(Aviso ao, até aqui, inocente leitor: esta história não é minha – eu a ouvi pelos corredores, dita em voz baixa por colegas reunidos próximo à mesa do cafezinho, misturada entre outras maledicências que se espalham nas repartições. Não tenho como atestar veracidade nem especular a origem da narrativa; mas identifiquei nela algo similar ao estilo de Nelson Rodrigues, talento ao qual não tenho intenção de me comparar. Mas, como bem dizem, a imitação é a forma mais sincera de elogio – portanto, cometo aqui minha versão, como exercício, imaginando-a na dicção do grande cronista).
Moreira tinha pouco mais de cinquenta e cinco anos de idade e quase trinta e cinco de serviço público. Inclusive, atuando por mais de uma década como chefe do escritório, já havia conquistado reconhecimento unânime. Todos, dentro e fora da repartição, o reconheciam como um grande filho da puta. Na verdade, ele era também um exímio alpinista social, que se utilizara da adulação ao superintendente regional para subir na vida; e da manipulação de seus subalternos para manter-se no poder, mediante intimidação extrema e atribuição a eles, e somente a eles, de qualquer culpa por seus erros e omissões.
Naquela repartição, em que pese a estabilidade empregatícia dos estatutários, havia um alto índice de demissões voluntárias e infartos, resultando em carência crônica de mão de obra e na necessidade permanente de reposição da força de trabalho. Os concursos públicos estavam suspensos por ordem do Ministro, e a única forma de manter os papéis em dia era contar com os esforços bem-intencionados dos estagiários, quase sempre tratados pelo tirânico chefe como mão de obra semiescrava.
Compartilhando desse destino, iniciou-se no escritório uma jovem estudante de contabilidade que, como se dizia então, era de fechar o comércio: morena, baixa, de olhos verdes, o tal tipo mignon. Bem-feita de pernas, pelo menos se podia intuir, devido ao comprimento sempre recatado de suas saias. Mas, sobretudo, formidavelmente dotada de uma comissão de frente indisfarçável: dois belos seios, de compleição e firmeza invejáveis. Inclusive, na opinião das outras duas únicas mulheres por ali – a copeira, uma senhorinha humilde e gentil, que praticamente merecia uma plaquinha metálica de patrimônio nas costas; e a secretária pessoal do Moreira, mulher feia e antipática, tão acostumada e próxima da aposentadoria que preferia ignorar certas coisas.
Linda, esse era o nome dela. Moça simples: preferia Lindinha. Dezenove anos. Morava com uma tia solteirona, lá na Tijuca. Devidamente apresentada a todos, foi designada à sua mesa de trabalhos, à máquina de somar e à máquina de escrever, iniciando silenciosamente as tarefas que lhe foram imediatamente atribuídas – um alentado maço de relatórios financeiros a conferir e a reescrever, se necessário fosse. A moça demonstrou já no primeiro dia grande tenacidade, capacidade de concentração e disposição indômita ao trabalho, apesar da notável timidez. Indisfarçável também era o fato de seus grandes predicados chamarem a atenção de todos, principalmente do chefe. Moreira, frequentemente, trafegava em frente à mesa da nova estagiária, utilizando os motivos mais diversos ou fúteis – passar aos outros uma instrução, verificar um relatório atrasado, e até mesmo buscar, pessoalmente, o café na copa, caminho entre seu escritório cercado de janelas de vidro e o arquivo morto, com seus armários de metal e pastas suspensas.
É claro que não foi o volume dos relatórios conferidos por Lindinha que impressionava o Moreira. Isso ficava escandalosamente óbvio pelos olhares rútilos dispensados pelo chefe da repartição em direção ao colo da nova estagiária, a qual, mesmo sem ostentar decote, tornava-se indecorosamente desnuda em sua imaginação cheio de cobiça. E foi aí que o Proença percebeu a oportunidade de ouro para adular Moreira, o chefe; e, quem sabe, galgar alguns degraus na carreira pública.
*****
“O saco do chefe é o corrimão do sucesso”.
