EntreContos

Detox Literário.

Magnum Opus (Jorge Santos)

A menina avançou timidamente pelo trilho da floresta. Vestia um simples vestido branco surrado, tinha o cabelo em desalinho, a cara suja, os olhos lacrimejantes, o coração apertado de quem foge quando não tem sequer idade para sofrer o que já sofrera. Um dia viu na porta aberta para a rua a sua esperança e correu como nunca tinha corrido antes. O pai estava bêbado, como era seu hábito, caído no sofá como um morto na campa. A mãe trabalhava no mercado, só viria à noite, depois de limpar a casa de uma senhora idosa de quem Aline não guardava boa memória.

Quando parou de correr, deu-se conta de que estava perdida no meio do nada. À sua volta só via árvores e arbustos bravos que lhe fustigavam a pele. Estava habituada a andar no mato, mas aquele era diferente. Matara a sede num riacho de águas geladas, mas a fome corroía-a por dentro e forçava-a a continuar. No cimo do monte viu uma casa rodeada por um muro alto. Alisou o cabelo como pôde. Empurrou o pesado portão de ferro e entrou sem um único segundo de hesitação. Sentiu-se uma ladra, mas não era a primeira vez que o fazia. Pressentiu de imediato a presença de um cão que corria para ela e lhe ladrava ameaçadoramente. Ela limitou-se a ficar quieta. O cão, um pastor alemão com uma bocarra imensa que lhe arrancaria a cabeça de uma só dentada, ficou quieto. Rodeou-a, cheirando-a. Aline esticou a mão sem qualquer receio. O cão deixou que lhe acariciasse a cabeça.

– Chama-se Einstein, e é como eu, não costumo gostar de visitas inesperadas. – Anunciou um homem que estava junto à soleira da porta da grande casa. Devia ser mais ou menos da idade do pai de Aline, mas era magro, quase escanzelado. Tinha uns grandes óculos escuros que lhe escondiam o olhar. A voz era fria, com um sotaque estrangeiro. Aline sentiu mais medo dele do que do cão, mas não podia voltar para trás.

– Os teus pais?

Ela abanou a cabeça, mantendo o seu silêncio habitual. Nunca falara na vida. Aline, a muda. Era assim que ouvia as pessoas falarem dela, esquecendo-se de que a pequena Aline podia ser muda, mas não era surda.

– Já percebi. Para além de visita inesperada, não falas.

Aline assentiu com a cabeça.

– Fugiste de casa?

Aline assentiu novamente com a cabeça.

– Percebo. Entra. Podes ficar até amanhã. Tomas banho, lavas esse vestido imundo. Vais à cozinha e preparas um lanche. Amanhã de manhã segues o teu caminho. Eu tenho trabalho a fazer. Não me incomodes. Combinado?

O homem entrou em casa, deixando a porta aberta. Aline entrou atrás dele, notando logo pela desarrumação que ele devia viver sozinho há bastante tempo. Havia livros, caixas, roupas e coisas estranhas que Aline nunca tinha visto na vida. Deu-se conta de que estava sozinha. Encontrou o caminho para a cozinha. Também ali havia a mesma desordem. Pratos sujos, comida estragada pelo chão. Aline encontrou leite, pão e um bom naco de marmelada. Comeu, depois viu uma esfregona. Limpou a cozinha até deixar o chão a brilhar. Fez o mesmo ao corredor e à sala. Só depois foi tomar banho. Encontrou um roupão branco que lhe servia de vestido. Lavou o vestido e foi para a sala (onde estranhou a inexistência de uma televisão), deitou-se no sofá e adormeceu profundamente. Acordou já o dia tinha nascido. Estava coberta com uma manta. O Einstein dormia no chão, a seu lado. Aline levantou-se, decidida a manter a sua promessa. O homem estava na cozinha, a tomar o pequeno-almoço.

– Bom dia. – Disse ele. Ela limitou-se a acenar. O vestido estava seco, num canto da cozinha onde havia duas máquinas, uma de lavar roupa e outra de secar.

– Toma o pequeno-almoço.

Aline olhou para a mesa. Havia pão, doce de laranja e leite. Sentou-se e serviu-se como se não comesse há mais de quinze dias.

– Tem calma. Sabes escrever? – O homem deu-lhe um caderno e uma caneta. Aline assentiu com a cabeça.

– Escreve o teu nome.

Ela escreveu: “Aline”.

– Muito bem, Aline. Tens para onde ir?

Ela abanou a cabeça.

– Que idade tens?

Ela escreveu “13”.

– Muito bem. Se quiseres, podes ficar. Eu chamo-me Lucas, como o evangelho. O Einstein gostou de ti e ele não costuma gostar de desconhecidos. No entanto, Aline, para ficares não podem haver segredos entre nós. Quem é que te fez isso? Eu vi as marcas e também sei do teu segredo.

