VIII
Finnegan precisava daquele tempo longe do escritório. Ficar confinado no mesmo lugar estagnava o pensamento. Mesmo assim, apesar de todos os seus esforços, não conseguia andar com o caso há meses. Aquela mudança de cenário era um ato de desespero.
A vista de Londres era belíssima do topo do The Shard. Apesar de nunca ter alimentado nenhum amor pelo povo inglês, tinha que admitir o espetáculo da capital. Muitos metros abaixo, o Tâmisa serpenteava pelos prédios e pontes. A London Eye girava lenta em uma de suas margens, e o Big Ben, mesmo tão longe dali, ainda se fazia presente com o som de suas badaladas.
Um garçom serviu a segunda xícara de café daquela manhã. Todo o serviço era silencioso e pouco invasivo. Aquelas eram as grandes vantagens daquela cafeteria: acima de todos, e longe de olhos curiosos. Finnegan tinha abertos diante dele uma série de arquivos e documentos, muitos contendo dados confidenciais. As mesas ao seu redor estavam vazias. Eram apenas ele e os arquivos, e todas as perguntas não-respondidas.
Bem adiante, a foto de Isaac Danpora o encarava com aquele sorriso acanhado, quase bobo, como uma imagem viva saindo da pasta que continha o seu perfil. Quando o conheceu, não imaginou que seria de grande utilidade, mas logo entendeu o motivo do MI6 mantê-lo como informante. A mente do jovem era como uma biblioteca inteira – uma biblioteca inexistente online, cujos livros jamais foram publicados, e cujo conhecimento estava fora do alcance da maior parte da população. Foi Isaac quem mostrou o caminho para as novas pistas sobre o paradeiro dos seus pais. Foi ele quem o guiou até o rastro dos Filhos do Ancestral. Isaac era tão instrumental no seu caso, que tarde demais Finnegan entendeu que dependia dele. Quando o garoto sumiu, seis meses atrás, o caso estagnou. Inúmeras pistas, nenhuma conclusão. Estava preso em uma longa espera pela próxima descoberta.
Tamborilou a caneta pela mesa. Passeou o olhar pelos documentos. Informantes; relatórios; um dossiê dos Filhos do Ancestral, com o pouco de informação que tinham a respeito do grupo. Eram um culto religioso? Alguma espécie de clube de elite, dedicado a satisfazer os desejos esdrúxulos do um por cento no topo da população? Estavam, afinal, conectados aos sumiços reportados por toda Londres?
Estavam conectados ao desaparecimento dos seus pais?
A televisão do café exibiu uma propaganda familiar. O som da TV estava no mudo para dar lugar à música ambiente, mas a propaganda era obviamente do restaurante Greenhouse. O chef, vestido com o seu uniforme branco tradicional, caminhava pela cozinha com um sorriso carismático e discursava sobre a procedência dos alimentos usados pela empresa, e sobre a qualidade do serviço. Não muito tempo atrás, seria a sua mãe ali. Após anos do sumiço da sua chef mais famosa, o Greenhouse havia finalmente trocado a propaganda e agora exibia uma nova face. Sentiu uma pontada inesperada no peito. O mundo apagava aos poucos as memórias da sua mãe, e ele tinha medo que também estivesse esquecendo.
O celular tocou. Era George.
“Temos uma nova pista”, falou o amigo do MI6.
“Desembucha”.
“Tanya voltou. Quer nos encontrar no Chaopraya. Hoje”.
“Tanya? Sério?”
“Yup. As vezes os deuses estão do nosso lado, Finn. Ou o que quer que esteja nos acompanhando nesse caso. Me encontra no escritório às um-meia-zero-zero para o briefing“.