Proença também era um sujeito abominável. Entrara ali, no serviço público, por influência do pai, que fora deputado federal. Mas não evoluía profissionalmente por méritos próprios. Seus principais talentos eram a intriga, a inveja e a adulação. E, principalmente, a admirável lábia que tinha com o sexo oposto, quase a mesma com a qual lisonjeava Moreira, seu chefe imediato. Este, apesar de não corresponder com recompensas consideráveis a tanta disponibilidade, sabia que tinha em Proença alguém sempre à sua disposição, para as tarefas mais absurdas ou até impossíveis.
Durante as primeiras semanas do estágio de Lindinha, todos os machos do escritório admiravam sua beleza física à respeitável distância, e sem a desfaçatez que o poder da chefia lhes poderia conceder, como restava evidente no comportamento do Moreira. A moça, às vezes, chegava alguns minutos atrasada, devido à demora na condução e distância entre sua casa até o escritório; mas Moreira, ao contrário de seu habitual comportamento, nada criticava à bela estagiária, para a qual só tinha elogios.
É óbvio que todos perceberam o que estava acontecendo. Mas o Proença, com seu olhar de águia, sabia exatamente o que outra ave de rapina deveria fazer. Predador cercando a presa, em círculos concêntricos, de cima para baixo, cada vez mais próximo. A jovem não cederia fácil, pois baixava os olhos, envergonhada, a cada investida do chefe. Diga-se, a bem da verdade, que de início Moreira fora discreto, um chefe cortês e respeitoso com ela, e somente com ela. Mas com o passar dos dias, a obsessão foi tomando conta dos pensamentos daquele homem, nitidamente alterado em sua ânsia pela conquista da vítima – digo, da moça – de qualquer maneira. Nem o medo da esposa, que poderia chegar a qualquer momento ao escritório para visitá-lo de surpresa, impedia suas incursões cada vez mais insistentes e suplicantes à mesa de trabalho de Lindinha.
*****
Não se sabe se pelo comportamento de Lindinha, que passou a ir ao toalete com mais frequência retocar a maquiagem, sempre recatada, agora frequentemente manchada em lágrimas furtivas; ou pelas palavras de alguma inconfidência, num desabafo impensado – desconfiava-se que a secretária do Moreira poderia ser a fonte da informação – Proença tomou conhecimento, en passant, sobre suas dificuldades financeiras; e que Lindinha talvez tivesse que abandonar o estágio, e até mesmo a faculdade, para buscar outro emprego, que provesse a ela e à tia uma situação financeira mais estável.
Abriu-se aí a porta da oportunidade.
Proença entrou na sala do chefe sem se fazer anunciar. Surpreendeu Moreira, que estava furtivamente junto à parede envidraçada, olhando por entre os vãos da cortina basculante semicerrada, e vidrado nos seios de Lindinha. O chefe não tentou nem disfarçar:
– Proença, não aguento mais, essa pequena me leva os trocados!
O adulador entendeu a situação. Se dependesse do chefe, nunca se efetivaria o cortejo da moça. Moreira era muito orgulhoso, sovina e preconceituoso, principalmente quanto à classe social e aparências. Nunca abandonaria o casamento convencional por uma aventura, mas estaria disposto a arriscar-se, ao menos dessa vez, se alguém lhe abrisse os caminhos até Lindinha.
Proença prometeu fazer o que fosse possível para providenciar.
“Seu desejo é uma ordem”.
*****
À hora do almoço, enquanto os outros estavam fora, restavam no escritório só a moça e o Proença. Aproximou-se dela e, tão sutilmente quanto permitia sua paquidérmica desfaçatez, colocou na mesa a proposta indecorosa. Lindinha, atônita com a abordagem direta, balbuciou que era direita e que nunca havia tido sequer um namorado. Proença, de olho firme nos dois principais predicados dela, tentou parecer confiável e convincente, insistindo que uma moça como ela, com tão grandes talentos, merecia ser muito bem valorizada, inclusive financeiramente. Que o chefe já se confessara disposto a loucuras para usufruir, nem que fosse por alguns momentos, da intimidade com ela. Aproveitando-se da confusão mental da jovem senhorita, insinuou estar a par da situação financeira desesperadora dela, e que estava disposto a ajudá-la a resolver esse problema e até outros mais…
– Desculpe, seu Proença, eu sou virgem!