Aline olhou fixamente para Lucas, atirou para trás a cadeira num estrondo e desapareceu da cozinha numa fúria. Saiu da casa e encarou o grande portão de ferro. Por trás, ela já sabia o que havia, um longo caminho pela floresta. Para além dele, os pais. Fechou os olhos. Uma lágrima caía-lhe pela face. Aquelas memórias que ela tanto queria evitar vieram-lhe à mente como uma tempestade forte. Memórias de dor. Lembrou-se da primeira vez. A mãe saíra para trabalhar. O pai estava desempregado. Ficava em casa a beber. Um dia levou-a para o quarto. Vamos brincar, disse ele. Começou a tirar-lhe a roupa. É uma coisa normal, disse ele, mas no seu íntimo, a aterrorizada Aline sabia que não era. Vais acostumar-te, disse ele. Ela nunca se habituou. Passou a evitar o pai. Por medo ou vergonha, nunca contou à mãe. Um dia, a gravidez tornou-se evidente. A mãe, mais preocupada com os vizinhos do que com a própria filha, arrastou-a para o quarto e bateu-lhe na barriga. Nada aconteceu. No dia seguinte, uma amargurada Aline viu na porta aberta da cozinha o seu único sinal de esperança e fugiu.

Lucas sentou-se a seu lado.

– Se não tens para onde ir, podes ficar. Acho que me vou arrepender desta minha decisão. Vai chegar um dia em que vais precisar de ajuda e eu só percebo de máquinas. Queres ficar?

Aline assentiu.

– Então, vem comigo. Vou mostrar-te o que eu faço.

Aline seguiu-o. Einstein colou-se a ela como uma sombra. Nos fundos da casa, ao lado da cozinha, havia uma passagem para um segundo edifício, o maior onde Aline alguma vez entrara. Só via máquinas e peças e coisas com luzes a piscar e a acender.

– Sou inventor. Trabalho para as maiores empresas do mundo. Refugio-me aqui para conseguir ter calma, excepto nas alturas em que meninas de 13 anos me batem à porta. Agora, vou mostrar-te a minha maior invenção.

Aline seguiu-o, não conseguindo tirar os olhos de tudo o que via. Queria saber o que aquilo fazia. Talvez assim conseguisse esquecer a sua dor. Lucas abriu a porta e acendeu a luz de uma sala que parecia uma sala de estar normal – sendo que aquela, sim, tinha televisão. No sofá estava uma pessoa, que se levantou. O inventor colocou-se a seu lado e Aline teve um dos maiores choques da sua vida: à sua frente estavam dois Lucas. À direita estava o Lucas real. À esquerda estava um segundo Lucas, em tudo parecido, mas com traços visíveis da sua natureza: era uma máquina. Na pele transparente dos braços notavam-se peças metálicas, a face era rude, quase uma caricatura do verdadeiro Lucas. Estendeu a mão para Aline.

– É a minha magnum opus, a minha obra-prima. O Dróide. Fi-lo para mim, com peças que sobraram dos outros projetos. Sabe quase tudo o que eu sei e faria de mim o homem mais rico do Universo se eu o vendesse.

Com algum receio, Aline apertou a mão ao Dróide. Não sentiu dor alguma mas, mesmo assim, ficou duplamente muda de espanto.

– Não está acabado, nem nunca vai estar. Eu não sou Deus, sou um mísero engenheiro, um aprendiz de feiticeiro dos tempos modernos.

Aline sorriu. Sim, agora tinha a certeza de que queria ficar ali. Nos meses que se seguiram, ela fez companhia a Lucas e ajudou-o no que podia. Ele surpreendeu-se pela facilidade com que aprendia, e quando deu por isso já era o seu pequeno braço direito. Quando terminava, ela gostava de ficar na sala a ver televisão com o Dróide. Adormecia com a cabeça encostada ao seu regaço e ele ficava quieto a noite toda, com medo de a magoar. No seu cérebro cibernético definira duas certezas: Lucas era o seu Deus Criador, Aline era o anjo que o ensinava a dançar.

Às terças-feiras de manhã. Lucas pegava no carro e dirigia até à pequena cidade que ficava junto à costa, quase a trinta quilómetros de distância e, pelas contas de Aline, suficientemente afastada de casa dos pais para não ter de se preocupar. Usava roupa larga, pelo que a barriga não criava motivos de curiosidade. Gostava de ir às compras com o inventor, que parecia ser uma pessoa bastante conhecida. A todos ele apresentava Aline como sendo uma sobrinha que perdera os pais num terrível acidente. As pessoas sentiam pena de Aline e davam-lhe presentes que ela recebia de bom grado e com um sorriso aberto. Ao chegar a casa do inventor, gostava de mostrar os seus presentes ao Dróide, que desatava a fazer perguntas às quais ela não conseguia responder.

