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Detox Literário.

Convite – Conto (André Lima)

Tudo estava estranhamente calmo naquela noite. Eu ponderava incessantemente as questões que você levantara durante a manhã, por essa razão, caminhava na orla da praia concentrado em pensamentos. Acendi um cigarro e constatei: a lua estava maior que o natural durante aquela semana. Lembro que soltei minha maleta no chão e um punhado de areia voou; sentia as partículas dela com meus pés descalços. Estava ali, contemplando a grande massa azul escura, imponente, titânica. Eu esperava que o mar me explicasse o universo. As águas tentaram, sutilmente, me narrar os pilares estruturais do cosmos, entre sussurros e quebrar de ondas, no entanto tudo ressoava tão baixo, tão silencioso, que voltei a mim antes de compreender.

Eu caminhava solitário; já havia me habituado a isso. Somos todos solitários por essência e caminhamos tortos em avenidas retas, sem saber aonde tudo isso vai dar. As luzes do Rio de Janeiro estavam curiosamente radiantes. E aquela cidade estava fria, com uma chuva fina… Era um Rio melancólico e muito mais convidativo, onde o ar beijava gelado, os lábios rachavam e o cinza contrastava com as luzes.

— Quem deve estar chegando? – ouvi a voz de minha mãe em outro cômodo.

Os corredores da casa me dobraram até o quarto e, com muito pesar, me preparava espiritualmente para o que estava prestes a ver. Eu nunca me acostumaria; nunca sequer aceitaria.

— Está vendo? É meu irmão. – disse a outra mulher em pé ao lado da cama.

E parado embaixo da moldura da porta, a vi. Jacente no leito como Eva, o emaranhado dos lençóis eram seus cipós e a nudez que se fazia era sagrada, como se fosse a lei daquela terra. A ouvi sussurrar:

— Quem é esse?

Minha irmã se virou para mim. Percebi o cansaço e a renúncia.

— É seu filho, lembra? Seu primeiro filho. – Apontou.

Mas ela não respondeu. Apenas se mergulhou em mim, enquanto eu permanecia ali, estático, embaixo da moldura da porta, em contraluz. Não pude ler suas expressões. Elas não eram vazias, como poderia se supor; ao contrário, eram um inextricável de galáxias e elétrons, algum reflexo da desordem espontânea que existe no universo.

Esse foi meu Big Bang, o fato que me fez virar a chave, que me fez conceber que minha própria existência não era problema suficiente; o meu relacionamento contigo também não seria.

Com isso fui me deitar e obviamente não dormi. Tentava captar em minha memória alguma resolução para todos os conflitos. Mas me perdi quando me veio uma lembrança que, provavelmente, nunca te contei. Será que você sabe? Será que sabe do dia em que minha mãe foi me buscar na escola? Eu devia ter sete anos. No pátio, em meio a todas as crianças que transladavam em volta de mim, minha mãe se abaixou e me perguntou, baixinho:

— Quem é ela?

Era nítida a expressão de excitação em desvendar o próprio filhote. O sorriso era tão característico. E timidamente apontei para você. A menina que rotacionava com os braços abertos, o cabelo nebulava ao redor de sua cabeça, fazendo seu próprio anel de asteroides. Eu podia recordar claramente e ali, deitado na cama, senti novamente os braços de minha mãe me erguendo para pôr-me em colo. Ela me beijou a têmpora e me disse:

— Ela é linda!

E eu me orgulhei por me satelitear em você. Hoje, ela não te reconheceria. Não é mesmo a vida uma loucura?

Esses pensamentos se estenderam durante a semana. Eram sempre as mesmas noites que eu revivia; as mesmas lembranças, os mesmos pensamentos, as mesmas questões. Refletia e refletia acerca do que você me dissera, mas se sucediam apenas lamúrias. Até que minhas aflições se interromperam quando eles vieram.

Não me recordo do dia, mas sei que era madrugada. Acordei suavemente e pude observar as formas que se mantinham em pé pelo meu quarto. Uma luz intensa e violeta invadia a janela e iluminava parte do local. Constatei todas as presenças, sem medo, mas com uma tensão única que antecede a libertação. Um deles caminhou ao meu encontro e disse, com sua voz aguda e gutural em diferentes camadas, com estalidos e pigarros:

— Venha conosco.

