No centro da cela escura, a velha seminua permanecia caída sobre os joelhos. A luz da lamparina iluminando o perfil de seu rosto macabro. O imenso nariz de rapina pendendo do amontoado de rejuntes e fissuras que ornavam seu semblante sinistro. O olho esquerdo esbranquiçado completamente aberto, tal qual uma pérola bem polida em uma caixinha de joias carcomida. Finalmente havia chegado sua hora.
Irrompendo o silêncio sepulcral, algumas notas desafinadas podiam ser ouvidas do lado de fora. Uma sorte de canto, grave e aterrorizante. Lá dentro, em uma espécie de transe, as duas mãos cruzadas sobre o peito continuavam segurando com força o objeto de couro. Enrolado entre os dedos nodosos jazia o livro secular que carregava todos os ritos. As palavras que davam toda a força que necessitava em sua jornada. As linhas que transbordavam pelas páginas e alcançavam sua mente perturbada. As frases repetidas à exaustão em uma espécie de mantra terrível.
Naquele negror reconfortante, todas as sílabas eram pronunciadas com ódio, despertando aos poucos as partes mais sombrias do seu ser. A mulher ajoelhada trincava os dentes, enquanto pensava naqueles que haviam zombado de sua história. As idiotas que sempre duvidaram de seu poder e escarneceram de sua aparência.
“Sanguis”, ela disse contraindo a enorme mandíbula.
Sempre fora uma pessoa estranha, desde sua longínqua infância. Não conhecera seus pais, nem fazia ideia em qual curral havia nascido. Abandonada e sozinha vagou pelo submundo absorvendo toda a maldade que conseguia acumular. Já na sua juventude, descobriu sua posição nesse mundo cruel. Não tinha dúvidas que seria protagonista – papel de destaque – para o bem ou para o mal.
“Carnis”, ela falou, enquanto mordia os lábios secos e rachados.
Recolhida da sarjeta citadina, foi treinada, adestrada e testada com constância. No meio de todos os cordeiros, tornou-se a ovelha negra destacada. Obviamente, sofreu inúmeros abusos, incontáveis deboches e algumas centenas de cusparadas. Porém, com muita paciência e incansável afinco, prosperou dentro do grupo. Entendeu melhor do que ninguém como as convenções funcionavam, as cerimônias incomuns e os regramentos insólitos. Não questionava e não hesitava em abaixar a cabeça. Ascendeu com absurda rapidez, gerando extremo desconforto e algumas tentativas de sabotagem de suas colegas. Contudo, não se esqueceu de nada que vivera. A sede de vingança em nenhum momento abandonou sua mente obstinada.
“Corpus”, a mulher gritou, no momento exato em que amassava uma aranha negra e corajosa que tentava escalar a parede recoberta por bolor e umidade.
Sentiu o inconfundível cheiro da fúria das chamas entrar pela janela gradeada no alto de sua cela. Cada pequeno pedaço de seu corpo vibrando como um diapasão golpeado por um ferreiro brutal. O sabor da revanche alcançando sua boca pútrida e repousando em sua língua porosa. A felicidade hedionda tilintando em cada célula maldita de seu corpo marcado. Finalmente daria para o povo o espetáculo que eles tanto queriam.
“Mors”, bradou num suspiro prolongado de excitação.
A senhora de nariz adunco levantou-se calmamente, colocou suas vestes negras e grossas. Ajeitou uma espécie de capuz sobre a cabeça quase calva e olhou para imagem que estava a sua frente. Estreitou os olhos com perenidade até fechá-los por completo. Encostou sua mão recoberta por veias e lentigos no ídolo que sangrava, e balbuciou algumas palavras incompreensíveis. Algumas batidas roubaram sua concentração. O baque oco e desritmado que aprendera a conhecer.
Ela olhou para o rosto que aparecia na portinhola de sua cela e encarou furiosa quem a espreitava.