Um dia, meses depois de Aline ter chegado àquela casa, ela sentiu dores fortes. Queixou-se a Lucas, que bastou ver as calças molhadas de Aline para saber que estava em trabalho de parto. Chegara o momento que ele temera desde que se apercebera da gravidez da menina. Tentou ajudá-la como podia e sabia, mas o corpo dela era demasiado pequeno. Aline iria morrer a menos que ele fizesse aquilo que não queria. Ligou ao médico da cidade, que demorou quase uma hora a chegar. Uma hora de verdadeiro terror para Lucas, que viu espelhado no rosto do médico um esgar de nojo assim que se apercebeu da situação. Improvisou com láudano a anestesia e fez a Aline uma cesariana na mesa da cozinha. Ela, não completamente inconsciente, sentiu enquanto o médico a abria. Ele tirou a criança e entregou-a a Lucas com um ar agastado e sem trocarem uma única palavra – depois de suturar a ferida, foi-se embora sem aceitar pagamento.

Na terça-feira seguinte, na sua habitual ida à cidade, Lucas apercebeu-se da mudança na forma como as pessoas o encaravam. Um silêncio incómodo imperava agora, substituindo a conversa fácil de outrora. Toda a cidade sabia do que tinha acontecido – e pensavam que ele era o pai da criança.

Regressou a casa angustiado. Esperava conseguir explicar o que se tinha passado na realidade, sem conseguir perceber como um ato de misericórdia para com uma menina que um dia lhe batera à porta se transformara no ódio que vira patente nos rostos das pessoas. Não teve tempo: uma semana depois do nascimento de Marcos, Lucas apercebeu-se de diversos carros que subiam a estrada. Foi acordar Aline, que dormia ao lado do filho. Explicou-lhe o que ela deveria fazer. Aline abanou a cabeça, em pânico. Lucas deu-lhe um beijo na face, depois foi buscar a espingarda e ficou à espera.

Ela pegou delicadamente no filho, deitou-o na alcofa, subiu ao quarto de Lucas. “Terceira gaveta da esquerda”, dissera-lhe. Tirou um maço de notas e desceu as escadas, ainda sem conseguir andar bem por causa dos pontos. Pegou na alcofa, passou pelo laboratório às escuras – ela sabia perfeitamente o caminho, mesmo sem ver. Puxou a mão do Dróide, que a seguiu até ao carro. Ouviu três tiros, depois o silêncio. O portão abriu-se. Eles estavam dentro de casa, a partir tudo. Aline meteu a alcofa no banco de trás do carro. O Dróide foi para o lugar do condutor. Uma Aline ofegante e de coração apertado entrou para o lugar de trás. O Marcos começou a berrar. Ela pegou nele. O Dróide ligou o carro e avançou lentamente. Passaram pelo portão traseiro, com Aline a olhar para trás. Viam-se chamas a começar a devorar a casa, as pessoas em delírio, um corpo no chão. Foi ao vê-lo que Aline, desfeita em lágrimas de raiva, soltou o único berro que daria na vida: “Lucas!”

 Depois continuaram a fazer a estrada sem nunca olhar para trás.

39 comentários em “Magnum Opus (Jorge Santos)

  1. Lis Selva (@lis_selva)
    22 de janeiro de 2022

    Texto fortíssimo! Ficção muito bem construída. Parabéns!
    Não sou tão boa para comentar, mas vi qualidade e excelente domínio da escrita nesse conto, Personagens bem elaborados, Tema bem aproveitado e de uma crítica c0nveniente e cortante.

  2. cgls9
    20 de março de 2021

    Aline fugiu de uma vida miserável e atravessando a floresta, descobriu a bondade e recebeu os cuidados que nunca teve. Lucas era um engenheiro que criara um droide à sua imagem. Qdo a cidade imagina coisas terríveis, Aline e obrigada a fugir novamente.

    Por conta de algumas expressões, imagino que se trata de um trabalho de além mar. Cada olhar sobre qualquer obra sempre será contaminado pelas nossas vivências e preferências. Raro é encontrarmos algo que nos satisfaça plenamente, teu conto é maravilhoso, teus personagens são simpáticos e verdadeiros e a trama é segura, mas… há sempre um “mas”! Senti falta de um propósito. De apontar um caminho, talvez porque não a encerrastes. De qualquer forma é um trabalho sólido que, se me permites, fosse tu, eu revisitaria. Parabéns e boa sorte!

    • Jorge Santos
      23 de março de 2021

      Estou a equacionar uma continuação. De facto, fui traído pelo limite e não soube gerir o que pretendia: aprofundar todos os momentos da história. Abraço e obrigado pelo comentário.

  3. Andrea Nogueira
    20 de março de 2021

    Atende ao tema desafiador, com o personagem um “dróide”, uma Magnum Opus que dá título ao Conto. Mas, como a figura da ‘engrenagem’ tem papel coadjuvante na trama, ou seja, não atua nem define o desenrolar dos fatos e na conclusão, o Conto perde pontos na competição.