Saiu abalada da sala em direção ao toilette feminino, com um rubor indisfarçável em suas faces. Proença não se deu por vencido. Ainda que não tivesse obtido sucesso nessa primeira investida, sabia que só era preciso refinar a lábia e chegar a uma negociação que fosse boa para ambas as partes.
Levou o relatório ao chefe:
– Virgem, não dá. Mas já estou aceitando qualquer coisa…
Moreira não cogitava em desistir. Mas também não queria abrir a munheca e gastar com presentes ou joias caras. Cogitou propor um jantar. Mas Proença o dissuadiu dessa tática, considerando, sobretudo no caso, a premência da situação financeira da moça. Pediu que o chefe esperasse, e essa espera não demorou muito a dar resultado. Um fato decisivo precipitaria em breve o desfecho desse drama suburbano.
*****
Lindinha chegou nervosa, naquela manhã, e pediu à secretária uma agenda “para falar com o Dr. Moreira”. Quando ele chegou, atendeu-a a portas fechadas, e a moça abriu o coração sobre o drama familiar e financeiro que enfrentava com a tia e a casa onde moravam, só as duas. Seriam despejadas em breve. Precisava, humildemente, pedir a ele um aumento, ou que fosse efetivada com salário compatível ao pagamento da hipoteca vencida.
Moreira, controlando-se, abriu a gaveta e tirou de lá um dos seus charutos, guardados para ocasiões especiais. Meditou em silêncio, alguns instantes, surpreso ainda como aquela moça, tão tímida, havia encontrado coragem para agir, suplicante, daquela forma.
Moreira meditou por alguns instantes. Despejou então o valor de sua proposta, não como aumento, mas para uma única uma noite de amor com ela. Lindinha balançou na cadeira, mas não cedeu. Afinal, era virgem. Precisava do dinheiro. Mas a quantia proposta pelo pão-duro era por demais aviltante, até para uma meretriz.
Humilhada, Lindinha agradeceu a atenção do chefe e saiu da sala, chorando.
Proença observou todo o drama do lado de fora. E, logo em seguida, entrou na sala do Moreira, para inteirar-se do que havia acontecido.
– Calma, chefe. Deixe comigo, que eu sei como resolver essa situação.
Mais tarde, novamente na hora do almoço, Proença abordou Lindinha:
– Que pena – disse ele, passando amigavelmente a mão nos cabelos da moça. – Entendo que você esteja apegada a essa convenção social, o casamento de véu e grinalda. Mas não há nada que se possa fazer para resolver a situação com o chefe?
Adotou um tom mais canastrão:
– Ele está desesperado, mas é para fruir por alguns momentos da sua formosura…
Lindinha recusou-se a ceder sua virgindade. Ao perceber que não chegariam a lugar nenhum, negociando nesses termos, Proença propôs uma solução alternativa:
– Escuta, pequena: se você deixar ele dar uma mordidinha, só uma mordidinha, no mamilo do seu seio, sei que ele é capaz de pagar uma quantia que você nunca viu na vida…
E Proença escreveu num papel, com todos os zeros, o valor: um conto de réis. Tudo isso para realizar a única tara de Moreira: uma inocente mordida de Moreira nos mamilos de Lindinha.
A jovem ficou abalada. O numeral era astronômico, e suficiente para quitar, ao menos, duas ou três parcelas vincendas da hipoteca. Sem dar resposta imediata, agradeceu ao mensageiro, pediu licença e saiu à rua, para arejar os pensamentos.
*****
Proença explicou ao chefe sua estratégia. Na segunda-feira seguinte, Lindinha procurou Proença, afobada:
– Sim. Diga a ele que eu aceito a proposta.
