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Detox Literário.

Um Quadro da Vida – Conto (Marcia Dias)

Bianca espalhou todos os presentes que recebeu em cima da cama: um liquidificador, um par de canecas com temática de noivos apaixonados, um jogo de panos de prato com galinhas petit poá bordadas e, dentre outros facilitadores da vida doméstica, aquele estranho quadro de vidro com borboletas coloridas. Não achou graça em pensar que aqueles serzinhos morreram para embelezar algum canto da casa. Forçou-se a pensar que foram feitas de papel, tão bem desenhadas que pareciam de verdade. Animou-se e pregou o quadro na parede, orgulhosa de seu primeiro ato decorativo na casa onde passaria a morar junto com o futuro marido, com quem já namorava há 2 longos anos.

Tudo caminhava conforme o esperado, todos os atos e fatos jurídicos do casamento meticulosamente programados e tudo fluindo: o bolo, as lembrancinhas, o jantar, o vestido, os ensaios das danças bregas, o brinde e até o latim do padre. A mobília, agendada para ser entregue no novo endereço dos pombinhos; os convites, todos enviados; a noivinha, essa também ensaiou várias vezes o novo trajeto casa-trabalho-casa, nas modalidades a pé, de carro e com transporte público. A moça também já sabia onde faria compras de mercado da semana, do mês e até do ano. Nossa heroína romântica também já havia se projetado anos-luz e anteviu até os seus bisnetos, sendo capaz de adivinhar a cor dos seus cabelos. Pronto! Só faltava consumar aquele sonho minuciosamente arquitetado e feliz.

A véspera do grande dia chegou! Bianca amanheceu tranquila, o que julgou ser um bom sinal, o prenúncio de uma bênção. O telefone tocou. Era a loja de móveis querendo entregar a mesa que encomendou para a vida nova. A noiva já estava saindo do novo apartamento quando seu Transtorno Obsessivo Compulsivo lhe ordenou voltar e dar uma olhada no quarto do casal, onde pusera o quadro das borboletas. Abriu as janelas e sentou-se na cama. Uma corrente de ar entrou no quarto e o quadro balançou, em seguida caiu no chão, quebrando a metade do vidro e junto, sua vida toda direita. Bianca mal podia acreditar no que via! As borboletas começaram a sair do quadro, uma a uma, voando para fora da janela. Como assim? Eram mesmo verdadeiras! E vivas! Por quanto tempo viveram ali, graciosas por fora, amassadas por dentro?! Como sobreviveram?! Que loucura! O que isso queria dizer? Como poderiam viver paralisadas e mudas? Correu para a janela e conseguiu ainda vê-las entrando nas copas das árvores, para depois perderem-se de vista. Esperou, olhando para fora da janela, que alguma piedosa borboleta lhe explicasse aquele surto, o que não aconteceu.

O mundo pausou. Bianca pensou que estivesse saindo de si mesma, como as lagartas fazem. Saiu de seu casulo de mulher reprimida. Suas roupas a apertavam, seu desconforto crescia à medida que uma terrível ideia se fixava nela: não poderia se casar! Aquelas borboletas loucas não paravam de bater as asas em seu pensamento e pareciam alertá-la do perigo de se entregar a uma vida a dois, naquele momento em que ela não tinha a sua parte para somar. Bianca descobriu não saber se amava o futuro marido. Por que passou meses programando cada detalhe daquela maldita cerimônia? Percebeu que o sol pediu a lua em casamento, mas a lua aceitou em sua fase minguante e agora se via cheia de tudo! A ficha só caiu junto com os estilhaços do vidro do quadro.

Lembrou-se de quando era criança e como se decepcionava com as bonecas que ganhava de presente, todas tão lindamente enfadonhas; das amigas estranhando suas incursões nas conversas sobre os rumos do país com um ou outro esquisito nas festas, enquanto a maioria beirava o coma alcoólico. Percebeu como suas asas foram tolhidas ao longo de sua existência. Como era difícil ser ela mesma, sem dogma, sem roupagem, mulher, forte, fraca, doce, amarga, simplesmente deixou-se levar até… o altar. Não! Não mais!

Difícil descrever o que se passou com aquele casal naquele dia. Como foi dolorido o que se ouviu e o que se disse. Louça quebrada, coração partido, sonhos destruídos, filhos abortados antes da concepção, batalha perdida antes da luta, ressentimentos e aquele vazio que brota quando tudo termina, beirando o apocalipse. O ex-futuro marido ainda conseguiu desejar que Bianca encontrasse sua felicidade, o coitado! Despediram-se e, ocos, voltaram para os seus lares, cada um carregando sua bigorna de frustração. A ex-noiva, atordoada, nem percebeu que foi parar na portaria do prédio onde moraria com o pobre homem.

Desaprender tudo aquilo levaria um tempo, mas Bianca precisou fazer o que era preciso e estava disposta a conhecer a única vida que se despia na sua frente. Sentiu esperança ao imaginar como se apresentaria ao mundo dali para frente: “Muito prazer, meu nome é Bianca e não gosto de cerimônias vazias! Também sempre faço um trajeto diferente até o trabalho para não viciar o olhar. E nunca me presenteie com canecas com temáticas bregas, por favor…”. Respirou fundo e olhou para cima. Viu a janela do ex-futuro quarto aberta e resolveu subir para fechá-la, já que estava mesmo com a chave do apartamento. 