    A história narra a relação entre um engenheiro inventor e uma menina que foge de casa, de casa de 13 anos. Mantêm uma relação de afeto e respeito, em que Luca a acolhe Aline, muda, pobre e grávida do próprio pai, em sua casa.

    A trama dá conta da convivência colaborativa e compassiva entre Luca e Aline, o Dróide e Einstein – o cão de guarda, até a maternidade da menina. De conhecimento público, o fato provoca revolta na comunidade local que, tomando Lucas por pai da criança, se insurge e mata Lucas.

    No desfecho vemos Aline, a criança e o Dróide abandonando a casa em fuga.

    Um conto com uma história que não causa impressão, chegando mesmo a ser desinteressante: falta-lhe imaginação e criatividade.

    Em paralelo, o texto apresenta muitos problemas de linguagem que chegam a desviar o foco do conteúdo (ruídos): erros de acentuação, pontuação, grafia, forma errática de conjugação verbal e o uso de arcaímos. Se muitas dessas falhas tenham origem na identidade estrangeira, não se justificam. Antes revelam o pouco domínio da língua, qualquer que seja sua nacionalidade.

    • Jorge Santos
      23 de março de 2021

      Agradecia que me apontasse essas falhas. 😦

      • Andrea Nogueira
        24 de março de 2021

        Olá Jorge. Envio o texto do Conto com minhas sugestões de correção, acréscimos, que acho necessárias. Espero te ajudar.

        Coloquei entre parenteses – ( ) – o que deve sair do texto e coloquei em LETRAS MAIÚSCULAS minhas sugestões de mudanças e correções necessárias.

        São sugestões, que você pode aceitar ou não. Mas que valem para te orientar nos próximos textos.

        Últimas observações:

        – como você é estrangeiro, tente achar algum sinônimo para as palavras que não estão em uso no Brasil (na dúvida consulte um dos nossos dicionários);

        – no Brasil, no trato coloquial, não se usa o tratamento verbal em 2a. pessoa (singular e plural) e sim em 3a. pessoa (ex.: “você quer”, não “queres”; “ele percebe” e não “percebes”). Mas neste teu texto eu não sei se você usou a forma em 2a. pessoa para definir o personagem Lucas como sendo um um estrangeiro (nesse caso é preciso esclarecer sua condição de forma a justificar sua fala, o tratamento aos outros em 2a. pessoa).

        Sucesso nas próximas escritas! abraço

        ——————————————

        (texto Magnus Opus)