Passara um final de semana de angústia, remoendo-se. Até que resolvera aconselhar-se com a tia solteirona. Que, claro, muito interessada em resolver logo a pendência financeira da hipoteca, havia opinado:
– Não tem nada de mais, minha filha. É só uma mordidinha… e você continuará intocada…
Como prezava muito a opinião da tia, Lindinha aquiesceu, inocentemente.
*****
Fim de expediente. Moreira e Lindinha, cada um em sua mesa, permaneciam sob a luz tênue de suas luminárias empoeiradas, enquanto os outros funcionários iam embora, paulatinamente, para fruir o fim de semana. Proença estava ao fundo, preparando a cena do ato. Permaneceria oculto, na sala do café, como testemunha quanto ao desenrolar da transação
Conforme fora instruído, Moreira saiu de sua sala e dirigiu-se até a sala do arquivo morto. Piscou para a moça, a caminho de seu destino.
No mesmo andar da repartição, havia escritório de contabilidade no qual os donos trabalhavam todos os dias até mais tarde. Poderiam desconfiar de qualquer barulho fora de hora. Para não chamar a atenção, Proença pediu silêncio à Lindinha e desligou todas as luzes da sala principal, apontando a ela a direção: Moreira já a estava esperando.
Lindinha sentia o estômago embrulhado, mas sabia que aquilo precisava ser feito. “Só uma mordida e estaremos livres dos credores”, pensou.
Esgueirou-se pelas sombras até o depósito. Arquivos metálicos ocupavam a maior parte da sala, com suas gavetas semiabertas, vomitando processos. Proença fez um sinal silencioso para que a moça se recostasse, em pé, num dos armários mais ao fundo, quase encostado na parede. E, com inimaginável pudicícia, para garantir privacidade ao ato e afastar do Proença a tentação de espiá-los, abriu uma das gavetas mais altas de arquivo ao lado, ocultado pelo menos da porta a visão dos seios de Lindinha. Ela, agora, estava livre para desnudar-se, tirando blusa e sutiã, diante de Moreira. Tremiam ambos. Uma de medo, outro de prazer antecipado.
Proença, do corredor, ficou só ouvindo os sussurros. Moreira abaixou-se, aproximando seus olhos ao nível dos notáveis atributos da moça, que subiam e desciam no ritmo de sua respiração ofegante. Lentamente, pousou os lábios sobre o bico do seio direito de Lindinha. E começou a chupar seu mamilo, apaixonadamente, várias e várias vezes, fazendo movimentos circulares com a língua.
Lindinha estranhou e, em cinco segundos de bolinação, decide reclamar:
– Não vai morder, não?
Proença ouviu o chefe, a contragosto, parar para responder:
– Eu não. É muito caro.
Nelson Rodrigues está aí: a ambientação, os diálogos, os arquétipos, o sarcasmo, a inocência e a canalhice, tudo bem tipicamente brasileiro com cara de século XX. Nada de Bem contra o Mal, mas todos dentro do espectro cinza, com variações de tons. No final, sempre vence o mais esperto e inescrupuloso. Achei bastante ofensivo.
Posta mais.
Olá, Anônimo.
Gostei da emulação muito bem feita do estilo de Nelson Rodrigues. Estão aqui os elementos típicos das obras do autor: a virgem, o homem casado infiel, a repartição pública, o puxa-saco, etc.
Fiquei, em verdade, com pena da mocinha, pois era correta, competente e trabalhadora e acabou por ser abusada pelo chefe. A piada no final é engraçada, embora tenha reforçado minha pena pela estagiária: ainda por cima não vai receber o combinado?
Abraços!
Buenas, autor anônimo. Ou seria autora? Sou péssimo nisso.