Finnegan juntou o material que tinha espalhado e guardou-o em uma pasta. Não sabia o que pensar daquele ressurgimento repentino. Tanya era a sua informante mais promissora, e toda a equipe envolvida no caso dos Filhos do Ancestral estava em frangalhos achando que ela havia sido queimada. Ela trabalhava como modelo e acompanhante de luxo para um irlandês de pouca estatura e muito ego chamado Emmet “Três Dedos”. A investigação que fizeram sugeria que Emmet tinha contato com os Filhos do Ancestral, e que fornecia modelos femininas constantemente para as festas extravagantes do grupo. O MI6 não achava que conseguiria a cooperação de Emmet, mas Tanya, por outro lado, era de conversa fácil e sua moeda de troca era o bom e velho dinheiro. Quanto mais dinheiro, mais ela falava.
Tanya havia trabalhado para eles durante meses até que finalmente o momento chegou. Uma grande festa estava para acontecer. Emmet movimentou um número incomum de suas modelos, e Tanya foi uma das escolhidas. Finnegan e George decidiram arriscar: mandaram a informante para a festa com pontos de escuta e receptores que ela poderia implantar no local. Era uma missão séria, que exigiu muito preparo e treinamento. Isso foi há cinco dias. Desde então, a modelo havia sumido do mapa.
Pagou a conta e foi de elevador para a garagem, mergulhado em perguntas. Destravou o Audi Q8, mas antes de entrar verificou o porta-malas. O rifle M16 estava lá, com dois carregadores ao lado. Sua Desert Eagle descansava dentro da caixa. Abriu-a, e trouxe o revólver para o coldre velado que carregava sob a camisa.
Sentiu-se mais seguro para seguir em frente com o que prometia ser um longo dia.
IX
O briefing foi simples: Tanya havia ligado para o número protegido e pedido uma conversa olho-no-olho. Ela parecia nervosa. Dois agentes foram enviados para o restaurante, a fim de agirem como clientes normais do lugar e tentarem encontrar algum ângulo na situação que havia passado desapercebido pelo time. Tudo sugeria que aquele seria um contato simples, mas havia o risco de ser algum tipo de emboscada.
Finnegan e George subiam o elevador em silêncio. As caixas de som tocavam uma música instrumental suave, mais fina do que as músicas baratas que tocavam em elevadores de hotel. A dupla de investigadores tinha muito em comum: ambos vinham de um histórico militar, e haviam abraçado aquele jeito pragmático tão típico de quem já viu o pior que o mundo tem a oferecer. Para Finnegan, George seria o parceiro de investigação perfeito, não fosse seu jeito tão inglês.
George testou a escuta escondida no terno. Tudo funcionava bem.
“Você fala?”, perguntou Finnegan.
“Mete bala. Ela vai mais com a sua cara”
“É difícil nascer bonito”
“Cala a boca”
A porta do elevador se abriu e a música do restaurante tomou as rédeas da atmosfera, com o jazz que escapava do salão principal. Duas recepcionistas vieram até eles imediatamente para os aliviarem de seus sobretudos.
Tanya os esperava em uma mesa um pouco mais isolada do resto dos assentos. O Chaopraya funcionava a meia-luz, o que o tornava um restaurante propício para aquele tipo de contato. Ainda assim, Tanya havia escolhido uma mesa particularmente afastada das principais fontes de iluminação. Suas feições eram iluminadas apenas pelas chamas das velas.
Finnegan sabia que tudo o que via em Tanya era falso. Os lábios, os seios, a cor do cabelo, a cor dos olhos. Ainda assim, ela conseguia harmonizar toda aquela falsidade em algo belo e delicado. Tanya era o tipo de mulher que exigia um segundo olhar, e sempre que a via notava algum detalhe diferente, que a tornava ainda mais complexa. Naquela noite ela se apresentava como uma mulher jovem e inocente, com ares de inexperiência, bem diferente do tipo de mulher que eles sabiam que era. Ela havia ajeitado o cabelo para que caísse sobre parte do rosto, escondendo suas feições em um véu de mistério.
Mesmo com todo o luxo, o nervosismo da modelo era evidente. Havia um copo vazio sobre a mesa, que ela havia bebido no pouco tempo que levaram para chegar até lá. Antes de se sentarem, Finnegan reconheceu os dois agentes do MI6 plantados no cenário, sentados em mesas opostas.