        A menina avançou timidamente pelo trilho (pela trilha) da floresta. Vestia um (simples) vestido branco SIMPLES E surrado, tinha o cabelo em desalinho, a cara suja, os olhos lacrimejantes, o coração apertado de quem foge quando não tem sequer idade para sofrer o que já sofrera. Um dia viu na porta aberta para a rua a sua esperança e correu como nunca tinha corrido antes. EM CASA O pai estava bêbado, como era seu hábito, caído no sofá como um morto na campa. A mãe trabalhava no mercado, só viria à noite, depois de limpar a casa de uma senhora idosa de quem Aline não guardava boa memória.
        Quando parou de correr, deu-se conta de que estava perdida no meio do nada. À sua volta só via árvores e arbustos bravos que lhe fustigavam a pele. Estava habituada a andar no mato, mas aquele era diferente. Matara a sede num riacho de águas geladas, mas a fome corroía-a por dentro e forçava-a a continuar. No cimo do monte viu uma casa rodeada por um muro alto. Alisou o cabelo como pôde. Empurrou o pesado portão de ferro e entrou sem um único segundo de hesitação. Sentiu-se uma ladra, mas não era a primeira vez que o fazia. Pressentiu de imediato a presença de um cão que corria para ela e lhe ladrava ameaçadoramente. Ela limitou-se a ficar quieta. O cão, um pastor alemão com uma bocarra imensa que lhe arrancaria a cabeça de uma só dentada, ficou quieto. Rodeou-a, cheirando-a. Aline esticou a mão sem qualquer receio. O cão deixou que lhe acariciasse a cabeça.
        – Chama-se Einstein, e, é como eu, não costumo (a) gostar de visitas inesperadas. – A (a)nunciou um homem que estava junto à soleira da porta da grande casa. Devia (ser) TER mais ou menos (da) A idade do pai de Aline, mas era magro, quase (escanzelado) CADAVÉRICO. Tinha uns grandes óculos escuros que lhe escondiam o olhar. A voz era fria, com um sotaque estrangeiro. Aline sentiu mais medo dele do que do cão, mas não podia voltar para trás.
        – E OS teus pais?
        Ela abanou a cabeça, mantendo o seu silêncio habitual. Nunca falara na vida. Aline, a muda. Era assim que ouvia as pessoas falarem dela, esquecendo-se de que a pequena Aline podia ser muda, mas não era surda.
        – Já percebi. Para além de visita inesperada, não falas.
        Aline assentiu com a cabeça.
        – Fugiste de casa?
        Aline assentiu novamente com a cabeça.
        – Percebo. Entra. Podes ficar até amanhã. Tomas banho, lavas esse vestido imundo. Vais à cozinha e preparas um lanche. Amanhã de manhã segues o teu caminho. Eu tenho trabalho a fazer. Não me incomodes. Combinado?
        O homem entrou em casa, deixando a porta aberta. Aline entrou atrás dele, notando logo pela desarrumação que ele devia viver sozinho há bastante tempo. Havia livros, caixas, roupas e coisas estranhas que Aline nunca tinha visto na vida. Deu-se conta de que estava sozinha. Encontrou o caminho para a cozinha. Também ali havia a mesma desordem. Pratos sujos, comida estragada pelo chão. Aline encontrou leite, pão e um bom naco de marmelada. Comeu, depois (viu) ENCONTROU (uma esfregona) UM ESFREGÃO. Limpou a cozinha até deixar o chão a brilhar. Fez o mesmo (ao) NO corredor e (à) NA SALA. Só depois foi tomar UM banho. Encontrou um roupão branco que lhe servia de vestido. Lavou o vestido e foi para a sala (onde estranhou a inexistência de uma televisão), deitou-se no sofá e adormeceu profundamente. Acordou já o (com o) dia (tinha nascido) CLARO. Estava coberta (com) POR uma manta. O Einstein dormia no chão, a seu lado. Aline levantou-se, decidida a manter a sua promessa (qual promessa, Jorge?). O homem estava na cozinha, (a tomar o pequeno-almoço) TOMANDO SEU CAFÉ DA MANHÃ .
        – Bom dia, DISSE ele. Ela limitou-se a acenar. O vestido estava seco, num canto da cozinha (,) onde havia duas máquinas, uma de lavar roupa e outra de secar.
        – (Toma o pequeno-almoço) TOME SEU CAFÉ.
        Aline olhou para a mesa. Havia pão, doce de laranja e leite. Sentou-se e serviu-se como se não comesse há mais de quinze dias.
        – Tem calma. Sabes escrever? – O homem deu-lhe um caderno e uma caneta. Aline assentiu com a cabeça.
        – Escreve o teu nome.
        Ela escreveu: “Aline”.
        – Muito bem, Aline. Tens para onde ir?
        Ela abanou a cabeça EM SINAL NEGATIVO.
        – Que idade tens?
        Ela escreveu “13”.
        – Muito bem. Se quiseres, podes ficar. Eu chamo-me Lucas, como No evangelho. O Einstein gostou de (ti) VOCÊ e ele não costuma gostar de desconhecidos. No entanto, Aline, para ficares não podem haver segredos entre nós. Quem é que te fez isso? Eu vi as marcas NO TEU CORPO e também sei do teu segredo.
        Aline olhou fixamente para Lucas, atirou para trás a cadeira num estrondo e desapareceu da cozinha (numa) EM FÚRIA. Saiu da casa e encarou o grande portão de ferro. Por trás, ela já sabia o que havia, um longo caminho pela floresta. Para além dele, os pais. Fechou os olhos. Uma lágrima caiu pela face. Aquelas memórias que ela tanto queria evitar vieram-lhe à mente como uma tempestade forte. Memórias de dor. Lembrou-se da primeira vez. A mãe saíra para trabalhar. O pai estava desempregado. Ficava em casa a beber. Um dia levou-a para o quarto. Vamos brincar, disse ele. Começou a tirar-lhe a roupa. É uma coisa normal, disse ele, mas no seu íntimo, a aterrorizada Aline sabia que não era. Vais acostumar-te, disse ele. Ela nunca se habituou. Passou a evitar o pai. Por medo ou vergonha, nunca contou à mãe. Um dia, a gravidez tornou-se evidente. A mãe, mais preocupada com os vizinhos do que com a própria filha, arrastou-a para o quarto e bateu-lhe na barriga. Nada aconteceu. No dia seguinte, uma amargurada Aline viu na porta aberta da cozinha o seu único sinal de esperança e fugiu.
        Lucas sentou-se a seu lado.
        – Se não tens para onde ir, podes ficar. Acho que me vou arrepender desta minha decisão. Vai chegar um dia em que vais precisar de ajuda e eu só (percebo) ENTENDO de máquinas. Queres ficar?
        Aline assentiu.
        – Então, vem comigo. Vou mostrar-te o que eu faço.
        Aline seguiu-o. Einstein colou-se a ela como uma sombra. Nos fundos da casa, ao lado da cozinha, havia uma passagem para um segundo edifício, o maior onde Aline alguma vez entrara. Só via máquinas (e)), peças e coisas com luzes a piscar e (a) acender.
        – Sou inventor. Trabalho para as maiores empresas do mundo. Refugio-me aqui para conseguir ter (calma) TRANQUILIDADE, (excepto) EXCETO QUANDO meninas de 13 anos me batem à porta. Agora, vou mostrar-te a minha maior invenção.
