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Detox Literário.

O Anjo – Conto (Kelly Hatanaka)

— Tá perto, mamãe. Eu sinto.

Laura sentiu o frio subindo pela espinha. A voz de Bianca soava diferente, um tanto ausente. Devia ser o medo.

— Sente o que, filhinha?

— Sinto o cheiro dele, ele tá perto.

Laura faria qualquer coisa para que Bianca esquecesse de tudo que passou, para que nada tivesse acontecido. Se ao menos ela tivesse sido mais atenta, percebido o perigo, poderia ter evitado tudo aquilo. Todos diziam que ela não deveria se culpar, que ela não fizera nada errado. Mas a dor procurava vazão e a culpa era uma saída.

Bianca estava agitada, frenética, queria se soltar de seus braços, como se desejasse correr para longe dali. Laura a abraçou, contendo-a ao mesmo tempo que lhe oferecia seu calor e conforto.

— Meu anjo, mamãe está aqui. O homem mau está longe e nunca mais vai chegar perto de você. Você está segura.

Laura falou com uma convicção que estava longe de sentir. Desde aquele dia fatídico ela não tinha paz e se via constantemente sobressaltada, revivendo os momentos angustiantes em que Bianca desapareceu do quintal de casa, onde brincava. Foram quatro longas horas, em que Laura e Mario percorreram todas as ruas do bairro, falaram com todos os vizinhos, reviraram todos os cantos da pracinha, sem sucesso. Outros moradores da região se juntaram à busca. Se Bianca fosse uma adolescente, a polícia esperaria algumas horas para começar a procurar, mas em se tratando de uma criança de seis anos sumida do quintal de casa, lançaram avisos e buscaram nos bairros vizinhos.

Quando começou a anoitecer, a polícia persuadiu Mario e Laura a voltarem para casa enquanto a busca prosseguia. Foi difícil, ambos queriam ir junto e só retornar com Bianca nos braços. Por fim, aceitaram que seria melhor assim, talvez alguém pudesse ter notícias ou pedir resgate e seria bom que estivessem em casa.

Minutos depois de chegarem, viram um pequeno vulto escuro abrir a porta da cozinha. Era Bianca, inteiramente coberta de sangue. Após o alívio inicial por vê-la viva e de volta, veio o horror pela sua condição. Era muito sangue, ela estaria ferida? Correram com ela ao hospital, avisaram a polícia.

Bianca respondeu calmamente a todas as perguntas desencontradas que Laura fazia e, depois, às perguntas que os policiais fizeram. “Não, não estou machucada”. “Eu estive no bosque, brincando”. “Não, não tava sozinha, tava com o moço”. “Não, o moço era bonzinho”. “Não sei como ele era, mas ele tinha um cheiro bom.”. “Ele estava brincando de esconde-esconde”.

Cada resposta deixava seus pais mais e mais aterrorizados. Estava ficando claro que Bianca fora abduzida pelo que parecia ser um fugitivo. E todo aquele sangue, de onde vinha?

No hospital, ela foi banhada com cuidado e examinada. Laura, sempre a seu lado, enquanto Bianca parecia estranhamente tranquila. Para surpresa e alívio de seus pais, ela não tinha nenhum ferimento, nem um mero arranhão, tampouco sinais de violência sexual.

— Mas, e esse sangue todo, doutora? De onde veio?

— Retiramos amostras e vamos analisá-las. Mas, claramente, o sangue não é dela.

Laura olhava para a filha, tão calma, sentada em um sofá do consultório.

— Doutora, ela parece tranquila. Tranquila demais, como se nada tivesse acontecido.

— Pode ser uma reação a emoções extremas. Nós desenvolvemos defesas. Bianca pode não se lembrar de nada, ou recordar-se apenas de coisas com as quais consegue lidar. Vou chamar o psicólogo para conversar com ela, ok? Ele poderá orientá-los melhor. Por ora, posso dizer que com relação às condições físicas, ela está perfeitamente bem.

Após a consulta com o psicólogo, que pareceu um tanto perturbado, e quem não ficaria vendo um caso bizarro desses envolvendo uma criança tão pequena, Bianca quis ir para casa. O psicólogo não disse muita coisa, mas orientou os pais a observarem a filha e telefonarem para ele, caso notassem algo incomum.

— Nós já vamos, meu anjo. Você está com fome?

— Não, mamãe. O moço me deu comida.