– A fogueira já está pronta! – exclamou a figura de dentro do pequeno quadrado.
– Ótimo – a velha anuiu, colocando o livro embaixo do braço.
– O que vamos fazer com elas?
– Não consegue adivinhar?
– Nós não podemos, conhecemos essas mulheres a vida toda. São nossas…
– Você também está contestando minha autoridade? – ela vociferou na direção da irmã.
– De modo algum. Desculpe-me…
A Madre Superiora agarrou a pequena lamparina que ficava ao lado de sua modesta cama e sorriu diante do fogo tremeluzente. Beijou demoradamente o crucifixo, que carregava no pescoço infestado de bócios. Uma saliva grossa e fétida escorreu do canto de sua boca quando sua imaginação criou os gritos de agonia das irmãs. Enfim, vingança, pensou quando trancou a porta de seu modesto aposento.
Grato pelos comentários! Esse retorno sincero vale cada minuto de espera.
Um conto com um ponto de vista diferente. O uso do poder para exercer a vingança mascarada . Enfim, bacana.
Li de um fôlego só. É um bom conto, mas a forma com que optou pela narrativa não me cativou. Senti certa asperidade que me impediram de sentir o conto. Mas no quesito corpo, seu conto é muito bom, pela narrativa faltou alma.
Gostei da estética do conto, com o uso das palavras em itálico, porém no geral ele ficou um pouco confuso. Poderia ter sido mais claro.
Parabéns pelo texto, eu não ia querer encontrar esta bruxa nunca na minha vida rs
Muito bom. Até o momento só li textos muito bem escritos nesse desafio, mas essa foi a primeira história de que realmente gostei. Conto curto, simples e com um final interessante. Parabéns!
Funcionou comigo. Claro, dá para perceber que o autor prepara (bem) o terreno, criando uma atmosfera carregada, para, no fim, surpreender o leitor. No entanto, penso que um conto deve ser mais do que essa “pegadinha”. Sim, o limite de palavras é um empecilho, mas aqui o que temos não é uma história e isso me frustra um pouco. É, por assim dizer, um recorte. Um bom recorte, é verdade, mas nada mais que isso. Pela habilidade que o autor demonstra na escrita, creio que poderia ter ido mais longe, ousado mais.
Hmm… Não gostei. Está bem escrito, mas achei muito parado. Faltou também, além de movimento/ação, talvez um pouco de inspiração; sei lá… O que quero dizer é que o autor pareceu-me capaz de mais… A personagem ficou vazia, sem a dramaticidade ou força pretendida pelo autor e (muito) esperada pelo leitor. Nem ela (personagem), nem a história conseguiram me convencer e/ou prender. Quem sabe na próxima? 😉
Boa sorte!
Paz e Bem!
Surpreendente. Gostei!
Gostei da inversão de papeis, da maneira violenta e forte como foi escrito e o final também está legal. Certas imagens chegam a dar nojo e os personagens misturam-se ao ambiente criado de forma magistral. Dos que li até agora, o melhor. Parabéns.
Um perspectiva muito interessante, de fato, gostei da revelação final, ótimo texto. Como único pecado, talvez, uma adjetivação excessiva em certos momentos…
Muito bom conto! O autor conduziu muito bem a trama e conseguiu me “enganar” até o final. Parabéns!
Final surpreendente! Gostei muito da narração e do desfecho. Reli o texto para encontrar pistas de que era um convento e uma freira, encontrei possibilidades. Descrições excelentes. A figura da freira foi uma boa sacada. Parabéns!!!
Deu pra sentir facilmente a atmosfera pesada do conto, e esse é seu mérito. A raiva da protagonista foi palpável e o desenrolar, apesar de abrupto, bem interessante.
Parabéns.
Legal, o desfecho e a escolha precisa de palavras.
