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Detox Literário.

Estação das Chuvas – final alternativo (Victor Viegas)

— Eu estou bem assim… obrigada — respondeu com um leve sorriso sem mostrar os dentes. Paula se sentia ligeiramente desconfortável com a situação.

— Tem certeza? Não parece que você tá com frio.

Paula balançou a cabeça, confirmando que ficaria com o casaco.

— Tudo bem. Mas, tu ainda não respondeu a minha pergunta. Você realmente sabe como é ser casada, Paula?

— Sim… quer dizer, não… não sei… nunca namorei. É tudo novo para mim, sabe?

— Interessante.

— O que é interessante?

— Quer dizer que nunca sentiu o calor dos corpos se abraçando, ou aquele clichê que sempre falam de sentir as borboletas no estômago, nunca foi correspondida… por ninguém? — Diana fez uma pequena pausa, como se quisesse escolher as próximas palavras. — Não consigo acreditar. É um tanto difícil encontrar uma moça decente assim, ainda mais alguém como você.

Diana deveria saber de alguma coisa. Aquela conversa estava indo para um rumo muito estranho e Paula não sabia se era real ou coisa de sua imaginação. Estava incomodada. Ela sabia de suas saídas com Moacir? Precisava tomar cuidado para não se entregar tão fácilmente, ainda tinha espaço para aquilo ser uma ilusão, uma ansiedade que não conseguia controlar. Paula já não aguentava mais fixar o olhar em Diana, se sentia culpada e esta culpa estava a consumindo por dentro.

Seu pescoço brilhava. Uma gota de suor passou a percorrer a testa, passando rapidamente pelas bochechas carnudas e desacelerando na maxila, onde caía diretamente em suas trêmulas pernas. Queria que Moacir aparecesse logo para salvá-la, talvez um príncipe para eliminar a bruxa má, mas os contos de fadas não funcionam dessa forma. Não são a realidade. Realidade a qual se tornava cada vez mais absurda. Cada vez mais… sufocante.

— Ah… como assim… alguém como eu? Não entendi.

— Não entendeu? Ah, que graça! Calma, eu vou te explicar direitinho.

A intensidade do último corte só mostrava a falta de paciência que consumia Diana por dentro. Ela, então, olhou fixamente para a feição inquieta de Paula e, segurando firme no cabo da faca, deu poucos passos, aproximando-se cada vez mais da visitante. A ponta, recém-afiada, mirava no rosto de quem Diana colocava em seus piores pensamentos. Aguardava por muito tempo este momento.

— Sabe, tem vezes que a vida parece pregar peças na gente. São algumas dessas coincidências que, sinceramente, fica quase impossível de explicar, você me entende? Hoje, por exemplo, eu estava em um bom dia, estava um céu ensolarado em um típico dia de verão. Até que…

Paula tentou se afastar, mas Diana foi mais incisiva, não deixando brecha para que ela escapasse. Conseguia sentir o encontrar da respiração quente preencher o pouco espaço entre elas.

— …Até que o clima, simplesmente, fechou — aos poucos a simpatia de antes dava lugar a um lado diferente de Diana, um lado que nem ela sabia que poderia acessar. — O clima fechou, Paula. E você sabe o que acontece quando começa a chover? Quando começa a chover os mais protegidos se safam, vão para lugares altos e saem ilesos no conforto de suas vidas. Mas aqueles que realmente precisam de proteção, os, digamos, pobres coitados, nem sempre têm a mesma sorte. Talvez o clima também tenha fechado para ti, entende? Às vezes o destino não é justo, você sabe muito bem o que estou falando.

— Diana, o que você está fazendo? Diana, por favor. Eu sou sua amiga, lembra? A Paula, a que passa os slides do Moacir. Tira essa faca da minha frente, você não tá bem. Diana, por favor. Me escuta. Me fala cadê o Moacir.