A escrita é madura, carrega o leitor até o fim da leitura sem qualquer problema. Redondinha, como os peitos da estagiária. A história carrega uma crítica sutil aos ambientes de trabalho onde a masculinidade tóxica impera. Lindinha é apenas mais uma vítima dos inúmeros assédios corporativos que ainda existem por aí. Inclusive, presenciei um caso semelhante. A menina não tinha paz. Eram olhares, comentários, piadinhas, aproximações indevidas. O pior de tudo: todos viam o que estava acontecendo, mas ninguém teve coragem de fazer nada. Inclusive eu, que dependia daquele trabalho. É uma espécie de cegueira coletiva, onde a moral é invertida. Gosto deste tipo de texto, pois, afinal, sua crítica é tão sutil, leve, que agrada vários tipos de leitores. Enxerga quem quer, sabe?
O tom pessimista combinou bastante com a premissa da história, além dos personagem, todos bem estereotipados, casam perfeitamente com a mensagem. Nada mais absurdo do que a realidade, não é?
Continue escrevendo, autor anônimo! Ou autora, hehe.
Inclusive, acho que sei quem é o autor, rs.
Gente, eu vi Nelson Rodrigues ali narrando, e assisti o conto como um episódio do excelente A Vida Como Ela É. Um conto cheio de detalhes saborosos, e personagens muito bem desenhados. Gostei.
De um modo geral o conto é muito bom, bem escrito, e que mantém o interesse do leitor pelo desfecho.
Apenas duas coisas o afastaram da excelência absoluta, achei que o texto poderia ser bem mais enxuto, e o final não me surpreendeu porque já o tinha visto em um livro de piadas. A diferença é que a moça em questão não era uma estagiária, mas uma prostituta. Fora isso, só tenho a dar parabéns ao autor, sobretudo pela escolha do ambiente cheio do charme canalha dos anos cinquenta com as suas saias rodadas, mocinhas virgens, e escritórios fumacentos. Parabéns, e um abraço.
Ufa!!!!!. Que saborosa estória. Leitura amável e intrigante.
Confissão: nunca li Nelson Rodrigues. Por favor, não joguem pedras, há uma abundância de telhados de vidro no mundo!
Ainda assim, eu me senti assistindo uma daquelas novelas muito antigas, de quando eu era criança. Os trejeitos dos personagens, as descrições do ambiente, tudo me remeteu a uma época ainda muito real para mim, mesmo que apenas presenciada por olhos infantis. E a cena final, é daquelas que minha mãe me tirava da sala, mas que eu voltava e espiava pela fresta da porta ou pelo vão dos degraus da escada. Quem nunca?
O conto inteiro é uma grande preparação para uma piada final, que me fez rir, como deveria. Leitura muito gostosa.
É texto escrito assim, dessa forma magnífica, que me faz pensar que estou muito longe de ser um bom escritor!
Olá Anônimo.
Um conto interessante, que lembra muito Nelson Rodrigues, pela ambientação, pelo tema e pelos personagens. Porém, para mim, não passaria por um conto rodrigueano, apesar da qualidade inegável do texto. Fiquei aqui matutando no por quê. Para além da falta de algumas expressões que ele sempre usa muito, como “batata” e “estouro” , ou referências à teofilia, concluí que o narrador dos textos de Nelson Rodrigues tem uma voz muito peculiar, ele próprio soa um tanto cafajeste.
Mas, enfim, entendo que nem era esta sua intenção, fazer-se passar por Nelson. Seu objetivo, acho, corrija-me se eu estiver errada, era emular um pouco do universo rodrigueano e, neste caso, mandou muitissimo bem.
Contou uma história interessante e divertida, com um final bem anedótico.
Parabéns.
O conto me fez recordar os meus 20 anos quando eu trabalhava como Contínuo num escritório de contabilidade, os abajures cobertos de pó, os armários de metal, as máquinas de escrever e a nova funcionária gostosa que não dava bola pra ninguém. O conto, disseram, tem o estilo de Nelson Rodrigues, mas acho que ele era mais contundente, pervertido, chamado de Anjo Pornográfico. Aliás, naquele tempo, talvez hoje não. O conto está bem escrito, uma ou duas palavras arcaicas do tempo do Nelson. Muito boa as descrições e criação dos personagens. Parabéns.