— Ele te levou a alguma lanchonete? — Talvez alguém pudesse reconhecê-lo.

— Não.

— E o que você comeu?

Bianca deu de ombros.

— Carninha.

Laura quis dizer para ela vomitar, botar para fora qualquer resquício que pudesse ter vindo daquele monstro que a levara embora e que, por algum motivo doentio, a cobrira de sangue. Mas Bianca a olhava de volta com seus olhos límpidos e serenos e Laura não quis assustá-la. Os resultados de seus exames de sangue não mostravam a presença de nenhuma substância nociva ou ilícita em seu organismo.

Voltaram para casa, onde apenas Bianca conseguiu dormir, exausta. Seus pais estavam angustiados demais, imaginando as coisas pelas quais ela passara, o que ela teria visto e feito, quem a teria sequestrado e os seus motivos.

Uma hipótese assustadora começou a ganhar corpo, para desespero de Mario e Laura. Teria Bianca sido usada em algum tipo de ritual satânico? De vez em quando, apareciam no noticiário histórias assustadoras de seitas que promoviam rituais com sangue e sacrifícios. Suas vítimas eram muitas vezes crianças, mais frágeis e fáceis de manipular.

As semanas seguintes se passaram sem novidades. Bianca parecia bem e brincava normalmente. O hospital confirmou o que já sabiam, que o sangue que a cobria não era dela. A polícia, por seu lado, pode trazer mais informações. O sangue pertencia a Tonho Canivete, traficante e assassino que fugira da penitenciária um dia antes do sumiço de Bianca. No dia do ocorrido, houve uma denúncia de que ele teria sido visto nas imediações e a polícia estava circulando pelo bairro procurando por ele.

— E ele foi encontrado? – Mario perguntou, preocupado.

A ideia de que um criminoso como esse pudesse ter passado todas aquelas horas com Bianca era terrível.

— Sim. Ele foi encontrado morto, no bosque.

— Meu Deus! — Laura cobriu a boca com as mãos. Mario a abraçou. — Como ele morreu?

— O corpo está sendo analisado pela perícia. Mas sobrou pouco a analisar. Ele parece ter sido atacado por um animal.

— Animal não! Um monstro! Um monstro o matou e cobriu minha filha com o sangue! Isso é horrível!

Só neste momento, Laura percebeu que Bianca estava perto, ouvira tudo e parecia muito perturbada. Ela foi até a filha, pegou-a no colo e levou-a para fora. Mario continuou conversando com os policiais.

— É possível que se trate de algum tipo de ritual satânico?

Os policiais se entreolharam.

— É uma possiblidade com a qual estamos trabalhando.

Foi a partir deste momento que as crises começaram. Do nada, Bianca ficava inquieta, afirmava que sentia o cheiro do moço, que ele estava perto e tentava correr para longe dos pais. O psicólogo acreditava que as memórias de Bianca estavam voltando e ela passou a ter sessões dia sim, dia não. Laura e Mario estavam no limite de suas forças.

Fora das crises, Bianca era uma criança perfeitamente normal. Durante as crises, porém, ela tornava-se outra pessoa, tomada de uma fúria que parecia até lhe conceder uma força sobrenatural. Gritava e tentava se desvencilhar, debatia-se e insistia que o moço a estava chamando.

Laura estava entregue a pensamentos frenéticos, obsessivos, não dormia, mal comia e vivia em constante vigilância. Uma noite, foi a cozinha beber água e encontrou Bianca segurando uma faca.

— Bianca, largue isso! É perigoso!

— É pro moço, mamãe!

— Não precisa, meu amor. Você está em segurança. Dá aqui a faca pra mamãe.

Bianca hesitou, mas entregou a faca.

— Pronto, passou. Venha, vamos voltar pra cama. Mamãe fica com você até você dormir.

***

No dia seguinte, Bianca não estava em sua cama. Nem a faca na gaveta.

Laura gritou, Mario revirou a casa em desespero. Ela fora levada de madrugada. Começou uma nova busca desesperada. Chamaram a polícia e, dessa vez, foram direto ao bosque, onde Tonho tinha sido encontrado.

O lugar todo fedia a morte e a medo, um cheiro maligno que os envolveu desde a entrada do bosque; uma presença maléfica.

Seguindo este cheiro, não foi difícil encontrá-la.

