Amanhã é o último dia de aula. Acabou o curso. Quem foi aprovado, muito que bem. Quem não foi, já era.
Agora só quero o meu certificado. Festa de formatura? Sai fora. Não vou desperdiçar dinheiro com besteira.
Todo mundo lá arrumadinho, sorridente, fazendo de conta. Eu, hein?
Quero meu certificado, mano. Chego na secretaria, pego o papel e vou-me embora pra nunca mais voltar. Nem olho pra trás.
Três anos terríveis. Professores lixos, colegas idiotas, escola caindo aos pedaços.
Alguém por acaso se lembra da menina que se matou no ano passado? Que pulou na frente do ônibus? Não, né?
Fui lá na diretoria e avisei: a Daiane está com depressão. Ela anda falando umas coisas que gente normal não fala. Avisa lá a família dela antes que seja tarde.
Jacaré avisou? Nem jacaré nem a diretora. Depois que chegou a notícia foi um tal de ai que horror pra cá, ai que pena pra lá, colega chorando no fundo da sala, professor fazendo discurso sobre o perigo das drogas. Que droga, mano? A Daiane nunca usou droga! Nesse dia quase parti pra ignorância.
Depois do chororô, ninguém mais tocou no assunto. Acho que só eu ainda me lembro disso nessa zorra de escola.
E a inspetora homofóbica? Foi dar bronca no sujeitinho que estava escrevendo na parede, até aí concordo que vandalismo não pode, mas precisava tanta falta de educação? Tanta gritaria? Não, né? E no final, igual à cereja em cima do bolo, chamou o cara de gayzinho sem noção.
Logo ela, mano! Logo ela que todo mundo sabe que é lésbica. Como pode isso?
Olha, foi dureza aguentar professor de português falando errado. Tipo: oucem aqui, pessoal, a prova é dia tal e tal! Juro, não tô inventando. O cara falou bem assim: oucem aqui!
E a professora que não dava aula porque mandava todo mundo apresentar trabalho? Toda vez tinha apresentação de trabalho. Ela ficava lá sentada assistindo. Quase nunca falava alguma coisa. Desse jeito até eu.
Sinceramente, mano? Cansei. Levar papel higiênico de casa, beber água direto da torneira, engolir merenda de bolacha seca, sentar em carteira quebrada.
E a galera fazendo zoeira sem parar. Quase não dava pra ouvir nada. Eu lá querendo anotar as coisas, entender a bagaça da matéria, levantando a mão para fazer pergunta, tudo pra depois aguentar a gozação. Olha aí a nerd! Essa daí vai pra NASA quando se formar! Cê tá pagando quanto pelas notas?
Ai, as meninas. Tão arrumadinhas. Batonzinho na boca, piercezinho na orelha, esmaltezinho nas unhas. Burras que nem uma porta. Porta ou porca? Sei lá. Aula de matemática: professor, por que o triângulo equilátero não tem hipotenusa?
Nessas horas eu ficava com dó do professor, apesar de ele também não ser lá grande coisa.
Os carinhas da classe, então, só ligados nos bagulhos que rolam na pracinha. Sabe a pracinha em frente à escola? Muita coisa acontece ali, principalmente na hora do intervalo. Todo mundo sabe, menos a direção. Sair no intervalo não pode, mas cadê que tem inspetor no portão? Sai quem quer, mano. Sai quem quer, entra quem quer, faz o que quer.
Amanhã é o último dia, por isso muita gente não vai. Eu vou. Pra sentir que terminei mesmo essa etapa. Que terminei para sempre. Tipo ir ao velório só pra ter a certeza de que o defunto morreu.
E também pra colocar uma rosa naquele cantinho do pátio, lá onde tem o pé de ipê amarelo. Uma rosa em homenagem à Daiane.
Nunca vou esquecer. Foi bem ali, naquele cantinho, perto do ipê amarelo, que trocamos o nosso primeiro e o nosso último beijo.
Adeus, Daiane. Fica na paz.