Tadinha das irmãs!! rs’ Eu esperava que algo assim aparecesse por aqui. Misturar bruxas/ religião é algo muito interessante. Gostei do conto e principalmente das descrições: as veias, as vestes negras e pesadas, o nariz adunco.
Boa sorte!!
Perfeito. Sério, eu li mais de uma vez. Na primeira fiquei meio entediada até a surpresa do final, depois reli e peguei as nunces que faltaram da primeira, foi quando fui fisgada. Essas Madres/Freiras sempre me assustaram, são todas bruxas. rs Parabéns.
De certo modo, a história me pareceu inacabada. Tem um ritmo que pode ir além, mas…
Gostei bastante. adoro freiras bruxas! 🙂
Muito bom! Surpreendente, eu devo dizer. Tenho que confessar: achei que seria apenas mais um conto da bruxa nas vésperas da fogueira, mas mostrou-se bem melhor que isso. Bem escrito, de modo geral. Talvez, uma ou duas questões de ortografia, mas nada que ofusque o belo jogo que fez na narração – e o belo conjunto da obra. Parabéns!
Esse conto tem uma variedade de construções fortes, que dão uma boa gordura a este personagem, tornando-o simplesmente abominável. De tiro curto, com certeza deve ter menos de 2000 palavras, o texto consegue aproximar-se do que realmente deve entregar e, se o tema do concurso é Bruxas, não faltam as secreções, o belo nariz pontiagudo e as palavras de maldição. Fosse eu comparar o conto com alguma obra parecida, citaria os filmes de terror de Sam Raimi, que misturam substâncias viscosas em personagens sempre meio humanos, meio místicos, para espalhar o horror num cenário que quase sempre nunca se expande, como a cabana de Evil Dead ou a cidadezinha de Arraste-me para o Inferno, compactando bem o medo e a ojeriza – algo parecido ocorre aqui. Achei bom, mas fiquei sentindo falta de um final mais elaborado, que seguisse à risca esse desenvolvimento tão impactante, ou um final mais escroto, mesmo.
Gosto de contos com surpresas. Achei o texto bem escrito e com descrições muito vívidas. O final ficou um tanto apressado, contudo, deixando algumas perguntas sem respostas.
No todo, um conto muito bom!
Acho que o conto ficou curto demais, as motivações da protagonista não ficaram tão claras e, no final, não entendi o porquê de ela estar queimando outras bruxas, era isso que ela estava fazendo certo? Com algumas linhas de esclarecimento acho que o conto ficaria muito bom.
Abraços.
Caralho! Esse conto estará entre os dez, certamente!
A linguagem é primorosa, descrições e narrativas perfeitas. E esse soco no estômago no último parágrafo.
Fiquei em dúvida se a Madre era uma bruxa (infiltrada/disfarçada?) e queimaria suas semelhantes em função de sua posição na Igreja, ou se era uma Madre normal que queimaria as irmãs acusadas de bruxaria. Ou mesmo se era uma bruxa infiltrada como Madre e queimaria as irmãs que a desprezaram, como vingança… A questão é que descreveu-se uma bruxa da maneira mais tradicional com esmero e maestria, mesmo enquanto fala de seu treinamento, e essa revela-se a “madre velha”. Quantas semelhanças, não?
Meus mais sinceros parabéns e boa sorte.
Mais ou menos!
======== ANÁLISE TÉCNICA
Meia dúzia de adjetivos só no primeiro parágrafo e a coisa continua no mesmo ritmo até o final.
Não sou radical quanto ao uso de adjetivos, mas depois de ler as 700 palavras desse texto, fiquei com a impressão que metade delas foram adjetivos. Não foi tanto, claro, mas foi muito. MUITO!
Isso definitivamente travou a leitura.
– protagonista – papel de destaque –
>>> Desnecessário explicar o significado dessa palavra
– diapasão golpeado por um ferreiro brutal
Foi até uma boa figura, mas depois de tantos adjetivos, esse “brutal” já chegou saturado.
– lentigos
>>> ????