Difícil foi digerir a imagem daquela criança, debruçada sobre o corpo inerte de um rapaz, a faca em sua mão cortando pedaços de vísceras e devorando-as com sofreguidão, o próprio corpo já coberto de sangue e uma expressão feroz de prazer.

— Quer carninha, mamãe?

9 comentários em “O Anjo – Conto (Kelly Hatanaka)

  1. Marco Saraiva
    21 de junho de 2024
    Avatar de Marco Saraiva

    Terror do bom, e curto, sucinto. Levanta perguntas, mantem o misterio, mantem a tensao ate o final. Gostei muito! Queria conseguir escrever de forma tao sucinta quanto voce, Kelly, hahahahaha.

  2. Pedro Paulo
    17 de junho de 2024
    Avatar de Pedro Paulo

    Muito bem escrito, o suspense é estabelecido desde o começo, mas confesso que, conforme os pais especulavam, eu já imaginava o desfecho. Tirou um pouco do impacto no final, mas não deixei de gostar do texto!

  3. Gustavo Castro Araujo
    14 de junho de 2024
    Avatar de Gustavo Castro Araujo

    Boa!! O fim me pegou de surpresa. Embora as pistas estivessem ali, não consegui antecipar que a menina é que era a autora dos crimes. Pobre do Tonho… Gostei do suspense e do ritmo fácil de leitura. Um bom conto para um fim de tarde. Talvez não tanto para antes de dormir, rs

  4. Antonio Stegues Batista
    13 de junho de 2024
    Avatar de Antonio Stegues Batista

    Essa semana assisti Mama, um filme de terror também com crianças. No caso deste conto, me pareceu que o moço que chamava Bianca e que a induzia a matar,, seria um espírito maligno com poder de controlar a frágil mente de uma criança. Terrivelmente belo conto terrível.

  5. claudiaangst
    13 de junho de 2024
    Avatar de claudiaangst

    Caprichou no terror, hein? Que medo dessa devoradora de “carninha”. Ela foi ao bosque sozinha, ou realmente o moço tinha sequestrado a menina? E quem era o último moço/vítima… Se ela estava suja de sangue, era vítima nova… ou não? De anjo a demônio. Medo!

  6. Priscila Pereira
    13 de junho de 2024
    Avatar de Priscila Pereira

    Misericórdia, Kelly, que horror!! 😱😱😱

    A leitura foi terrível pra mim desde o início… Ter um filhos desaparecido deve ser o maior medo de toda mãe…

    O clima de tensão e suspense está presente em cada linha do conto e o final é horripilante…

    Teria a menina sido possuída?

    De qualquer forma o conto é ótimo! Cria expectativa, tensão, medo e horror no leitor (talvez mais nas mães)

    Parabéns por mais um ótimo trabalho!

    • Kelly Hatanaka
      13 de junho de 2024
      Avatar de Kelly Hatanaka

      Pois é… agora, sobre Bianca ter sido possuída,o que é mais assustador? A ideia de uma possessão, ou a ideia que ela fosse capaz de fazer o que fez por vontade propria?

      • Priscila Pereira
        13 de junho de 2024
        Avatar de Priscila Pereira

        O problema seria que por vontade própria ela ainda não teria condições físicas de matar um homem adulto… 🤔 Então só sobra a possessão, até pra explicar o homem que levou e ensinou ela a fazer o que fez e a força sobrenatural que ela tinha nas “crises”. Mas assustador mesmo, seria ela ser uma mini psicopata assassina e canibal sim… Mas aí vc teria que reescrever a história 😅

      • Marco Saraiva
        21 de junho de 2024
        Avatar de Marco Saraiva

        Para mim, a ideia da maldade enraizada em uma crianca eh muito mais assustadora. Quando temos uma entidade paranormal assumindo o controle de uma crianca, “terceirizamos o mal”. Quando temos uma crianca ma, por outro lado, vemos um aspecto da natureza humana que eh feio e dificil de engolir. Vemos que o mal pode nascer em nos mesmos, e pode ser natural, ao inves de ser apenas um resultado do meio e da convivencia.

        Sobre o que a Priscila falou… discordo! Uma boa facada no lugar certo basta para deixar uma pessoa adulta incapacitada. E sendo uma crianca, Bianca nao inspiraria medo. Bastava esperar que chegassem perto… rs rs rs

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Publicado às 13 de junho de 2024 por em Contos Off-Desafio e marcado .