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Detox Literário.

A Velhinha de Florença – Clássico (Cecília Meireles)

Por que me lembraria agora daquela velhinha de Florença? Há sentimentos antigos, dentro de nós, que não perdem a sua força, que não se deixam aniquilar pelo tempo e pelos acontecimentos; estão apenas reclinados como em cadeiras invisíveis, numa obscura sala de espera. Por serem tão antigos, permitem-se ficar de olhos fechados, silenciosos e anônimos, tão inativos como se não existissem. Mas, de repente, acordam, levantam-se dos seus lugares, acendem as luzes, fazem-se tão vivos e presentes que não resistimos ao seu poder e docilmente nos submetemos as revisões da memória e a sua crítica.

Pois eu agora olhava para estes jardins úmidos de chuva, detinha-me a descobrir em que árvore cantava o pássaro, e do obscuro salão de espera levantou-se da sua cadeira invisível a velhinha de Florença. A tarde em redor de mim entristeceu, e, por mais que eu deseje ser meiga e solícita, todas as desculpas que lhe dirijo permanecem longe, imóveis, nulas, como esta nuvem escura que paira no céu turvo, sem vento que a desmanche nem chuva que a dissolva.

A velhinha de Florença não me diz nada: sou eu que tento dizer-Ihe palavras mal ajustadas, sou eu que procuro, depois de tantos anos, a expressão adequada com que possa merecer a sua benevolência. Ela parece escutar-me com muita compreensão; eu é que não me sinto contente comigo mesma, apesar da minha sinceridade e do meu desgosto.

Ninguém cuide tratar-se de uma história policial, ou de lances dramáticos, emocionantes e pungentes. A história é mesmo tão simples que não sei como há tanto tempo continua a ocupar lugar tão importante na minha vida. Mas é assim.

A velhinha tinha uma pequena loja, numa rua de Florença. Exteriormente, sua loja não era nem rica, nem elegante nem artística. Isso acontece em muitas lojas, na Europa. Mas a velhinha vendia umas blusas tão lindas e originais que mulher nenhuma poderia ficar insensível aos seus encantos. E eis que, de repente, me torno possuidora de uma delas. Começava a escurecer. A formosa Florença tornava-se uma cidade de prata. Eu desejava mais uma blusa: quem viaja está sempre pensando em alegrias que, de volta, pode dar aos amigos. Mas a loja ia fechar, a velhinha não negociava com dólares (pensar que um dia eu tive dólares!): então, separei a segunda blusa, e prometi que na manhã seguinte apareceria com as minhas liras.

No dia seguinte, havia um programa a cumprir; mas eu pensava na blusa e na velhinha. Principalmente na velhinha que, ao separá-la, fizera quase um juramento de nado a vender senão a mim. (E eu longe, e eu distante), e eu envolvida pelos acontecimentos, a manhã toda e a tarde inteira. A velhinha com a blusa dobrada à minha espera. “Os turistas são assim”, pensaria. Respondia-lhe mentalmente; respondia-lhe que nem era eu propriamente o que se chama um turista como me sentia pessoa de palavra, responsável e incapaz de faltar aos meus compromissos. Mas, de tão longe, como poderia a boa velhinha captar os meus pensamentos?

Tantos anos depois, aparece-me a velhinha de Florença, com a sua cabeça digna e séria, na sua modesta loja, onde quase tudo era pobre, mas tudo era belo, como costuma acontecer na prodigiosa Itália.

Talvez ela, com a sua experiência e a sua benevolência tenha pensado: “esqueceu-se, não pôde vir…” e a blusa tenha passado logo a outras mãos (este seria o meu desejo). Talvez tenha acreditado tanto em mim (é o que dói) que, pelo menos durante algum tempo, não a tenha vendido.

Enfim, não sei porque (me aparece agora essa velhinha de Florença, tão velhinha que talvez já tenha morrido), quando tantas coisas importantes têm acontecido no mundo, depois desse pequeno episódio. Mas esse pequeno episódio é um ponto inconsolável no meu coração. (Cada um sabe de que são feitos os seus sofrimentos.)

2 comentários em “A Velhinha de Florença – Clássico (Cecília Meireles)

  1. Thiago Amaral
    31 de janeiro de 2025
    Avatar de Thiago Amaral

    Me identifico total com esse conto.

    A gente cria um ideal de comportamento, de como devemos ser, queremos mostrar pro mundo que as coisas podem ser diferentes, que podemos ter palavra.

    Aí, um vacilozinho, uma coisa pequena, incomoda tanto… A mulher nem deve ter ligado, mas a Cecília nunca mais esqueceu… assim é

  2. Kelly Hatanaka
    27 de dezembro de 2024
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Um conto curtinho e impactante. Existem mesmo acontecimentos minúsculos que reverberam por muito tempo. Acho que cada um tem sua velhinha de Florença. Uma palavra que não foi dita, outra que não calou, um adeus pendente…

E Então? O que achou?

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Publicado às 25 de dezembro de 2024 por em Clássicos e marcado .