“Cavalheiros, vamos devagar”, falou Tanya, tentando emprestar algum tom de confiança aos seus modos. “Dois de uma vez só é mais caro”.
Sentaram-se diante dela. George manteve o silêncio. Vez ou outra olhava ao redor, procurando qualquer coisa fora do lugar. Conforme combinado, Finnegan foi quem iniciou a conversa.
“Você sumiu. Achamos que o pior tinha acontecido”
“Ficaram preocupados?”
“Tanya. Nós estávamos esperando encontrar o seu corpo em algum lugar do Tâmisa. Ficamos em alerta por horas, um setor inteiro esperando o seu contato. Fizemos uma força-tarefa para te encontrar nas ruas”.
A modelo não o olhava nos olhos. Tamborilava as unhas na mesa. O garçom se aproximou, e George pediu bebidas para todos, incluindo uma nova dose do que quer que ela estivesse tomando. Tanya esperou que o garçom se afastasse.
“Eu não tive coragem de ir”
“Então você nunca saiu de Londres?”
“Não. Mas Melina queria a grana então eu deixei ela ir no meu lugar”
“Perdoa o meu francês”, falou George. “Mas o que caralhos você achou que podia acontecer? A gente tinha um time inteiro te dando cobertura”.
Tanya brincava com o copo vazio, mas os olhos dançavam pelo salão. Finnegan captou seu rosto em um ângulo diferente. Havia algo de errado com o olho que ela cobria com o cabelo. Ele tocou a mecha tão suavemente que Tanya, apesar de congelar no primeiro momento, permitiu que continuasse. Havia um corte no supercílio e uma roxidão recente.
“Não é nada. Eu tinha que voltar a trabalhar. Tenho que pagar as contas”
“Cliente?”
“Você sabe que não. Emmet. Ele não gostou que eu troquei de lugar com a Melina sem avisar. Mas já falei que não é nada”
O garçom se aproximou novamente e Tanya afastou o rosto, voltando a mascará-lo por trás do cabelo. Três copos foram servidos sobre a mesa.
“Então, quer contar a história para nós?”, falou Finnegan.
Tanya, que antes parecia tão ansiosa para beber, agora brincava com o copo de dry martini.
“Eu falei pra vocês. Eu vivo falando que essas pessoas são perigosas. Não no sentido normal da coisa. Eu reconheço gente violenta ou com más intenções, quando vejo. Dá pra notar. Mas essa gente é perigosa de outro jeito. Não sei se vocês iam conseguir me ajudar, se eu realmente precisasse de ajuda”
Finnegan e George escutavam com atenção. Em uma sala de operações do MI6, em um setor desconhecido pelo público, um pequeno time monitorava a cena. Tanya bebericou um pouco do martini.
“Quando eu vi a quantidade de meninas que o Emmet tava mandando… era algum evento grande. E evento grande… pra esse pessoal… não sei não. Quero distância”
“Nós sabíamos que o evento seria grande. Por isso toda a operação. Por isso te enchemos de escutas. Você estava com um gps. Equipamentos caros que você jogou fora em uma lixeira”.
Finnegan respirou fundo. Não estava ali para reclamar. Tanya o olhava com aquele ar inocente que ela fazia quando sabia ter feito algo de errado.
“O que você achou que ia acontecer nesse evento, que te apavorou tanto?”
“Sei lá. Sacrifício humano? Eu sei lá que porra que eles fazem”
Ela bebeu o resto do martini de uma só vez.
“Você nos chamou aqui só para isso?”, falou George. “Só para dizer que está viva e repetir o que já sabemos?”
A modelo abriu a bolsa e pegou o celular. Ao fundo, o saxofone introduzia uma nova música. Risadas, conversas e o tilintar de taças acompanhavam a melodia enquanto Tanya tocava a tela do aparelho, procurando algo.
“Aqui”, ela disse, e virou a tela para eles. Era o mapa do Reino Unido, com o zoom focado em uma área montanhosa. Um pin marcava um ponto de interesse, em um vale no meio de uma reserva florestal. A modelo olhava para a tela com certo nervosismo. Finnegan notou que o seu lábio inferior se comprimiu. Ela segurava o choro.