Ao ler o conto, particularmente a parte explicativa inicial, me veio o que aconteceu com Jean Antoine Galland, que ao publicar a primeira versão ocidental de As mil e uma noites, incluiu nela um conto que nunca pôde ser encontrado nas versões anteriores do ‘Quitab alif laila ua laila’; era Aladim e a Lâmpada Maravilhosa, escrito pelo próprio Galland, um francês, e não um árabe, como deveria ser.
Na crônica Flor de Obsessão, Nelson Rodrigues diz que “Sou um obsessivo. E, aliás, que seria de mim, que seria de nós, se não fossem três ou quatro ideias fixas? Repito — não há santo, herói, gênio ou pulha sem ideias fixas. Só os imbecis não as têm.”
— Batata! — diria Nelson Rodrigues.
Sempre haverá quem deseje ver sua obra confundida com a de um grande mestre, e saborear, ainda que obliquamente, a fama alheia. Uma obsessão que sempre permeia qualquer tipo de arte.
Interessante esse desejo mimético tão pouco estudado, o de inserir novidades na obra de outro. Um legítimo falso era tudo o que vinha do Senhor Konrad Paul Kujau, que tinha paixão por falsificar. Falsificava tudo, inclusive livros que ele mesmo escrevia e legava a outros a autoria. Após escrever — falsificar — um diário de Hitler, vendeu-o por 2,5 milhões de Marcos Alemães a um comprador, que o repassou à Revista Stern por 9,3 milhões. Tudo após a mais profunda verificação de historiadores e especialistas em grafologia atestarem que o tal diário era autêntico.
Kujau, um alemão de Löbau, não parou por aí, falsificou pinturas de Rembrandt, Van Gogh, Cézane, etc. etc., com a máxima perfeição. Tanto assim que ao ser preso e descobertas as suas trapaças, tiveram os especialistas dificuldades para provar que tudo que fizera Kujau era falso, embora ele próprio confessasse a falsidade do que fazia.
Estava ali o desejo de se reconhecer em outro, ganhar a importância que tem o outro, algo que o levava a museus não para admirar suas próprias obras, mas para se ver no espanto dos olhos daqueles que observavam sua perícia como pintor — como falsário. Ele era Rembrandt, Van Gogh, Césane, e até Hitler, não se importava, queria ver-se em olhos admirados.
O nosso Kujau é, aqui, parece vislumbrar uma tentativa de ser Nelson Rodrigues.
O conto está bem escrito e passa bem a ideia que permeou uma época, a da submersa traição, da ganância e do pudor recolhido. Está muito bem escrito, embora use termos que fujam um pouco ao léxico do Nelson, além de haver escapado ao autor que ele, o Nelson, em diversas oportunidades teria usado o termo “Batata!”, para expressar uma assertiva qualquer do Proença ao Moreira.
Acredito que hoje as coisas funcionem de outra maneira, embora o objeto de tudo não se tenha modificado. Há Lindinhas, Moreiras e Proenças pra todos os lados, as repartições são mais arejadas e a luminosidade de tudo é maior, só que agora correm o risco de um processo por assédio.
Seja quem for o senhor Anônimo, parabéns pelo conto.
Caramba, o comentário é tão bom quanto o conto kk Me fez lembrar do Stephen King, que desmistificava a ideia de imitação. Dizia ele que não havia nada de mau em copiar contos de autores que se admira, modificando aqui e ali o texto, quem sabe dando outro final. É disso que se alimenta o escritor, dizia ele, aquele que busca a inspiração e que, no fim, remodela a arte a seu critério.
Obrigado, Gustavo!!
Esse tema dos falsários é bem legal. A vez que mais me espantei, foi quando, após ler “A Casa das Belas Adormecidas”, de Yasunari Kawabata, casualmente, mas não imediatamente, fui ler “Memória de Minhas Putas Tristes, do Gabriel Garcia Marquez. Foi incrível descobrir que o livro de Marquez é uma cópia fiel do livro de Kawabata, detalhe por detalhe, mas apenas transposto do Japão para a Colômbia. São ambos livros incrível, só que um veio antes do outro.
