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Ibn Khaldun dissipado – Conto (Angelo Rodrigues)

Nebula — diz-se Nebúla — não era seu nome verdadeiro, dizia chamar-se Ibn Khaldun, filho dos filhos dos filhos de Abu Zayd ‘Abd al-Rahman ibn Muhammad ibn Khaldun al-Hadrami, o polímata, seguia com fé o Muqaddimah de seu antepassado, e achava que o Ocidente não era nada além de um macaco de imitações.

Nebula nasceu na região do Grande Magreb, no ano de 1824, talvez onde hoje se encontre a Tunísia. Ganhou esse nome pela grandeza do corpo e pela certeza que tinha no Conhecimento, dedicando-se a explicar pelas ruas e praças de Túnis, Casablanca, Argel, Trípoli e Nuaquexote, essa Única Verdade.

Não se dizia árabe, não era negro, negando-se ser um caucasiano de pele morena. Não se deixara tocar pelas certezas do Islã, pelas artes da Bíblia ou pelas magias da Torá, negando-se a restaurar o monoteísmo original de Abraão. Vivia, apenas vivia e ensinava o Muqaddimah e a circularidade da História, a única Verdade, segundo a sua compreensão.

Escolhera como deus os desertos, que nada pedem ou dão além da aridez das areias e da dureza do sol, que chega e parte de maneira igual para todos, indiferente, às vezes cáustico, às vezes ameno, mas sempre sobre a cabeça dos homens.

Viveu a infância nas Montanhas do Atlas, e todos os anos estanciava-se no Djebel Toubkal para transformar sua pele num couro de tudo aguentar. Na severidade do gelo, sob a rudeza do calor das areias, ganhava temperança para o estojo da alma. Havia rodado o mundo inúmeras vezes, conhecido todas as terras e todas as gentes, o que legou a ele a certeza do derradeiro desejo de solidão.

No ano de 1886, cansado dos dias de derrotas inúteis, de ouvidos que nunca o ouviam e de bocas que insistiam em falar tolices além da conta, estacionou-se numa pensão de quartos para homens numa rua suja de Túnis, com sua pouca bagagem e os tomos do único livro de tudo saber.

Gostando de observar o mar, seu deserto úmido, Nebula movia-se à noite, sempre vestindo um terno muito largo, de linho branco, pronto para ser inflado pelos ventos que chegavam do Saara. Atravessando os campos e contornando as pedras mais agudas, caminhava em direção ao Forte Al hawarya, na ponta mais extrema de Túnis, e de lá podia ver, no fim das águas, Trapani, Marsala, Petrosino e Mazara del Vallo, quando amaldiçoava a Sistina, o beit hamiqdash e a Masjid al-Haram. Gritava e queria que os ventos feitos de areia cruzassem o Mediterrâneo e chegassem distante, amaldiçoando os quatro grandes demônios, aos quais dava o nome França, Itália, Portugal, Espanha.

Durante o dia, mantinha-se trancado em seu quarto, negando a existência de outras almas. Ninguém sabia de sua vida além do que seus silêncios permitiam, então diziam coisas sobre ele, todas imaginadas. Nebula apenas roía a vida que tinha num irretocável descanso sobre a cama.

Imputaram-lhe crimes, sempre os piores num mundo feito de religiões. Não havia matado ou roubado. Seu único crime foi tentar contra amadas certezas que tinham aqueles que acreditavam num vazio de razão. Seus crimes vinham do pensamento, quando buscava a Verdade e negava os três grandes Livros das Religiões.

Depois de conhecer o mundo, decidiu-se por não mais sair da pensão em que escolhera viver, e tudo o que lhe era de desejo ou necessidade, mandava buscar numa venda afastada, por meio de um preto nascido ao Sul do Saara, que a todos servia.

Seguidas vezes dado como herege pelas três Grandes Certezas, Nebula foi finalmente pego por essas malhas de enredar a alma, e o confinaram em prisões por onde pregou a essência do Muqaddimah. Com o passar dos anos em que viveu em cárceres, ganhou um corpo coberto por tatuagens, obras de um feiticeiro que o perseguiu por Kalimantan, Surabaya e Jacarta.

Pondo-o em transe a partir de cânticos e ervas que dava a ele sob pretexto de o alimentar, o feiticeiro fazia-o adormecer, e gravava em sua pele um miríade de símbolos mágicos, animais terríveis, dervixes endemoninhados, monstros marinhos, eremitas mendicantes da Ordo Minimorum, serpentes aladas e falsos sadhus. Tornara-o um homem feito, todo ele, de incontáveis símbolos.