“Antes de Melina ir, eu pedi pra ela dividir a localização comigo. Esse foi o último lugar que eu peguei”.
George tirou uma foto da tela com o próprio celular. Então pediu as coordenadas, que ela ditou, número por número.
“Ela não voltou?”, perguntou Finnegan.
“Eu ainda não vi nenhuma das meninas depois daquele dia. Não as que foram”.
“É por isso que você está com tanto medo?”
“Eu não sei se eles têm meu nome escrito em algum lugar, se eles tavam esperando me ver e viram a Melina, e agora tão me procurando por aí. Emmet fala que isso não faz sentido, que ele não dá lista de nomes pra ninguém, mas sei lá. Vai que o diabo falou meu nome pra eles”
“Você sabe que pode pedir custódia protetiva se quiser”
“Eu tô pensando em sair da cidade por um tempo. Tenho um lugar pra ficar em Manchester”
“Manchester não é exatamente longe daqui…”
“Bem, senhor irlandês, se você não tiver um lugarzinho pra mim na sua terra natal, Manchester é o mais longe que eu consigo ir e ainda ganhar um trocado”
“O lugar é uma hora e meia de carro daqui”, falou George, referindo-se ao mapa que Tanya havia fornecido.
Finnegan seguia muitas linhas de raciocínio simultâneas. Sem notar, permitiu que o silêncio na mesa se prolongasse.
“Por favor, me diz que vocês vão lá procurar a Melina”
“Nós vamos”
“Então me liga quando encontrarem ela”.
A modelo se levantou. O vestido elegante acompanhava as curvas do seu corpo, mostrando muito e revelando pouco. Tanya estava vestida para algum trabalho. Aparentemente, sua noite só estava começando.
“Eu tenho que ir agora”
“A gente entra em contato”, falou George.
Ela anuiu. Finnegan segurou o seu braço.
“Fala para o Emmet que da próxima vez que ele fizer isso com você, ele é um homem morto”
Ela abriu um sorriso amuado, beijou-o no rosto, e partiu.
Com a modelo fora do cenário, o lugar assumiu outra atmosfera. Finnegan estava agora sentado em uma mesa de restaurante, não em uma mesa de trabalho. Ele mudou de assento e foi para o outro lado, onde ela antes havia sentado, para conversar com George de frente. Deixou escapar um suspiro cansado. A música que tocava parecia mais viva agora, mais rica em detalhes.
“Sério? Emmet é um homem morto?”, falou George, soltando uma risada. “Ouviram isso? Mister Finn está fazendo aulas com o Denzel Washington agora”.
Na escuta, a equipe inteira soltou risadas. O próprio Finnegan riu. Os agentes que estavam no lugar pagaram suas contas e se retiraram, e a equipe foi dispensada. Não era uma emboscada, afinal.
“Vai comer alguma coisa?”, falou George.
“O MI6 está pagando?”
“Como se isso fizesse diferença”
“Faz diferença no whisky que eu vou pedir”
“Agora você falou a minha língua”
Passaram o resto da noite digerindo o que havia acontecido, e preparando os próximos passos da operação.
Muito bom, Marco! O suspense vai crescendo a casa capítulo e achei muito legal esse ar investigativo mais profissional. O texto está muito interessante, se fosse um livro leria tranquilo 500 páginas sem perder o interesse, até desvendar todo o mistério. Parabéns!
Que bom que está curtindo Priscila! Obrigado pela leitura 😊
Oi, obrigado Kelly, pela leitura! Sim, faz um tempo, nao eh? O desafio quebrou um pouco a rotina. Mas vou continuar publicando aqui ate o final para testar o formato!
Muito bom! Gostei muito, uma ambientação muito bem construída. Mas confesso que não lembro nadica de nada dos outros capítulos. Vou reler com calma depois. Os personagens estão bem construídos, os diálogos estão ótimos. Dá vontade de ler tudo de uma vez.