— Cadê o Moacir? Como assim tu não sabe onde está o Moacir? Não era você que se encontrava escondido com ele, piranha? Veio aqui pra que? Jogar tuas asinhas para cima do meu marido, sua desgraçada — a voz, que antes estava em um tom mais calmo e acolhedor, passava a ter maior intensidade. Seu rosto estava fechado em uma fúria que nunca havia sentido.

— Respira. Fique calma. Não é o que você tá pensando. Eu posso explicar. — Paula colocava as mãos na frente do seu rosto tentando se proteger e em uma tentativa frustrada de acalmar Diana. Buscava falar pausadamente para que não tivesse nenhuma frase distorcida. Era importante que entendesse que as duas estavam no mesmo lado. O barulho do chuveiro, estranhamente, havia voltado no andar de cima. O desconforto com o casaco não era comparável com o quanto desejava sair daquela situação. Diana, com a faca em mãos, encostou a ponta fria na bochecha de Paula, próxima de seus olhos.

— E o que tem debaixo desse casaco, hein. Por que não quer tirar?

Paula segurou firme em seu casaco enquanto Diana, ferozmente, tentou arrancá-lo de seu corpo. Ela puxava com força a gola e a manga, em vão. Em um momento de completo surto, conseguiu, enfim, rasgar o casaco, que era de um tecido resistente e difícil de encontrar. Diana viu o vestido com decote provocativo que estava por baixo.

— TÁ VENDO, VAGABUNDA. QUER OU NÃO QUER ROUBAR MEU MARIDO? — Os vizinhos começaram a se aglomerar em janelas pela redondeza. Diana esbravejava xingamentos repugnantes com a faca cortando levemente o rosto de Paula. — Quer saber dele? Vamo, vagabunda. Sobe. Vai lá ver o Moacir.

Paula foi na frente, sendo empurrada pelas mãos firmes de Diana, que a pressionava o braço com uma força sobre-humana. Seus joelhos já não aguentavam mais o peso de seu corpo, estava com medo, não sabia o que a mente perturbada de Diana seria capaz de fazer. Tropicou no segundo degrau, tentou se levantar, mas foi cambaleando nos degraus seguintes até se jogar, cansada, no chão imundo do segundo andar.

O jardim com aparência impecável contrastava com a podridão do interior da casa, pilhas e mais pilhas de caixas sendo abarrotadas pelos cantos, poeira acumulada sobre os móveis. Dificilmente alguém poderia imaginar que a beleza tão elogiada por fora escondia o fedor dos dejetos sendo jogados ao chão, um estado de putrefação irreconhecível, algo que  definitivamente não combinava com a aparência do casal ou a aparência que eles queriam que a sociedade visse.

Quanto mais se aproximava do banheiro, mais forte o cheiro de carne podre ficava, observava pequenas moscas sobrevoando o corredor entre os quartos imundos. Como alguém aguentaria morar ali? Paula foi arrastada, sendo chutada em alguns momentos. Procurou não demonstrar resistência, seria pior, não queria morrer. Começava a imaginar que aquele seria o seu último dia. Em seus pensamentos, agradecia pela vida que tivera, a infância rica com os amigos brincando de pique-esconde na rua, os cuidados, mesmo que exagerados da mãe, que por vezes, até mesmo por orgulho, não seguira. Queria poder beijá-la pela última vez, e, desde aquele momento, só pensava nela.

— AQUI! VIRA AQUI, PORRA!

Sem forças, Paula entra no banheiro, agarrada por Diana que não a deixava escapar. Pequenas gotas de água respingavam sobre as duas. Moacir estava a muito tempo ali. Diana a manda entrar no banho, arrancando à força o vestido.

Agora nua, Paula encontra Moacir. Ele estava sentado no chão com a coluna curvada em uma posição desconfortável. Seu rosto estava mais pálido que o normal, os lábios, roxos. Não tinha sangue, mas ele parecia sem vida. O terror em seus olhos a impedia de chorar, não queria ter causado isso. Via como se fosse sua culpa. A única causadora dessa situação.

Estava um frio forte demais para sobreviver no inverno, as flores da primavera decidiram que não era o momento de desabrochar, o tempo fechou em uma chuva de fúria incontrolável no verão, todas as folhas do outono secaram.