Tirante as visitas que fazia ao Forte Al hawarya, Nebula deixava seu quarto apenas para a refeição noturna, quando escolhia sempre a mesma mesa, a um canto do restaurante da pensão. Sentava-se com parcimônia, olhava ao redor como se perscrutasse observadores, e só então esticava os braços, deixando que cada uma de suas tatuagens escorressem em direção à mesa, aos pratos, bandejas de servir alimentos e copos que lhe eram trazidos.

Movidas pelo odor dos alimentos, suas tatuagens corriam em todas as direções, como pequenos ratos famintos. Em miniatura, dervixes, eremitas, sadhus, serpentes, todos iam aos alimentos, aos pães, aos copos, o que lhes houvesse disponível e pudesse ser consumido. Os pequenos demônios comiam e bebiam o que por sobre a mesa houvesse, como térmitas famintas. Em poucos minutos nada restava, nem migalhas eram desperdiçadas. Quando tudo terminava, os pequenos demônios retornavam até ele, subindo novamente em seus braços, voltando a ocupar seus espaços no enorme corpo de Nebula.

Seu último dia de vida chegou com os últimos dias da Grande Fome, no ano de 1895, quando a seca trazida pelo desequilíbrio das monções, que levou a fome extrema à África do Norte, Nordeste do Brasil, Java, Filipinas e Nova Caledônia, tornou toda vida diminuta,

Nesse dia, Nebula se dissipou: suas tatuagens, famintas, desceram por seus braços, passearam como ratos sobre a mesa em busca de algum alimento, e nada encontrando que as pudesse alimentar, evadiram-se em muitas direções.

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Ibn Khaldun dissipado é um dos contos de um livro com personagens históricas singulares. Algumas quase reais, outras quase inventadas, todas especiais. São 25 contos que falam de homens e mulheres com seus segredos estranhos. Os fatos, todos verdadeiros ou trazem as conveniências da História.

(Singulares)

10 comentários em “Ibn Khaldun dissipado – Conto (Angelo Rodrigues)

  1. Kelly Hatanaka
    11 de junho de 2024
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Ibn Khaldun é um homem que se nega a abrir concessões sobre aquilo em que acredita e que paga o preço pela sua integridade. Uma história que soa antiga mas é muito atual. Achei especialmente interessante a história das tatuagens. Fiquei pensando nas motivações do feiticeiro. Seria sua intenção dissipar Ibn Khaldun?

    • Angelo Rodrigues
      11 de junho de 2024
      Avatar de Angelo Rodrigues

      Oi, Kelly.

      Obrigado pela leitura e comentário.

      Era um feiticeiro cheio de segredos. Quem sabe não era um feiticeiro cheio de rancores conta o Muqaddimah

      Grande abraço.

  2. Antonio Stegues Batista
    9 de junho de 2024
    Avatar de Antonio Stegues Batista

    Conto criativo, interessante, que, imagino, necessitou de uma boa pesquisa, nos costumes, na ambientação, etc. Um tema que rende muitas histórias. Como sempre a escrita é impecável.

    • Angelo Rodrigues
      10 de junho de 2024
      Avatar de Angelo Rodrigues

      Olá, Antônio.

      Sim, é verdade. Foi preciso fazer uma boa pesquisa sobre aquela região, do Norte da África. Todos os dados que estão no conto, relativamente à geografia, são verdadeiros, assim como os nomes das personagens. Abu Zayd ‘Abd al-Rahman ibn Muhammad ibn Khaldun al-Hadrami, o polímata, é, ou foi, uma pessoa real, que foi astrônomo, economista, historiador, jurista islâmico, advogado islâmico, teólogo islâmico, hafiz, matemático, estrategista militar, nutricionista, filósofo, cientista social e estadista.

      Nebula seria um descendente direto do tal polímata.

      Sua vida pode ser acompanhada no link https://pt.wikipedia.org/wiki/Ibne_Caldune

      Grande abraço.

  3. Gustavo Castro Araujo
    9 de junho de 2024
    Avatar de Gustavo Castro Araujo

    Interessante como a imagem associada ao texto pode nos conduzir a um juízo prévio equivocado. Imaginei, ao começar a ler, que se tratava de um beduíno ou algo assim, um vivente da Ásia na Idade Média. Mas não, é alguém mais contemporâneo, bem próximo de nós, vítima das mesmas maldições, no caso, da imaginação e da fome. Muito legais as metáforas acerca das tatuagens. Nunca tinha levado para esse lado. Vou começar a prestar mais atenção a essas nuances: até que ponto se arrastam as tintas que nos habitam? Com o que retornam, capazes de nos transformar?

