes. E os fogos.

Achar um lenço.

E meias limpas. Está tudo fedendo.

Chamar um táxi.

E levar fósforos, no bolso da camisa para os fogos para as velas.

Levar as flores.

E o ponche. Em uma poncheira.

E o lenço. Pois  não vou chorar.

Vou passar o ano novo com Maria.

No cemitério.

E uma flor.

Amarela.

Como ela amava.

E o ano novo nunca virá.

10 comentários em “Ponche de Maçã – Conto (Paula Giannini)

  1. Marco Aurélio Saraiva
    24 de junho de 2024
    Avatar de Marco Aurélio Saraiva

    Você nunca decepciona, né? =)

    Essa pegada de o conto se desenrolar através dos lembretes que ele mesmo escreve para si ficou incrível. Empresta um quê de poema para o conto. Achei genial ver o poder que certas palavras, escritas em sequência e em contexto, conseguem contar muito e expressar sentimentos únicos, trazendo a tristeza e o desamparo do personagem, além de outros tipos de sensações para o leitor.

    Muito bom!

  2. Kelly Hatanaka
    23 de junho de 2024
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Oi Paula.

    Um conto lindo e muito original.
    A história é contada através do que é dito e, principalmente, através das contradições. O luto, a confusão, a dor, tudo dito nas entrelinhas. O que é realidade? Não se sabe, exceto aquilo que realmente importa: que nunca mais será ano novo para o protagonista.

    Parabéns.
    Kelly.

  3. Givago Thimoti
    21 de junho de 2024
    Avatar de Givago Thimoti

    Olá, Paula! Tudo bem?

    Esse conto tem um quê de aula de literatura: Como podemos contar uma história, com todas as nuances sentimentais que uma história tem, sem ser num formato tradicional?

    É original, um extrato (grande) de uma agenda de uma senhora. E que extrato! Tocante, real e ali, presente na nossa vida.

    Obrigado pela contribuição!

  4. Pedro Paulo
    17 de junho de 2024
    Avatar de Pedro Paulo

    Texto fascinante pela estrutura de frases curtas, que arrumam e desarrumam a história por uma narrativa confusa de uma vida que vai se destruindo por dentro. Como o personagem, pairamos desorientados, com um crescente sentimento de desalento assumindo. Muito bom.

    Também é bom reencontrar uma contribuição sua aqui no EC, Paula.

  5. Gustavo Castro Araujo
    14 de junho de 2024
    Avatar de Gustavo Castro Araujo

    Eu estava olhando a imensa pasta de contos off no email do EC e eis que me deparo com esta joia, concebida pela Paula ainda em 2018 e nunca publicada aqui… Injustificável! Mas, enfim, antes tarde do que nunca, porque seria uma tragédia muito grande não vê-lo por estas bandas.

    É sensível, é rápido e mesmo assim dialoga com o que temos de mais valioso, nossas memórias, nossa ânsia de viver, nossos propósitos. Poucas palavras que acertam em cheio a nossa natureza mais essencial.

    Estou me penitenciando por ter demorado tanto tempo para disponibilizá-lo aqui no EC, mas, talvez tenha sido melhor assim. Talvez o meu eu de 2024 esteja mais bem preparado do que o meu eu de 2018 para captar tudo o que o ele tem a dizer.

    Saudades dos contos da Paula Giannini, né, gente?

    #voltapaula

    • Paula Giannini
      15 de junho de 2024
      Avatar de Paula Giannini

      Querido Gustavo, quanto carinho…

      Não posso voltar, pois nunca fui embora. Entre Contos é tipo a casa da gente. Quando menos se espera, estamos sentados na cozinha para um bom café.

      Obrigada por compartilhar meu texto.

      Beijos

      Paula Giannini

  6. Paula Giannini
    14 de junho de 2024
    Avatar de Paula Giannini

    Ah, esse conto… Voou longe, né? Virou vídeo, está no livro Como a Vida, em maio foi destaque no Jornal Relevo, e agora aqui, nessa casa que tanto amo. Obrigada, querida, pelo comentário. Estou com saudade de você.

  7. Priscila Pereira
    14 de junho de 2024
    Avatar de Priscila Pereira

    Eu amo esse conto , Paulinha! Tão triste, tão real, e tão original! Parabéns! Saudade de você nos desafios! ❤️💐🌹

  8. Antonio Stegues Batista
    14 de junho de 2024
    Avatar de Antonio Stegues Batista

    Achei fantástico esse conto, a estrutura com frases curtas, as repetições como uma falha mental do personagem, esquecimento próprio da idade avançada. Uma narrativa surreal que provoca aflição, mas o final é como um filtro. Perfeito.

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Informação

Publicado às 14 de junho de 2024 por em Contos Off-Desafio e marcado .