EntreContos

Detox Literário.

M: Os Últimos Dias da Europa – Antonio Scurati – Resenha (Pedro Paulo)

Acima, os três livros da série “M”, o terceiro em evidência. Na base, uma biografia do ditador italiano, inserida por mera estética temática desse registro. Um capricho deste autor.

Atribuo o meu primeiro interesse por História ao potencial ficcional que o conhecimento do mundo supostamente me proporcionaria. Alguns anos atrás, encontrei o que até hoje vejo como um dos maiores exemplos de ficcionalização do fato histórico na série “M”, do autor italiano Antonio Scurati. A série tem como o seu protagonista Benito Mussolini, infame líder totalitário da primeira metade do século XX, uma das principais personagens dos bastidores da Segunda Guerra Mundial, cujo protagonismo geopolítico foi se perdendo com a amarga decadência à posição de país vassalo. No terceiro dos cinco livros, lançado na Itália em 2023 e no Brasil pela editora Intrínseca somente neste ano, o foco da trama é a relutante e catastrófica aliança entre Alemanha e Itália à beira do precipício de um novo conflito global, situada entre os anos de 1938 e 1940.

Adianto que, embora aguarde ansiosamente pelo lançamento dos outros dois livros da série – cujo quinto livro, talvez propositadamente, foi lançado vinte dias antes de se completarem oitenta anos da execução sumária de Mussolini e sua amante predileta, Clara Pettaci – o melhor dos três livros lançados no Brasil continua sendo o primeiro. Como se trata de uma sequência escrita por um autor experiente e premiado, é evidente que escolhas estilísticas e estruturais se mantém consistentes entre os três livros e é recobrando o que é continuado e apontando o que se perde que desejo demarcar minhas impressões deste terceiro volume, que de forma alguma foi uma leitura ruim, mas julgo inferior aos dois precedentes, sobretudo ao primeiro.

Uma das características mais fascinantes da obra é a contínua inclusão de documentos históricos entre os capítulos os quais, em grande maioria, são sempre datados e apontam o personagem pela perspectiva de quem acompanharemos naquele trecho da trama. Uma diferença entre os volumes já é notada nesse aspecto. No primeiro livro, “M: O Filho do Século”, alguns capítulos seguem contínuos antes da intersecção de fontes históricas, geralmente excertos de diários, jornais e/ou cartas de italianos ou de estrangeiros do período, sempre condizente com o desenrolar do cenário político dentro e fora da Itália. Afinal, trata-se mais de um thriller político do que uma obra biográfica, afastando-se da historiografia para se aproximar do romance, embora se utilize de práticas do historiador. Em seu terceiro volume, Scurati inseriu um excerto de documento histórico entre cada capítulo, talvez confiante demais em sua pesquisa. Além disso, embora faça algum tempo da minha leitura do primeiro livro, sinto que no terceiro o autor se utilizou mais diretamente da citação direta, transcrevendo para os capítulos as palavras com as quais escreveram ou se pronunciaram as figuras históricas que retrata em sua obra.

Nesse sentido, acredito que houve uma perda do aspecto literário do primeiro volume, com Scurati tornando-se mais didático nessa terceira sequência em constantemente se utilizar das palavras que as personagens históricas escreveram ou falaram, ao invés de se utilizar de sua própria literatura, no que é excelente. Assim, aproxima-se mais da historiografia do que da literatura, aspecto que notei já na leitura do segundo livro, “M: O Filho da Providência”. Outra perda em relação ao primeiro é o do número de personagens e da própria condução do enredo. “O Filho do Século” é o maior entre os cinco volumes da série e, em relação aos dois subsequentes, um dos motivos evidentes é ter um número maior de personagens em uma trama mais densa e de proporções mais reduzidas, voltada sobretudo ao cenário político da própria Itália, enquanto os dois livros seguintes extrapolam o país peninsular. Faz sentido, já que cada volume se passa em um recorte temporal de alguns anos e o primeiro abrange os cinco anos entre 1919 — criação dos Fasci di Combattimento — e 1924 – consolidação de Mussolini como Primeiro-Ministro do Reino da Itália.