Em frente, em cima do vaso sanitário, havia um revólver igualmente distante das duas. Juntando o pouco de forças que ainda restava, Paula se impulsionou para pegar a arma. Diana, ao perceber, também tentou agarrar. Era literalmente tudo ou nada. A vida dela dependia desse pequeno milagre. Não podia deixar escapar. As duas, ali, alcançaram o revólver.

Os vizinhos ouviram um tiro. Logo, o corpo de uma mulher caiu abruptamente ao chão. Não havia mais palestras de Moacir. Ninguém sabia o que acontecera com Paula e Diana. A polícia veio retirar os corpos, mas a capa impedia que qualquer curioso descobrisse quem seria a mulher. Nunca mais avistaram ninguém ali. O tempo pesava naquela região de uma forma que nunca tinha acontecido antes. Os primeiros raios rasgavam o acinzentado do céu, como um machado perfurando o tronco de uma árvore. O intenso barulho abruptamente invadia a calmaria que antes reinava naquele espaço.

Pouco se sabe acerca do que aconteceu com aquelas pessoas, não sabiam quem tinha sobrevivido. A casa foi lançada à sorte e, posteriormente, destruída pela ação incontrolável da natureza em um incêndio repentino. A pequena região ficou fadada ao completo esquecimento, ao abandono de suas memórias e à infertilidade da terra. Nada mais se produzia.  Nada mais bonito se via. Não existia o jardim. Tudo foi entregue aos vermes que se fartavam da podridão que restara naquele ambiente. Por ali, não se passava mais nenhuma estação do ano. Era só a estação… das chuvas.

7 comentários em “Estação das Chuvas – final alternativo (Victor Viegas)

  1. claudiaangst
    4 de outubro de 2024
    Avatar de claudiaangst

    Olá, Victor, tudo bem? Então esse é o famoso final alternativo para o conto Estação de Chuvas. O que o meu começo teve de sutil, um dia outonal sem pretensões de grandes reviravoltas, o seu desfecho teve de ação/terror/vingança/mistério. Mas como questionou a Kelly: como não ficaram sabendo de quem era o cadáver?

    Acho que você se empolgou um pouco e disparou emoção demais. Precisava de tanto? Talvez pudesse deixar o suspense antes da chegada da polícia. Um corpo de mulher tinge de sangue o piso frio… e não diz quem é a morta. Claro que muitos leitores ficariam com ódio por causa do final aberto, mas…

    De qualquer forma, sempre vou preferir algo que o autor tenha se empenhado em escrever, com sua marca, mesmo que não seja perfeito. Você até poderia ter usado a criação da IA como base e bordado outras ideias sobre a renda desgastada, preenchido com músculos, gordura, etc.. o esqueleto.

    Continue a escrever e testar suas possibilidades criativas – mas chega de IA, tá bom?

  2. Gustavo Araujo
    26 de setembro de 2024
    Avatar de Gustavo Araujo

    Olá, Victor. Para ser bem franco, preferi o final original, quer dizer, o escrito pela IA. Não pela perícia na escrita — já que este aqui dá de mil a zero naquele –, mas pela coerência com a proposta original. Talvez vc se lembre de meu comentário lá, de que a parte inaugural do conto remetia ao romance do Julian Barnes e que a parte final continha a mesma vibe e por isso me agradou. Aqui, percebo, você deu vazão ao caminho traçado pela segunda parte, no sentido do enfrentamento e do ciúme, resvalando para o novelesco e se afastando, como disse, da proposta inicial. É possível que muitas pessoas apreciem essa guinada, mas eu, pessoalmente, preferiria algo mais íntimo, menos óbvio, menos fácil. De todo modo, te parabenizo pela boa escrita e pelo desenvolvimento da trama.

  3. JP Felix da Costa
    26 de setembro de 2024
    Avatar de JP Felix da Costa

    Olá Vitor!

    Eu sou todo virado para o terror, por isso, é fácil de perceber que gostei mais deste final (quando li o outro só pensava “espero que o chuveiro não pare”).