Não eram ameaçadores. Até se parecem com vocês, embora tenham os braços ligeiramente maiores e os olhos esticados e fundos. Levantei da cama devagar e transacionei pelo quarto. Aceitei o convite de bom grado. A experiência de nascer de novo nos dá uma nova perspectiva sobre a vida. Percebemos que há muito em comum entre o grito do nascimento e o silêncio da morte. Simplesmente percebi quando cheguei à janela e contemplei a grande astronave que flutuava à minha frente. Era a mesma carruagem de fogo que levara o profeta Elias no passado. E com nosso próprio rodamoinho, subimos à nave como arrebatados.

Quando a astronave me inseriu no cosmos, eles me revelaram meu passado. Sou um tipo de híbrido da espécie humana com a espécie dos tripulantes; há muitos de nós por aí. Eles colheram meu sangue e me fizeram passar por procedimentos antes desconhecidos por mim. Eles estavam satisfeitos com o que encontraram. De alguma forma, a missão havia obtido sucesso. Eles me disseram que eu, finalmente, conheceria o lar de meus antepassados; e foi aí que a nave trepidou e passamos por um processo que eu poderia chamar de forma-dimensionação, assim que adentramos em um buraco de minhoca. O procedimento era necessário, pois todo elemento material, desde a nave até as bactérias de meu corpo, estava agora em uma outra dimensão.

Tudo era muito confuso no início, essencialmente quando me aventurava a utilizar o dimensioscópio para te observar. É uma experiência única, comparada a um desenho de um ser bidimensional em uma folha de papel. Esse ser desenhado é limitado por aquele espaço em branco e jamais poderá observar o desenhista tridimensional, pois só conhece os sentidos e direções que a folha lhe permite, enquanto o desenhista, por sua vez, pode observar cada milímetro daquele espaço. É assim para mim. Consigo ver-te por todos os cantos e estaria presente, tocando-te o pé do ouvido com meus lábios se não fosse uma imensidão universal que nos separa. Mas escrevo essa carta enquanto recito aos seus ouvidos, na esperança de, caso eu volte à Terra um dia, você possa lê-la e tomar as decisões que tanto te inquietam. Tudo é novo para mim, tudo é tão radiante e sonoro… As novas regras do meu atual contexto me fazem perceber que enfim saí da Caverna de Platão. O tempo aqui é diferente também. Faz apenas alguns segundos que Jesus ascendeu aos céus em sua própria espaçonave, mas em minutos serei tão velho quanto a mais antiga das estrelas, serei fraco, obsoleto, gigantesco e pesado.

Não temo mais a vida, a morte ou o tempo. Entendo como tudo funciona, pois vi a face de Deus no reflexo de um rio. Eu vi o modus operandi, a força motriz e a razão de tudo. E descobri que, ao contrário do que normalmente pensamos, não somos insignificantes por conta do nosso tamanho microscópico em relação ao gigantismo do universo; somos porque tudo é, desde a maior das estrelas até a maior mancha galáctica universal. Tudo concorre para caminhos retos, em marcha através do acaso, com um destino que se desmanchará em frente dos últimos olhos.

Ah, como eu desejo que um dia você possa ver as maravilhas e os fenômenos que vejo. Certamente, à essa altura, tudo haveria de mudar em seu interior. Aqui, minha querida, há cores tão cintilantes, há tons tão absurdos que seriam impossíveis de se reproduzir na Terra. Aqui, as manhãs são tão graciosas que somos nós que cantamos aos pássaros. Os sons, por vezes, se tornam elevados demais, onipresentes e impróprios para o ouvido humano comum, mas estou aos poucos me acostumando. E descobri, como quem se contempla em um espelho, que não existe vazio, não existe vácuo, não existe o silêncio… O universo geme, baixo, gutural, a todo instante, e, quando nos calamos, deveríamos escutá-lo, mas somos tão egocêntricos que acreditamos que o universo nos imita e nada se ouve.

Agora, quando me deito na praia, sou admirado pelas estrelas; o mar não mais sussurra verdades pra mim, mas me pergunta em súplica. E eu tenho as respostas, até mesmo as respostas que você tanto procura. É bem verdade que há coisas que você nunca encontrará, nem no mais remoto ponto do cosmos, embora haja questões tão óbvias que você se sentirá uma reles criança apalpando o mundo. Gostaria tanto de mostrar… Não mais por mim, mas para te poupar da busca incessante, das angústias que os planetas, os buracos negros e os asteroides percorrendo o espaço causam.