Nunca vejo ninguém tocar nesse assunto, dessa cópia excepcional. São dois Prêmios Nobel de Literatura. Imaginei que isso nunca viesse a acontecer, mas aconteceu. E estão lá os dois títulos vendendo bem.
Texto sarcástico e carregado de crítica aos costumes da época, ambientado na sociedade dos anos 50/60, acredito eu. É tão fidedigno ao estilo rodrigueano, que até mesmo a imagem criada pela leitura chega a ser vista em preto e branco. Enquanto eu lia, era como se estivesse assistindo a um filme produzido sem cores. Trabalho muito bom.
Nada mais rodrigueano do que ambientar textos em “repartições públicas”, aflorar a devassidão e a imoralidade que desumanizam o homem quando algum poder lhe é concedido. Até mesmo o clima pessimista que permeia o conto traz o estilo de Nelson Rodrigues.
Narrativa bem detalhada, envolvente, de escrita competente. A crítica social é um tema sempre atual. Se Nelson vivesse ainda hoje, ele teria material farto para mergulhar e produzir suas crônicas e contos sarcásticos que regaçassem os vícios e o falso moralismo abundantes na sociedade. A hipocrisia que está em toda esquina e a cegueira inexplicável que acomete grande parte da sociedade (cegueira da qual que ele também padeceu), iriam “engatilhar” textos notáveis. Como é mesmo?! “Deus, Pátria, Família e …”
Acredito que textos como este atravessam o tempo. Mesmo sendo um ferrenho defensor da extrema-direita na sua época (defendia a ditadura), conservador obsessivo, Nelson teve tempo para enxergar (duramente) o quanto a falta de liberdade é nociva ao homem. Hoje, se aqui estivesse, acho que para mim, seria um parceirão.
Parabéns, AUTORA “Anônimo”! Trabalho muito bom!
Abraços…
Excelente comentário. Assino embaixo.
Tamo junto!
Olá! Gostei bastante do conto. Tem essa atmosfera cafajeste, típica dos textos rodrigueanos — a quem aliás você inteligentemente presta homenagem expressa.
O clima de repartição pública é muito bem criado, com aqueles personagens típicos: o chefe tirânico, o puxa-saco e a mulher inocente mas bem dotada. Não chega a ser original, mas o que o é, atualmente? Fato é que você trabalha muito bem esses elementos e cria no leitor um misto de curiosidade, repulsa e vontade de saber até onde vai a estratégia de Moreira e Proença no intuito de abater a pobre da Lindinha.
É possível que algumas pessoas deixem de gostar do conto por conta dos estereótipos criados, mas acredito que a literatura não pode nem deve se restringir a assuntos que agradem sem ofender, afinal, se assim fosse, estaríamos condenados a escrever apenas sobre o poder de crescimento dos musgos no lado sul das árvores amazônicas.
Enfim, é um texto excelente, muito bem construído, divertido e que entretém com bastante competência. E melhor, termina com um chiste inesperado. Não dá para ser melhor. Parabéns!
Olá, Anônimo! Tudo bem?
Esse é um conto que, do início ao fim, respira, se veste e se amamenta da trama de Nelson Rodrigues. Repartição pública, Rio de Janeiro dos anos 1950 (eu suponho), a figura feminina delicada e dócil (até, pelo menos, a página 2), as figuras masculinas lascivas, não tão preocupadas com a moral (especialmente quando considerados Proença)…
O grande talento de Nélson é, ao seu jeito esdrúxulo carioca de ser, despreocupadamente falar o que ninguém gosta de falar publicamente, mas sim baixinho, numa mesa de bar, abafado pela típica algazarra de um boteco.
No geral, acho que foi uma boa homenagem, de alguém que tentou ao máximo se aproximar do estilo do Nelson Rodrigues.
O desafio ao escritor anônimo talvez seja adaptar Nelson Rodrigues ao mundo atual