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Detox Literário.

Espera – Conto (Zulmira Carvalheiro)

Parado aqui na porta da minha choupana, fitando a imensidão do céu, tenho visto o mundo se transformar.

Sentei nesta soleira há muito tempo e nunca mais levantei. A não ser uma vez, quando peguei doença e me carregaram para dentro. Mas depois voltei e aqui estou como sempre, espiando a estradinha de terra.

Enquanto isso o sol nasce, o sol se põe, e tudo vai mudando.

Os morros eram verdes de tanta árvore. Aí derrubaram tudo. O verde sumiu. Só se via a terra e a poeira que o vento esparramava.

O tempo passou, a terra verdejou outra vez. Mas não é como antes, só cresceu mato rasteiro.

O riacho também modificou. A água, de clarinha que era, escureceu. Nem enxergo mais a correnteza. Deve ter secado tudo.

Quando os morros eram verdes e as águas eram claras tinha muita gente morando aqui. Disso me recordo bem.

Então veio aquele dia. Cheguei do eito e estranhei a porta aberta, tudo escuro lá dentro.

Saí procurando ela, mas ela não estava em lugar nenhum. Me disseram que tinha ido embora de manhãzinha, carregando a mala. Enveredou pela estradinha e desapareceu sem falar com ninguém.

Duvidei, fui pra casa e encontrei o guarda-roupa vazio. Era verdade, ela tinha fugido. O motivo, levou junto com ela.

Vim aqui e sentei na soleira, esperando ela voltar.

As pessoas chegavam e me diziam pra entrar pra dentro, que estava de noite, fazia frio e eu ia perder a pouca saúde que tinha. Me traziam comida, sentavam do meu lado e me obrigavam a comer pelo menos um pouco. Até cobertor arrumavam pra me cobrir, porque entrar eu não entrava.

Aí fiquei doente. Eles me pegaram e me puseram na cama.

Esqueci o que aconteceu. Só sei que voltei pra cá e ninguém tornou a falar comigo. Passavam reto na estrada sem virar a cabeça nesta direção.

Não fiz conta, prefiro estar sozinho. Acostumei.

Nunca mais senti nem fome, nem frio, nem sede.

Sumiu o arvoredo dos morros, o riacho secou e todo o povo foi pra longe.

Só restou eu aqui, sem outra labuta além de olhar o sol nascer e o sol morrer.

Um dia, quando ela apontar na curva logo ali depois da cerca, vai me ver neste mesmo lugar esperando.

Vai ficar bem contente, que eu sei.

E vai apertar o passo, com vontade de me abraçar.

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6 comentários em “Espera – Conto (Zulmira Carvalheiro)

  1. Welington
    27 de abril de 2021

    Nossa! Que história bonita e ao mesmo tempo triste! O homem é um fantasma, uma memória, agarrado ao seu passado, vendo o mundo seguir adiante enquanto ele é um habitante da soleira da porta. Um espectador do tempo. Excelente texto, gostei bastante!

    • Zulmira
      27 de abril de 2021

      Obrigada, Wellington! 💓

  2. Priscila Pereira
    27 de abril de 2021

    Oi, Zulmira!
    Que conto lindo! E triste 😢
    O amor faz dessas coisas mesmo… Não desiste nunca, nem depois da morte. Muito bom!
    Parabéns!
    😘

    • Zulmira
      27 de abril de 2021

      Muito gentil, Priscila.
      Obrigada! 🙂

  3. Elisabeth Lorena
    27 de abril de 2021

    Um conto de tristeza tão profunda.
    Te amarei além da vida levado muito a sério.
    Parabéns pela estreia.

    • Zulmira
      27 de abril de 2021

      Comentário muito gentil. 💕
      Fico feliz que tenha gostado.

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Publicado às 27 de abril de 2021 por em Contos Off-Desafio e marcado .
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