– livro secular
>>> apesar de não ser erro, “secular” não é uma boa palavra para adjetivar a bíblia (era a bíblia, certo?), pois uma das suas interpretações é “não religioso”
======== ANÁLISE DA TRAMA
Não há muito sendo contado aqui. Apenas uma sucessão de descrições excessivamente adjetivadas que parecem enrolar o leitor até a surpresa final, que nem é tão surpreendente assim (é surpresa, mas não causa muito impacto).
======== SUGESTÕES
Cortar 90% desses adjetivos e oferecer descrições melhores no lugar deles, para que o leitor formule as imagens na cabeça.
======== AVALIAÇÃO
Técnica: **
Trama: **
Impacto: *
Caramba! Me controlando aqui para soltar uma exclamação mais… Heheh!
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Um belo conto, mesmo, mesmo. Ah! Como gosto desses sustos, como gosto quando brincam com a minha cabeça me centrando em uma coisa para no fim chacoalhar e mostrar que é outra. Parabéns! Funcionou direitinho comigo, eu não saquei nada. Tchan-tchan-tchan-tchan! Eram freiras… Oh! Valeu demais! Tomara que fique na cabeceira dos mais votados. 😉
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Abraço!
O autor conseguiu me surpreender com o final. Fiquei o tempo todo pensando em uma coisa, e no fim era outra. Este conto serve como exemplo se algum dia perguntarem por que os comentários agora são moderados até o fim do concurso. Sem a moderação de comentários haveria algum tolo para entregar spoiler e estragar a experiência da leitura dos outros.
Parabéns ao autor. Estará entre os meus votos.
Um bom terror, embora eu ache que faltou algo. Talvez uma coisa que me fizesse ficar mais ligado na história, como um acontecimento ou uma dinâmica maior. Entendo que é o estilo do autor, e espero que outros possam apreciar mais do que eu.
Ainda assim, parabéns e boa sorte!
Ui! Muito boa a caracterização da protagonista confundindo o leitor que, a princípio, imagina ser a descrição de uma bruxa. Só no final, a figura da Madre Superiora revela-se como detentora do poder e rancor, vingança e determinação. A cela não era de uma prisão, mas o aposento da religiosa.
Interessante, bem construída toda a narrativa.
Parabéns! Boa sorte.
Um conto denso e bem ritmado, que consegue em certa medida transmitir uma atmosfera lúgubre. Para isso, as palavras me latim “sanguis”, “carnis”, “corpus” e “mors” funcionam como uma espécie de “batida de bumbo”, causando dramaticidade e tensão.
Entretanto, o(a) autor(a) se deixa levar pelo clichê, ao representar a bruxa, situação que imagino ocorrerá muito aqui (este é o segundo texto que comento), não havendo sinal de originalidade: é velha, feia, nariz de rapina, olho esbranquiçado pela catarata. Ou seja, a representação tradicional, consagrada pelos filmes e contos infantis, reproduzindo a ideia da mulher velha e feia (uma espécie de “feminino imperfeito”) enquanto portadora de malignidade. Isso me parece exaurido, do modo como foi usado aqui.
Mas há alguma originalidade quanto à bruxa, quando o conto a situa como madre superiora de um convento, demonstrando o lobo existente na pele de cordeiro ou, numa leitura mais ampla, fazendo com que nos perguntemos até que ponto as instituições religiosas são “santas”.
O que gostei:
Narrativa acurada, boa escolha das palavras e o fnal impactante. Apesar de curto, a história flui muito bem e fechou com algumas “pontas soltas”, o que não abona o texto.
O que não gostei:
A imagem. Não sei se foi erro do autor ou no momento da postagem. As falas ficaram um pouco confusas já no final. É preciso cuidado para não se perder.
O que precisa ser melhorado:
Nada. O texto possui todos os elementos que um conto precisa. Protagonista forte, suspense, ação e final impactante. Parabéns.