        Aline seguiu-o(,) não conseguindo (tirar) DESVIAR os olhos de tudo o que via. Queria saber o que TUDO aquilo fazia. Talvez assim conseguisse esquecer (a) sua dor. Lucas abriu a porta e acendeu a luz de uma sala que parecia uma sala de estar normal – sendo que aquela, sim, tinha televisão. No sofá estava uma pessoa, que se levantou. O inventor colocou-se a seu lado e Aline teve um dos maiores choques da sua vida: à sua frente estavam dois Lucas. À direita estava o Lucas real. À esquerda estava um segundo Lucas, em tudo parecido, mas com traços visíveis da sua natureza: era uma máquina. Na pele transparente dos braços notavam-se peças metálicas, a face era rude, quase uma caricatura do verdadeiro Lucas. ESSE OUTRO (E)estendeu a mão para Aline.
        – É a minha magnum opus, a minha obra-prima. O Dróide. (Fi-lo) (EU O CONTRUÍ) para mim, com peças que sobraram (dos) DE outros projetos. Sabe quase tudo o que eu sei e faria de mim o homem mais rico do Universo se eu o vendesse.
        Com algum receio, Aline apertou a mão (ao) DO Dróide. Não sentiu (dor alguma) NENHUM DESCONFORTO AO FAZÊ-LO mas, mesmo assim, ficou duplamente muda de espanto.
        – Não está acabado, nem nunca vai estar. Eu não sou Deus, sou um mísero engenheiro, um aprendiz de feiticeiro dos tempos modernos.
        Aline sorriu. Sim, agora tinha a certeza de que queria ficar ali. Nos meses que se seguiram, ela fez companhia a Lucas e ajudou-o no que podia. Ele surpreendeu-se pela facilidade com QUE ELA que aprendia, e quando deu por isso já era o seu pequeno braço direito. Quando terminava SUAS TAREFAS, ela gostava de ficar na sala (a ver) VENDO televisão com o Dróide. Adormecia com a cabeça (encostada ao) APOIADA NO seu regaço e ele ficava quieto a noite toda, com medo de (a magoar) INCOMODÁ-LA. No seu cérebro cibernético definira duas certezas: Lucas era o seu Deus Criador, Aline era o anjo que o ensinava a dançar.
        Às terças-feiras de manhã. Lucas pegava no carro e dirigia até à pequena cidade que ficava junto à costa, A quase (a) trinta quilómetros de distância e, pelas contas de Aline, suficientemente afastada de casa dos pais para não ter de se preocupar. Usava roupa larga, (pelo) PARA que a barriga não (criava) DESSE motivos (de) Á curiosidade. Gostava de ir às compras com o inventor, que parecia ser uma pessoa bastante conhecida. A todos ele apresentava Aline como sendo uma sobrinha que perdera os pais num terrível acidente. As pessoas sentiam pena de Aline e davam-lhe presentes que ela recebia de bom grado e com um sorriso aberto. (Ao chegar a) DE VOLTA À casa do inventor, gostava de mostrar os seus presentes ao Dróide, que desatava a fazer perguntas às quais ela não (conseguia) SABIA responder.
        Um dia, meses depois de Aline ter chegado àquela casa, ela sentiu dores fortes. Queixou-se a Lucas, que bastou ver as calças molhadas de Aline para saber que (ela) estava em trabalho de parto. Chegara o momento que ele (temera) MAIS TEMIA desde que se apercebera da gravidez da menina. Tentou ajudá-la como podia e sabia, mas o corpo dela era demasiado pequeno. Aline (iria morrer) MORRERIA a menos que ele fizesse aquilo que não queria. Ligou ao médico da cidade, que demorou quase uma hora a chegar. Uma hora de verdadeiro terror para Lucas, que viu espelhado no rosto do médico um esgar de nojo assim que (se apercebeu) SE DEU CONTA da situação. Improvisou com láudano a anestesia e fez (a Aline) uma cesariana IMPROVISADA EM ALINE, na mesa da cozinha. Ela, não (completamente) DE TODO Inconsciente, sentiu enquanto o médico a abria-LHE O VENTRE. Ele (tirou) RETIROU a criança e entregou-a a Lucas com um ar (agastado) DE IRRITAÇÃO e sem trocar(em) uma única palavra. DEPOIS de suturar (a ferida,) O CORTE,(foi-se embora), PARTIU sem aceitar pagamento.
        Na terça-feira seguinte, na sua habitual ida à cidade, Lucas (a)percebeu (-se da) A mudança na forma como as pessoas o encaravam. Um silêncio incómodo imperava agora, substituindo a conversa fácil de outrora. Toda a cidade sabia do que tinha acontecido (–) e pensava(m que) SER ele (era) o pai da criança.
        (Lucas) Regressou (a) Á casa angustiado. Esperava conseguir explicar A TODOS o que (se tinha passado) REALMENTE TINHA SE PASSADO (na realidade ,). (sem conseguir perceber) NÃO CONSEGUIA ENTENDER como um ato de misericórdia para com uma menina, que um dia lhe batera à porta, (se transformara) provocara (no) AQUELE ódio que vira patente nos rostos das pessoas. Não teve tempo: uma semana depois do nascimento de Marcos, NOME DADO À CRIANÇA, Lucas (apercebeu-se de) VIU diversos carros (que subiam) SUBINDO a EM DIREÇÃO À SUA CASA. APRESSADO, Foi acordar Aline, que dormia ao lado do filho. Explicou-lhe o que ela deveria fazer. Aline (abanou a cabeça) MEXEU A CABEÇA DE UM LADO PARA O OUTRO, em pânico. Lucas deu-lhe um beijo na face (,) (depois foi buscar) a E FOI EM BUSCA DE SUA espingarda (e ficou) à espera DA CARAVAM QUE SE APROXIMAVA.
        (Ela) ALINE pegou delicadamente no filho, (deitou-o na alcofa) ACOMODOU-O NO CESTO DE VIME E subiu ao quarto de Lucas. (“)Terceira gaveta da esquerda(”), dissera-lhe ELE. DE DENTRO DELA Tirou um maço de notas e desceu as escadas, ainda (sem conseguir) COM DIFICULDADE PARA andar (bem) por causa dos pontos DA CESÁREA. Pegou (na alcofa) A CESTA COM O BEBÊ, passou pelo laboratório às escuras (– ela), POIS sabia perfeitamente o caminho, mesmo sem (ver) ENXERGÁ-LO DIREITO. Puxou (a mão do) O Dróide PELA MÃO mão), que a seguiu até ao carro. (Ouviu) FOI QUANDO OUVIRAM três tiros, depois o silêncio. O portão SE abriu. (Eles estavam dentro de casa, a partir tudo). Aline (meteu a alcofa) ACOMODOU O CESTO no banco de trás do carro(. O) ENQUANTO O Dróide (foi para) SENTAVA-SE (o lugar) NO BANCO do (condutor) MOTORISTA. Uma Aline ofegante e de coração apertado (entrou para o lugar) TOMOU ASSENTO AO LADO DO CESTO. (O) NESSE MOMENTO O PEQUENO Marcos (começou a berrar) PÔS-SE A CHORAR FORTE, ( Ela pegou nele) LEVANDO Aline a TOMÁ-LO EM SEUS BRAÇOS TENTANDO ABAFAR O BARULHO DO CHORO. O Dróide, RAPIDAMENTE, ligou o carro e avançou lentamente. (Passaram pelo portão traseiro) DEIXANDO A CASA , com Aline (a olhar) VOLTANDO SEU OLHAR para (OQUE DEIXAVA) para trás.
        (Viam-se) VIA-SE chamas (a começar) COMEÇANDO a devorar a casa, MUITAS (as) pessoas em delírio AO REDOR, um corpo CAÍDO no chão. Foi ao (vê-lo) VER O CORPO que Aline, desfeita em lágrimas de (raiva) REVOLTA, soltou o único (berro) GRITO que daria na vida: “Lucas!”
        (Depois) ALINE E O DRÓIDE continuaram (a fazer a estrada) A SEGUIR PELA ESTRADA, sem nunca MAIS olhar para trás.