No primeiro livro é apresentado um enredado de personagens de diferentes matizes, desde os veteranos da Grande Guerra que montam as esquadras fascistas a líderes comunistas e deputados liberais. Esse cenário contribui para uma trama rica em perspectivas e nuances que fazem do cenário político algo mais emocionante de se acompanhar. Em mais de um momento, parecia evidente o malogro do projeto fascista, desorientado e oportunista por natureza. Além disso, essa variedade instigava ao envolvimento com os diversos personagens e seus destinos na obra. Já nesse terceiro, trata-se de um número menor de personagens proeminentes, que, de dois modos, orientam duas tramas paralelas: a relutância e o fracasso dos italianos em negociar com a Alemanha nazista — representada por Benito Mussolini e seu Ministro das Relações Exteriores e genro, Galeazzo Ciano — e o cerco cada vez mais apertado em torno dos judeus da Itália – visto nas perspectivas de Margherita Sarfatti, antiga amante do Duce, e Renzo Ravenna, eminente burocrata do fascismo que perde a sua posição pela ascendência judaica.

Assim, as quase quatrocentas páginas do livro, pouco matizadas pelos excertos documentais que nos permitem ver outros personagens, tornam-se repetitivas e às vezes um pouco enfadonhas. O que Galeazzo Ciano fez além de delirar e fracassar durante o livro todo? Mesmo quando a perspectiva é a de Clara Pettaci, amante de preferência de Mussolini, seu ponto de vista não é tanto o de uma personagem em seu próprio drama, mas uma forma de dar vistas à humanidade e vulnerabilidade do ditador em seus momentos de intimidade. À moda historiográfica. Feitas essas críticas, a obra ainda é um capítulo relevante e digno de seu próprio recorte, com seu enfoque nas relações internacionais e nas sombrias consequências que se prenunciam no desfecho lúgubre da declaração de guerra da Itália.

Saindo das páginas do livro e olhando para o mundo lá fora, a série se torna ainda mais apreciável quando se constata a ascensão da extrema direita na geopolítica internacional, como é o fato na própria Itália. A obra de Scurati é decididamente antifascista sem se tornar panfletária, abordando o fascismo e seus principais asseclas pelo seu inegável sucesso na primeira metade do século passado, mas, também, por sua indissociável brutalidade e pelas inegáveis hipocrisias e oportunismos do partido. Ler esses livros com atenção é ver um espelho do mundo contemporâneo que, passados cem anos desde os eventos que iniciam a série, não se desvencilha por completo daquele contexto.

Estou disposto a concordar e até a defender que a literatura não tem o dever com o universo político. Entretanto, não acho que possa escapar dos domínios da política. E, sobretudo, concebo que é totalmente falsa a abordagem de que a literatura e a arte como um todo não possam ser políticas. Enfim, concluo com a minha ansiedade pelo lançamento dos volumes faltantes aqui no Brasil. É verdade que Scurati vai tão longe quanto nos fazer simpatizar com Benito Mussolini. Mas de um modo que se ame odiá-lo. E, por isso mesmo, aguardo tão ansiosamente pelo quinto livro. Conheço o final da história. É de cabeça para baixo.

10 comentários em “M: Os Últimos Dias da Europa – Antonio Scurati – Resenha (Pedro Paulo)

  1. Gustavo Araujo
    8 de outubro de 2025
    Avatar de Gustavo Araujo

    Ótima resenha. Por um desses acasos da vida, ela coincide com a série de nome igual que está no streaming do Mubi, que tenho acompanhado com bastante interesse.

    Mussolini não é tão atrativo, em termos literários ou cinematográficos, quanto Hitler ou mesmo Hiroito, se é para ficarmos com líderes do Eixo na II GM. Isso porque, inundados que somos pela cultura estadunidense, acabamos focados no front ocidental (França e Alemanha) ou do Pacífico (Japão), em detrimento dos front oriental (Rússia), Italiano ou norte-africano.

    É uma lástima pq deveríamos estar familiarizados com as origens do fascismo, a ponto de identificá-lo em nossos tempos. Por ignorar a violência e a lavagem cerebral do trinômio Deus-Pátria-Família, terminamos por normalizar ou até mesmo a cultuar qualquer imbecil que o repita em nossos dias.