Hoje, sei que não sinto mais falta de nenhum elemento da Terra. Nem mesmo de você. Tudo se tornou miseravelmente distante. Até aquela nossa noite de sexo no carro, outrora tão fatídica, se tornou irrelevante. Porque de fato o é. Mas há uma exceção que ainda me angustia suavemente… Eu sinto falta de minha mãe, ah, minha mãe… Sinto falta de seu útero, de seus fluidos, de nosso cordão umbilical. Sinto falta do toque, dos beijos na têmpora, da conexão única e da justificativa… Tudo é justo e justificável quando filhote e mãe se encaram, e de repente todo líquido se torna amniótico e todo toque é reconfortante e intrauterino. Daí minha revolta em vê-la não sendo mais, não estando mais, perdendo seu ego a cada dia que se passa.

Mas entendo que até isso tem de ser. Afinal, as águas se movem, os planetas também, o universo gira e se expande e meus gritos seriam meros instrumentos de uma imensa sinfonia. É nítido para mim: é preciso contemplar muito mais do que viver.

E se você visse o que eu vi? Eu a convido, despretensiosamente, a não buscar, mas sim a ser buscada. Quem sabe não te encontram? Quem sabe assim, suas concepções não sofram mutações e você finalmente reconheça as respostas que procura? Quem sabe assim, não possa contemplar o violeta no espaço ou subir no topo da Estrela? Sinta a gravidade. E ouça, o universo geme… Eu sei que você um dia saberá, minha querida…

… o universo geme.

3 comentários em “Convite – Conto (André Lima)

  1. Kelly Hatanaka
    25 de junho de 2024

    Que conto interessante! Ele começa insinuando uma história de amor, depois, uma história de perda, depois uma ficção científica, mas tudo isso serve como pano de fundo para reflexões filosóficas acerca da vida, do amor, da maternidade.

    Posso dizer que tinha quase tudo para me desagradar, mas me agradou em cheio.

  2. Givago Thimoti
    21 de junho de 2024

    Olá, André! Tudo bem?

    Esse conto tem elementos que eu adoro, outros que não são muito do meu gosto. Esse conto é uma miscelânea, como a vida: mistura ficção científica, uma história dramática, divagações filosóficas e por aí vai. Uma experimentação muito boa, que valeu a tentativa.

    Meus destaques: a pessoalidade do texto, o narrador que conversa com aquela que foi, um dia, o amor de sua vida, tempos depois de se tornar um híbrido – um homem alienígena, que teve acesso aos segredos do Universo.

    É um conto muito bem construído. Para mim, a melhor construção está no Rio de Janeiro melancólico e convidativo. Num primeiro momento, até é possível pensar como essa ideia é estranha: o Rio de Janeiro 50 graus, do Carnaval, do Samba, do Flamengo, do Caos político… Melancólico? Convidativo?

    Eis que eu lembro de um comentário de um psicólogo fez para mim uma vez: a tristeza em um indivíduo tem o poder de atrair as pessoas. Ou, ao menos, provocar alguma espécie de incômodo que faz essas pessoas fazerem algo em relação a isso. Eis que entra a tal da empatia,ou a solidariedade.

    Esse parágrafo sobre o RJ melancólico e convidativo me despertou essa referência e muito me agradou. Um RJ empático, personificado, quase um personagem próprio, que beira a utopia quando vemos a dura realidade na mídia. Meu gosto pessoal? Gostaria que fosse mais desenvolvido isso. Descartaria o texto? De maneira nenhuma.

    Foi uma boa leitura!

    Obrigado pela contribuição!

  3. Priscila Pereira
    20 de junho de 2024

    Um conto intenso e profundo, André!

    Bem escrito e bastante filosófico… Uma mistura de FC com fantasia incluindo e “explicando” questões religiosas (confesso que não gostei dessa parte).

    Gostei bastante da narrativa ser em forma de carta, a primeira pessoa deu mais profundidade ao texto. O relacionamento entre mãe e filho, e a deterioração da mãe foi trabalhado de uma forma muito bonita. O conto é muito bonito, tanto nas imagens que evoca, como no tema sensível.

    Achei original e interessante! Parabéns!

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Informação

Publicado às 20 de junho de 2024 por em Contos Off-Desafio e marcado .