  4. Luciana Merley
    16 de março de 2021

    Magnum Opus

    Olá, autor

    Muitas possíveis histórias acopladas em uma só, num espaço muito pequeno para abrigar tanta imaginação.

    Critério de avaliação CRI (Coesão, Ritmo e Impacto)

    Coesão – Não saberia dizer muito bem (apesar de ter lido e relido com atenção) sobre o que é a sua história, qual o centro dela. E isso acontece, geralmente, quando o autor decide inserir vários focos narrativos, vários pontos de tensão, que gerariam outras histórias, dentro de um texto curtíssimo como é um conto. Logo, não considero seu texto coeso de modo algum. Veja: a menina que foge assustada pela floresta e que depois descobre-se ter sido violada, é muda e está grávida, o clima de suspense ao entrar numa grande casa, a figura excêntrica de Lucas e seu cão, a casa estranha, a profissão estranha de Lucas, o aparecimento de um clone andróide, o parto traumático da menina, a suspeita sobre Lucas, a perseguição, a fuga, o suicídio….enfim. Quantas boas histórias não daria cada item desse conjunto de focos de tensão? Quando tudo é colocado junto como você experimentou fazer, fica cheio de pontas soltas, ideias inacabadas e costuras muito aparentes.

    Ritmo – A linguagem é fluida, gostosa de ler. O que prejudicou nesse item é exatamente o excesso de informações e por essa sensação de que o autor está correndo para conectar as coisas, como se dissesse “e aí aconteceu isso…..e depois isso…).