    Por isso é bem vinda a pentalogia, tanto em termos literários, como em termos televisivos, para nos lembrar que o germe do ódio permanece entre nós — Make Italy Great Again, diz o Duce a certa altura, para não deixar dúvidas.

    Quanto à falta de fôlego das obras sucessivas de Scurati, que você, caro Pedro, relata em sua resenha, apontando que nenhum dos livros mais recentes possui a força do primeiro, creio que se trata de uma espécie de maldição em trabalhos desse tipo.

    Percebi algo assim na série “Ramsés”, de Cristian Jaq, do fim dos anos 1990, e em Alexandros, de Valerio Manfredi, mais ou menos da mesma época. Começam de um jeito irresistível, mas patinam cada vez mais à medida que novos livros chegam.

    Imagino que tenha sido uma estratégia para fidelizar os leitores, obrigando-nos a comprar a série toda, mas creio que o resultado não foi o melhor. A qualidade se perde com informações e fatos pouco relevantes. Não li a série que você resenha agora, mas, talvez, ela esteja repetindo esse padrão. O problema é que desistir não é uma opção kk

    • Pedro Paulo
      15 de outubro de 2025
      Avatar de Pedro Paulo

      Oi, Gustavo!

      Quando entrei no curso de História, reconheci logo um ou outro colega que carregava o fascínio pela Segunda Guerra e por seus grandes nomes. O Führer geralmente capta a maior atenção, sobretudo de quem se interessa pelo tema sem necessariamente atuar como historiador. Ainda assim, eu mesmo fiquei bastante surpreso quando descobri esta série há alguns anos e a forma e o conteúdo me cativaram. É um dos livros que, se descubro o lançamento de mais um volume, compro na hora!

      Também estou acompanhando a série. Por sinal, assisti ao penúltimo episódio lançado hoje. É estupenda! Adapta o primeiro livro, é uma pena que não seguirá pelos outros, embora se imagine o porquê. Produção longa, cara e demandante de todos os envolvidos. Mas uma minissérie para os tempos atuais. Ainda assim, repare: se você pesquisa cenas dela no youtube, encontrará cortes de cenas da violência fascista publicada em canais que fazem apologia a essas cenas como exemplos a serem seguidos… mesmo quando extraídos de uma minissérie antifascista. A distorção suplanta a interpretação, hoje ou cem anos atrás.

      E não conheço nenhum dos exemplos que deu, mas é verdade, deve ser bastante difícil manter a qualidade progressiva em séries desse tipo. Já é difícil escrever um conto!

      Agradeço pela leitura da resenha, chefe.

  2. Kelly Hatanaka
    30 de setembro de 2025
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Ótima resenha! Gosto de obras que misturam doses de ficção em eventos históricos e gosto muito de thrillers. Política, bem, not so much. De qualquer forma, deu vontade de ler.

    • Pedro Paulo
      15 de outubro de 2025
      Avatar de Pedro Paulo

      Oi, Kelly! Pois acho que a política desta série é bastante visceral e por isso mesmo, bem humana, talvez demonstrada em seu pior lado. Acho que sai um pouco da parte mais chata do politiquês, com certeza dá um drama eletrizante.

  3. Thiago Amaral
    25 de setembro de 2025
    Avatar de Thiago Amaral

    Interessante, não sabia da série, nem a de livros, nem a de tv. Achei a ideia legal. Se animar algum dia me aprofundar no Mussolini, é uma ótima pedida. Vivo me cocnfundindo pra entender o que afinal é o fascismo, afinal de contas.

    Fiquei também curioso pra saber se suas expectativas e as da Mariana quanto ao estudo da História foram supridas!

    • Pedro Paulo
      15 de outubro de 2025
      Avatar de Pedro Paulo

      Oi, Thiago!

      De fato, a série permite uma imersão no Mussolini pessoa e no Mussolini político, permitindo ver o entrecruzamento dos dois. Até porque, seu projeto era essencialmente personalista.