    No entanto, pareceu-me que a evolução da conversa amena que vai azedando até ao revelar do estado alterado da Diana não teve um bom ritmo, a escalada dá um arranque no final demasiado súbito. Também achei (isto será, talvez, mais gosto pessoal) que exageraste um pouco nos elementos de degradação que surgem no final. Relativamente ao final aberto, senti-o algo forçado e não me parece que enquadre na história.

    Independentemente destes pontos, este final está bastante mais interessante.

    JP

  4. Leo Jardim
    26 de setembro de 2024
    Avatar de Leo Jardim

    Gostei bastante do início, na parte do diálogo na cozinha, enquanto ainda havia uma tensão. Depois que Diana mostra suas garras, ficou muito brusco. De uma mulher de meia idade para uma assassina cruel, foi um salto difícil de acompanhar. A parte da casa podre também é inverossímil. Paula já tinha ido na casa, como assim ela ficou nesse estado em tão pouco tempo? Em algum momento, os verbos do conto passaram para o presente. O revólver no banheiro e o final aberto tbm não me agradou tanto. Acho que, com alguns ajustes, esse final tem tudo pra ficar bom. Mesmo assim, com esses pequenos detalhes, tá muito melhor que o final de IA. Abraços

  5. Kelly Hatanaka
    26 de setembro de 2024
    Avatar de Kelly Hatanaka

    Oi Victor.

    Acho que este final está melhor do que o anterior, embora não tenha nada a ver com o começo em termos de estilo, o que prejudica a coesão. Achei também um tanto corrido e estranhei algumas coisas. Os vizinhos se aglomerando em janelas. Paula estranhando a bagunça do andar de cima (ela nunca tinha subido com Moacir?). Se Moacir estava morto, quem ligou/desligou o chuveiro? Como assim, ninguém soube quem morreu, não houve funeral? Pra que o incêndio?

    Há também aquele velho clichê do “não é o que você está pensando, eu posso explicar”, que de tanto ser dito ao longo da história por adúlteros surpreendidos sem cuecas com a amante já virou admissão de culpa.

    A ideia de um final trágico me agrada muito. Mas sinto que faltou um pouco de sutileza, de construção de tensão. O texto pareceu um tanto “nervoso”, com muita pressa de contar.

    Kelly

  6. Priscila Pereira
    25 de setembro de 2024
    Avatar de Priscila Pereira

    Olá, Victor! Tudo bem?

    Nossa… Você pegou pesado mesmo com a Paula, heim!

    O enredo ficou bem forte e cru. Não combina com o começo e o meio da história, mas seria o seu final e teria sido melhor você ter mandado esse mesmo.

    Não gostei muito, faltou sutileza. Mesmo no terror, pode ter mais sofisticação e insinuações. Ficou muito visual e muito direto.

    Você até tentou trazer um pouco da poesia do começo e da alusão as estações do ano, mas não deu muito certo, pela falta de sutileza que já comentei antes. Na verdade seu final não está ruim, só não combina mesmo com o começo e com o meio. Ah, e não curti o final aberto! Como assim ninguém soube quem tinha morrido??

    Espero que continue com a gente!

    Até mais!

    • Victor Viegas
      26 de setembro de 2024
      Avatar de Victor Viegas

      Olá, Priscila!

      Agradeço pelo comentário. Gosto muito de ler a poesia que você traz nos seus textos e é exatamente essa sutileza que tem sido um grande desafio pra mim e por isso não tive a segurança de mandar essa versão.

      Além disso, a questão da IA foi um “e se” que acabei respondendo e também achei interessante ter provocado essa discussão no grupo. Lembro no começo do ano um concurso que permitia o uso da inteligência artificial e gerou muita conversa.

      Vai ser um desafio deixar o texto mais polido e sutil, mas é um desafio que eu vou encarar. Gratidão!

E Então? O que achou?

Informação

Publicado às 25 de setembro de 2024 por em Contos Off-Desafio e marcado .