“Ó, Você flui dos pés de Hari Ó, Ganga!
Você é mais branca que a neve,que o diamante,
que a lua. Leve para longe meu fardo de atos nocivos.
Por compaixão leve-me através do oceano da existência.”
Poema hindu
Era o dia
Tudo o que ele podia enxergar era aquele manto leitoso, espesso, gélido cobrindo toda a paisagem, mas sentia que tinha chegado. A névoa úmida dançava ao redor de seu corpo, mas apesar disso, continuava, sabia que tinha que ser por ali. Andava e andava, cantarolando uma antiga canção country, o som trêmulo escapando por entre os dentes cerrados, quando, subitamente, atravessando as brumas, um velho surgiu,bem na sua frente, uma figura de cabelos longos e grisalhos, barba comprida, rosto pintado de cúrcuma, olhar fixo e inquisidor. Da mesma forma inesperada, o velho perguntou :
– Dentro de você, há dois cães, um bom e um ruim. Eles lutam.Qual dos dois enfim, vencerá ?
Perplexo, não sabia o que responder. Hesitou.
O olhar incisivo do velho exigia uma resposta, ia dizer “não sei” “ juro que não sei” quando sentiu aquelas mãos ossudas se fechando em sua garganta.Ele agarrou as mãos do velho tentando se livrar, tentava pensar também, mas as palavras se misturavam em sua mente..Há dois cães bons ? Quem vencerá ? Um é ruim ? Dentro de você enfim há cães…Dois?… Um? ..Qual? Qual?
Sentia a agonia crescente de falta de ar e a visão se turvando até que finalmente, suas palavras chegaram: Aquele a quem eu alimentar melhor!
Só então, as mãos afrouxaram e no lugar delas, surgiram garras. E no lugar do velho, uma águia levantou voo cortando a neblina por onde passava até desaparecer no horizonte, onde já brilhava a luz avermelhada do sol nascente.
E lá estava o Ganges. Agora podia enxergar tudo ao redor. As piras, os devotos de roupas multicoloridas que se banhavam, que oravam, oferecendo velas acesas, outros que lançavam nele, as cinzas e os ossos de seus entes queridos, cremados nas escadarias.
Fascinado, observou um homem de cabeça raspada, acendendo uma imensa fogueira onde seria cremado seu pai, cujo corpo acabava de ser lavado na água escura. Somente os outros homens da família podiam participar da cerimônia, mas ele se colocou a uma certa distância. Nem o filho do morto, nem os parentes deram por sua presença, então ele ficou olhando as chamas dominarem, aos poucos, a pira e de repente, pela intensidade do calor, a cabeça do morto explodir. Diziam que era o momento da libertação do espírito.
Prosseguiu caminhando, mais a frente, uma vaca se aproximou da margem do rio para beber água, sem dar atenção a uma carcaça indefinida que boiava nas proximidades.
O cadáver de um velho iogue flutuava próximo, atraindo o interesse de alguns cães. Mulheres lavavam roupa, alguns metros depois, cantarolando velhos mantras. Do outro lado, alguns homens peneiravam as cinzas, na tentativa de achar alguma jóia ou objeto de valor que tivesse sido esquecido pela família do morto.
O cheiro de sândalo da madeira queimada nas piras da casta alta se misturava ao fedor de água podre, esgoto e corpos em decomposição, causando-lhe uma forte náusea, mas não havia como negar, era chegado o momento,era a sua vez. Caminhou na direção dele. Subitamente, ouviu atrás de si, um farfalhar de saias.Não ia olhar para trás, mas um braço coberto de pulseiras segurou seu pulso.Seu olhar seguiu curioso aquele braço até encontrar o rosto da dona. Antes que pudesse protestar, ela gritou :
– Você tem medo dos mortos ?
Essa pergunta lhe despertou um cinismo que parecia tão seu e tão repulsivo que ele temia lhe dar voz. Cerrou os lábios para não responder, mas a mão da mulher esmagava-lhe o pulso.
Ele devia responder agora, como não sabia o que era certo dizer, olhou curioso para o rosto dela, era uma mulher bonita e seus traços lhe lembravam uma época, um lugar , mas não sabia explicar o porquê.
De repente, ela lhe abriu um enorme sorriso, como que compreendendo sua lembrança, um sorriso que parecia cálido até que os lábios abertos rasgaram a carne, expondo uma boca cheia de parasitas que lhe devoravam, restando em poucos segundos, apenas o buraco fundo dos olhos e uma dentadura de caveira.
No entanto, os ossos daquela mão continuavam a lhe apertar o braço, com uma força férrea provocando uma dor aguda, até que a resposta lhe ocorreu:
– Morte é ilusão…a vida como acreditamos também não existe…tudo não passa de maya.
E assim que terminou de dizer, sentiu o braço livre, a mulher tinha desaparecido.
Caminhou, finalmente, até as margens do rio.Antes de colocar o primeiro pé na água, olhou para cima, contemplando o azul puro do céu daquele momento, como se buscasse uma confirmação.Sentiu uma certeza e uma fé inabaláveis, algo que não se lembrava de ter sentido antes.
Nunca.
Mergulhou.
Lembranças explodiram em sua mente, como um filme numa velocidade vertiginosa.
Sapo coaxando na pedra tigre devorando a presa sacerdote rezando cortesã balançando o leque mosquito picando braço marinheiro içando velas vaca mastigando capim mulher amamentando pássaro levantando voo guerreiro levantando a espada dama levantando o vestido cobra rastejando padre dando hóstia galinha botando ovo velha penteando o cabelo menino morrendo de fome pássaro bicando fruta carrasco decepando cabeça professora escrevendo na lousa barata voando rapaz tocando piano cachorro roendo osso homem atingindo orgasmo moça quebrando a perna aranha fazendo teia menina bordando assassino matando
E tudo ficou escuro. Levantou a cabeça. A lua já brilhava no céu. Contemplou o brilho atemporal das estrelas, enquanto boiava, em paz. O rio estava vazio, imerso em silêncio.
De repente, de algum lugar distante, podia-se ouvir o som suave de sinos.
Não, não eram sinos. O som não era suave também. Na verdade,era uma campainha estridente que anunciava o início do dia no presídio.
Acordou sobressaltado e sentou-se na cama. Já podia ouvir o barulho das chaves do guarda tilintando pelo corredor. Ele vinha buscá-lo.
Hoje era o dia da sua execução.
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Este conto foi escrito por Martha Angelo. A publicação neste blog foi devidamente autorizada pela autora.
Escrita limpa, altamente sinestésica, que nos arremessa a um mundo místico que nos belisca e nos devolve ao real. Uma miniviagem dos sentidos àquilo que não se espera…