      Quanto ao que tirei de literatura da História, Thiago, posso garantir que escolhi bem nesse sentido. Mas não de forma premeditada ou mesmo por esse campo oferecer esse caminho. A ideia mais longeva e, por isso, até hoje um pouco vaga, que tive quanto ao meu futuro é que gostaria de ser escritor. Não foi bem recebido por ninguém, assim com a escolha do meu curso. A surpresa é que, apesar dessa ideia ingênua, ao estudar História eu realmente encontrei uma fonte prodigiosa de inspiração que influencia a minha escrita há alguns anos. Em contrapartida, o curso de História que fiz, uma licenciatura, mal forma professores, quanto mais escritores. Voltei ao ambiente acadêmico neste ano e continuo o achando algo rançoso. Mesmo assim, sou apaixonado por estudar essa área!

      Agora também estou curioso pela experiência da Mariana.

  4. MARIANA CAROLO
    23 de setembro de 2025
    Avatar de MARIANA CAROLO

    A minha escolha pelo caminho da história foi parecida, Pedro Paulo. Eu pensei que seria a carreira que me daria o maior leque de leituras.
    Sobre ficcionalizar fatos históricos, achei interessante e fiquei com vontade de ler. Já deu uma olhada nos livros do Labatut, em especial o Maniac? Bem bom também…

    É interessante ontem mesmo eu estava pensando em como o ator do Mussolini estava fascinante no papel. É esse o fascínio que é perigoso e nos faz pensar. Ainda bem que o final é de cabeça para baixo… Espero que assim seja de novo, se necessário for.

    • Pedro Paulo
      15 de outubro de 2025
      Avatar de Pedro Paulo

      Oi, Mariana! Tenho reconhecido algumas semelhanças na nossa abordagem da escrita! Não conhecia “Maniac” e nem seu autor, mas dei uma pesquisada e está na minha lista de leitura.

      A série é consistente na qualidade, embora eu sinta que os quatro primeiros episódios trazem uma tensão narrativa que os quatro últimos nem superam e nem alcançam. Ainda assim, uma das melhores minisséries que já vi, Wright entregou uma obra excelente e o elenco todo está de parabéns, sobretudo Marineli. Falta um episódio!

  5. Givago Domingues Thimoti
    22 de setembro de 2025
    Avatar de Givago Domingues Thimoti

    Olá, PP! Tudo bem?

    Que resenha bacana. Achei interessante a premissa desse livro. Funciona como uma daquelas séries meio documentais da Netflix, que os personagens são interpretados e dramatizados, certo? Aliando esse artifício a documentos históricos? Acho que esse artifício é também utilizado naquelas séries de True Crime, mas em menor escala.

    De qualquer forma, achei um tanto inesperado. Fiquei com algumas dúvidas: durante sua leitura das 3 obras, por algum acaso, você sentiu alguma forma de anacronismo? Ou você acha que por sabermos como a história termina, esse anacronismo estaria mais impregnado na nossa visão do que nas palavras do autor?

    PS: muito bom ver uma resenha chegando no EntreContos! Que venham mais!

    • Pedro Paulo
      15 de outubro de 2025
      Avatar de Pedro Paulo

      Oi, Givago!

      Que bom que gostou da resenha. Acho que o triunfo da obra é que em especial o seu primeiro volume não abandona o aspecto literário, mas se utiliza do tratamento de fontes históricas para se propor como uma reconstituição dos fatos na cronologia e nas relações de causa e consequência, mas sem perder de vista a organicidade e verossimilhança ao amarrar os vários personagens em seu enredo.

      E não achei anacrônica. Eu não diria que a narrativa é impessoal, pois uma ironia debochada acompanha o texto, mas há momentos em que é mais evidente que com duplo efeito, Scurati nos escreve o que poderia ser diferente justamente por demonstrar que, apesar da fraqueza do projeto fascista, a tragédia ainda durou mais de vinte anos.

      Quanto às resenhas, senti-me mais à vontade para publicar esta por me sentir incentivado pelas resenhas que você tem compartilhado. Por sinal, vou já ler a sua!

E Então? O que achou?

Informação

Publicado às 22 de setembro de 2025 por em Resenhas e marcado , , .