Olhe, Zulmira, penso que nunca tinha lido nada seu, mas gostei muito. A fala é natural, tem a desenvoltura própria do raciocínio adolescente, é um conto narrativo e não de enredo, não precisa de aprofundamento dos personagens, nem um adolescente poderia transmitir essa percepção e continuar credível.
É a narrativa de uma jovem na idade em que termina o liceu e nunca mais quer por os pés na escola, onde percebeu a imensa hipocrisia e indiferença das pessoas.
É assim no Brasil e em muitos outros países, no ensino público e no privado, dentro e fora da escola – as pessoas são assim.
E a história tem um excelente final, que serve para fechar o círculo, este, em forma de coração.
Parabéns, um abraço.
Olá, Zulmira, boa tarde
Gostei do seu conto. Eu fui uma das pessoas que não voltou, que acha a cerimônia um tanto quanto tenebrosa, e senti em seu conto uma verdade muito latente, à respeito da condição do aluno de escola pública, coisa que é muito dificil de encontrar na literatura, ainda mais no Rio de Janeiro (de onde julgo serem as personagens pelo sotaque). O único que me lembro agora qu fez algo assim foi o Geovani Martins, e eu pago pau meesmo haha
O único ponto negativo (que não é tanto assim se estivermos tratando de a personagem-narradora (belamente desenvolvida, por sinal) ser uma pessoa ignorante de sua condição social) foi como o texto deixou arestas para uma percepção depreciativa do ensino público onde são as peças o problema, não o sistema. Por exemplo, na coordenadora lésbica, senti que faltava uma demonstração de normatividade da parte desta e que essa normatividade era imposta; senti que os alunos eram um tanto unidimensionais, apenas a casca da rebeldia não o cerne.
Maas, como disse, também conheço o menino-protagonista, entendo como ele pensa e como ele vê estes obstáculos, e não me parece errado as falas. Só meio embaçado o intento da narrativa para com esta informação.
No mais, quero ler mais coisas suas!
Abraços e parabéns pelo conto
Aliaas, a revelação do romance no fim foi um ótimo toque. Toda a narrativa relacionada a Daiane foi executada majestralmente
Oi, Zulmira!
A forma como você escreveu esse conto causa muita aproximação e empatia com o leitor, é muito verossímil.
Gostei! Parabéns!
A autora captou bem o que são as escolas públicas no Brasil. Claro que, na minha experiência, tive altos e baixos, professores esquecíveis e outros que me marcaram profundamente, inclusive me incentivando a ser o que sou: um aspirante a escritor. Contado por um narrador adolescente que acaba de atravessar um tsunami de acontecimentos e emoções, a única preciosidade que construiu nesses três anos foi a relação breve com Daiane.
Achei que o conto conversa bastante com a juventude brasileira, de modo geral, muitas vezes com a autoestima abalada, desconfiada, insegura e ressentida pelo legado que lhe deixaram.
Parabéns pelo conto!
Obrigada, Thiago. 🙂
Você pegou bem o espírito do texto.
Algumas passagens se baseiam em fatos reais. Eu ouvi uma professora de *Português* dizendo “oucem aqui”. E uma inspetora assumidamente lésbica chamando um aluno de “gayzinho sem noção”.
Inúmeras coisas horríveis-maravilhosas acontecem no ambiente das escolas públicas. Para o bem e para o mal, são sempre experiências marcantes — e que rendem muitas histórias.
Uau, amei! Exatamente o tipo de conto que eu amo: enxuto, preciso e que pega a gente pelo coração. Muito bom, parabéns!
Que delícia saber que o conto pegou alguém pelo coração! 😊
Obrigada.
Que delícia saber que o conto pegou alguém pelo coração! 😊
Obrigada!
O conto retrata muito bem a realidade da maioria das escolas e a revolta juvenil. O parágrafo final foi emocionante, amarra bem o conflito do conto. Gostei!!!
Fiquei feliz com o seu comentário, Dayanne.
O que pode ser melhor, para nós que escrevemos, do que emocionar? ❤
Nice. Gostei. Parabéns.
Obrigada, Eduardo!
Gosto de fazer experimentações com diferentes tipos de linguagem, e achei interessante tentar imitar a fala da “galerinha”. 🙂