    • Angelo Rodrigues
      10 de junho de 2024
      Avatar de Angelo Rodrigues

      Olá, Gustavo.

      Obrigado pela leitura.

      Este conto se inscreve num conjunto de textos identificados pelo inusitado, pelo estranhamento. São vinte e cinco, como digo no texto.

      O texto decorre de duas deixas. A primeira foi quando descobri, em leituras, que havia ocorrido, no final do século XIX, uma Grande Fome que se originou no descontrole das monções, chegando ao Norte do Brasil. A segunda decorre de uma ideia que me acompanhava há muitos anos, e falava de tatuagens. Já as havia usado – as tatuagens – em outro conto, mas não achei que haviam sido bem exploradas. Lentamente veio se formando a ideia da dissipação, dos sadhus, maldições etc, e elas ganhando vida, movendo-se autônomas sobre um corpo que as aprisionava.

      Bem, deu nisso, um Nebula dissipado pela fuga de suas tatuagens por decorrência da Grande Fome. As coisas se juntaram aqui.

      Quanto à imagem – de um beduíno -, quando a vi, fiquei intrigado. Não era essa a imagem que eu havia enviado, fora outra. Fiquei imaginando como ela se introduziu no meu texto, como uma tatuagem autônoma, dona do texto que a circunda. Senti um certo estranhamento ao vê-la associado ao meu texto. Ia comentar isso e me dei conta de que desisti de mandar a imagem que inicialmente eu havia separado, feita por mim, que falava mais de tatuagens que de beduínos. Em tempo me lembrei que fora essa a imagem que acabei te remetendo. Fui salvo por pouco de falar bobagem.

      Grande abraço.

  4. Pedro Paulo
    9 de junho de 2024
    Avatar de Pedro Paulo

    “Havia rodado o mundo inúmeras vezes, conhecido todas as terras e todas as gentes, o que legou a ele a certeza do derradeiro desejo de solidão.”

    O trecho acima é mais uma demonstração do lirismo consistente (e apropriado) do conto, mas o selecionei em específico porque me fez rir.

    Um conto com tons épicos, que engrandece o seu personagem místico ao mesmo tempo que mergulha um contexto que, embora familiar ao nosso mundo, também parece imerso em magia. Por isso chamei de “apropriado” o lirismo, pois fica bem casado com a natureza do próprio personagem, como se estivéssemos lendo o livro da Única Verdade, o trecho em que conta a história desse profeta.

    • Angelo Rodrigues
      10 de junho de 2024
      Avatar de Angelo Rodrigues

      Olá, Pedro Paulo.

      Legal que tenha lido e comentado.

      O texto que você separou, de certa forma, me é caro. São tempos que exigem um certo distanciamento crítico, às vezes nem tão críticos, chamando à solidão sem remorso, compassivo.

      De certa forma, com o tempo, se vai querendo mais o silêncio do que o barulho que há por toda parte.

      Grande abraço.

  5. Givago Thimoti
    8 de junho de 2024
    Avatar de Givago Thimoti

    Olá, Ângelo! Tudo bem? Seu conto, como de costume, está bem escrito, com palavras bonitas e rebuscadas. (escapou ali no final de um dos últimos parágrafos uma vírgula no lugar de um ponto final, deslize normal)

    O conto narra breve e biograficamente, com uma pitada de realismo fantástico, a história de um homem que “Não se dizia árabe, não era negro, negando-se ser um caucasiano de pele morena. Não se deixara tocar pelas certezas do Islã, pelas artes da Bíblia ou pelas magias da Torá, negando-se a restaurar o monoteísmo original de Abraão. Vivia, apenas vivia e ensinava o Muqaddimah e a circularidade da História, a única Verdade, segundo a sua compreensão”.

    Uma figura que aparenta grande sabedoria, e tal qual os grandes sábios, que se isola. Gostei bastante de sua morte, ele se esvaindo e suas tatuagens mágicas saindo do corpo.

    • Angelo Rodrigues
      10 de junho de 2024
      Avatar de Angelo Rodrigues

      Olá, Givago.

      Obrigado pela leitura e comentário.

      Nebula – ou Nébula – é, em si, uma névoa. É a dica escancarada que une o início ao fim do texto.

      Nébula – Nebula – Nebúla – Névoa – Dissipado. É um jogo de palavras que vão conduzindo uma ideia que se transforma em conto.

      Grande abraço.

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Informação

Publicado às 7 de junho de 2024 por em Contos Off-Desafio e marcado .