Ao entrar no quarto, sentiu um calafrio ao ver aquele quadro quebrado e vazio no chão. Quando se aproximou da janela, um barulho ensurdecedor veio de fora. Uma nuvem de insetos entrou pela janela, desviando-se de Bianca apenas o suficiente para conseguir entrar no quarto. Ela virou-se e viu o pequeno exército de borboletas voltarem para dentro do quadro de vidro quebrado. Cada uma assumiu a sua posição naquele espaço de fundo branco e frio, e congelou-se nas posições às quais lhe estavam reservadas. Notou que algumas não retornaram, obedecendo à lei do movimento e transformação. Mas chorou pelas que resolveram ficar, doeu-lhe o espírito ver aquelas formas tão belas e libertárias, de curvas e tons tão diversos e brilhantes, mas que ainda pensavam como larvas que não fizeram a metamorfose completa.   

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11 comentários em “Um Quadro da Vida – Conto (Marcia Dias)

  1. iolandinhapinheiro
    30 de abril de 2021

    Querida, Márcia. O seu conto é uma mistura de narrativa fantástica (realismo fantástico para ser mais precisa) com uma narrativa metafórica que nos faz pensar nas referências entre as lepidópteras e as mulheres que precisam romper com o padrão esperado para assumirem a própria evolução, pois não é justamente uma evolução aquilo que transforma a lagarta numa borboleta? Achei a comparação muito feliz. Gostei do conto inteiro, mas a cena das borboletas voltando para a caixa de onde saíram foi muito marcante.

    Parabéns pelo seu criativo conto e agradeço por ter comentado o meu.

  2. Andréa Prata de Freitas
    28 de abril de 2021

    Achei o conto maravilhoso. Márcia tem um potencial enorme e deve aproveitar o máximo possível para escrever um livro.

    • Marcia Dias
      29 de abril de 2021

      Minha amiga, mas eu comecei agora! kkkkk Estarei realizada se escrever mais meia dúzia de contos! Mas obrigada pelo carinho, Andréa! 😉

  3. Elisabeth Lorena
    28 de abril de 2021

    Um quadro da vida

    As borboletas como metáfora para a condição feminina é um tiro de misericórdia. A fuga libertando a noiva e a volta de muitas ao final, mostrando que algumas Lepidopteras retornam ao espaço mínimo, que por mais desconfortável que seja, parece seguro. e, infelizmente, muitas mulheres ao conhecer a responsabilidade do voo solo e as dificuldades deste, prendem-se no lugar comum, como as belas borboletas.
    O incrível dessa metaforização é que borboletas não são fáceis de pegar e, ao voltar, elas se entregam, a vida programada antes já quebrou sua resistência. Outro ponto positivo do texto é que as borboletas já estão em sua fase final. A autora não usou a metamorfose delas e sim a prisão, liberdade e retorno ao “cárcere”. As lepidopteras aqui não simbolizam a alma humana – que é uma interpretação grega – estão ligadas diretamente ao feminino e, portanto tendo uma percepção nipônica, afinal, os japoneses fazem uso dessa simbologia.
    Gosto de textos com possibilidades de observação. As borboletas, como liberdade e como mulher não fazem parte de meu campo de pesquisas. Na verdade, para a minha área elas simbolizam a transição entre a vida e a morte, entretanto, vê-las aqui dentro de um contexto de liberdade diferente do ambiente paliativo e terminal me trouxe uma certa leveza e gosto desse resultado quando leio.
    Outra qualidade de seu texto é que ele deu uma ideia bem marcada da diferença dessa mulher antes do encontro consigo e depois desse fato e, mesmo que rápido, dado a extensão do conto, foi criado ambiente, motivo, mudança e renovação de forma crível.
    Para mim é exatamente assim que um texto deve trabalhar para ampliar ou abrir horizontes de reflexão no leitor, sem tentar enxertar a opinião do autor ou de um grupo.
    Ponto alto: “Muito prazer, meu nome é Bianca e não gosto de cerimônias vazias! Também sempre faço um trajeto diferente até o trabalho para não viciar o olhar. E nunca me presenteie com canecas com temáticas bregas, por favor…” E diferente dela, minha descoberta me fez ver que amo canecas bregas. Breguíssimas, Estou doida em um Papai Noel e em um Ariano Suassuna que vi no Instagram.
    Seu texto é reconfortante e com certeza trabalharia em uma aula de Cidadania com adolescentes.
    Parabéns.

    • Marcia Dias
      28 de abril de 2021

      Elisabeth, puxa! Seu comentário me arrebatou! Não sabia da simbologia japonesa das borboletas (não sabia nem da grega, só tinha um leve palpite!). Você me fez refletir também sobre a possível interpretação da transição entre a vida e a morte, o que acontece, de certa forma com a Bianca, que morre e renasce.

      NOSSA, eu me sentiria muito honrada se o texto fosse trabalhado com adolescentes!

      Quanto às canecas, Bianca não entende de nada! Adoro todas!

      Muitíssimo grata pela leitura e aula!

  4. Zulmira
    28 de abril de 2021

    Uau! Fiquei sem fôlego!
    Já estava torcendo por ela desde o começo. Era uma perspectiva bem chata, ainda bem que não se concretizou.
    Gostei muito. Parabéns.

    • Marcia Dias
      28 de abril de 2021

      Zulmira, muito obrigada! Eu confesso que no finalzinho eu escrevi chorando, mas não conta para ninguém, pelamordedeus!

  5. Anderson Prado
    28 de abril de 2021

    Ótima representação da melancolia. Texto bem escrito. Parabéns!

    • marciacoisinha
      28 de abril de 2021

      Obrigada, Anderson! Sou nova por aqui e no universo da escrita. Os comentários de vocês são muito importantes!

  6. Simone
    28 de abril de 2021

    Belo texto!! Parabéns

    • marciacoisinha
      28 de abril de 2021

      Obrigada, Simone!

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Publicado às 28 de abril de 2021 por em Contos Off-Desafio e marcado .
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