    Impacto – Por tudo que eu relatei anteriormente, não foi muito bom. Percebo a qualidade da escrita no que concerne à gramática e ao emprego das palavras. Logo, penso que a escolha de um ou dois desses focos todos, e o desenvolvimento deles, poderia gerar um texto bem mais atraente.

    Um abraço para você.

    • Jorge Santos
      23 de março de 2021

      Obrigado pelo comentário. Pretendia desenvolver cada um dos elementos da narrativa, mas acabei por me deixar levar e fui atraiçoado pelo limite de palavras. Vou ver se faço um “director’s cut”…

  5. Fabio Monteiro
    13 de março de 2021

    Resumo: Menina que era abusada pelo pai alcoólatra foge e encontra uma casa aparentemente abandonada. Ela entra e conhece Lucas, um inventor que resolve acolhe-la e mantê-la em sua casa. Gravida, a menina ajuda nos afazeres da casa e se afeiçoa a uma invenção de seu cuidador. Para não vê-la morrer enquanto dava a luz, Lucas chama um medico da cidade onde a menina era apresentada como sua sobrinha. Dias após Lucas é visto como um homem que abusou de sua sobrinha. Ele resolve manda-la embora, mas, a menina tenta fugir com a invenção que é a copia de Lucas. Final trágico para todos.

    Pontos fortes: O texto me prendeu ate a parte em que a garota é acolhida e as relações entre o desconhecido e ela se estabilizam. Gosto de textos assim. Tem um apelo incutido no texto em duas situações: do pai alcoólatra, do abuso de menor. Isso sem falar dos maus tratos e outras questões que chamam a atenção do leitor.

    Ponto fraco: A invenção ao estilo Frankenstein sósia do personagem Lucas me desagradou um pouco. Sei que era preciso incluir algo na narrativa para se encaixar no certame sobre engrenagens, mas, me pareceu absurdamente fora de contexto. Como eu disse, o texto parte para um lado quase psicanalítico da vida da menina, levando o leitor a interpretar sua situação, fugindo da questão ficção. Por essa razão achei que não se encaixou bem misturar dois pontos tão distintos.

    Comentário geral: Texto muito bem escrito, narrativa bem descrita, personagens bem elaborados com um pequeno desvio de adaptação. Opinião pessoal, claro.

    Boa Sorte no desafio!

    • Jorge Santos
      23 de março de 2021

      Olá. Na realidade, o Dróide tem outra motivação. Mais desenvolvido poderia tornar-se na personagem principal e perder a sua inconsistência Frankensteiniana.

  6. Priscila Pereira
    13 de março de 2021

    Olá, Dróide!

    Gostei do conto, a atmosfera criada é boa e da pra perceber a dose de drama que o conto terá. A protagonista é bem desenvolvida, Lucas e o Dróide são muito bem representados também. A ambientação é muito boa, deu pra visualizar o conto todo.

    Não entendi porque ao invés de chamar a polícia, o médico acabou criando uma caça ao monstro, sem nem dar ao Lucas chance de se explicar. No mais, um conto bem escrito, com um enredo sólido, e personagens carismáticos.

    Parabéns pela participação e pelo conto sensível!
    Boa sorte 😘

    • Jorge Santos
      23 de março de 2021

      Olá Priscila. Parabéns pela sua vitória. Nas comunidades pequenas e remotas, nem sempre as autoridades funcionam (nem nas outras, até). O médico não é mais do que uma pessoa, que torna público o que se passou, bem como o seu entendimento dos factos. Os linchamentos públicos deste tipo são mais comuns do que se possa pensar.

  7. Regina Ruth Rincon Caires
    13 de março de 2021

    Magnum Opus (Dróide)

    Comentário:

    Sem dúvida alguma, este conto é dos mais encantadores do desafio. Encantador pela mescla de realidade e poesia que o autor conseguiu espalhar por toda a narrativa. A verdade vivida por Aline, a vida miserável, os abusos sofridos, tudo isso fica muito distante de qualquer manifestação de beleza, mas, com a grande criatividade do autor, a poesia foi trazida por Dróide. Um robô sensitivo, criado com a mesma candura de Lucas.

    Neste texto, com muita competência, ambos os temas foram inseridos. Há as engrenagens, que são próprias de toda construção tecnológica e científica, e há a criação – da gravidez de Aline e até mesmo da “vida consciente” de Dróide.

    A estrutura do texto é perfeita. A trajetória do mundo real para a ficção é feita com tanto cuidado e com tanta excelência, que o leitor atravessa a fronteira com espírito encantado, sem perceber. E mergulha no mundo fictício como se fosse o real, não há tempo para acordar. Texto muito bom.

    Acredito que, na escrita, seria preciso apenas uma leve revisão de pontuação. Pausas são essenciais para que cada mensagem seja percebida em sua plenitude. E as colocações pronominais também exigem uma “corrigidinha”.

    Dróide, o seu trabalho é lindo, parabéns pela sensibilidade e pela técnica!

    Boa sorte no desafio!

    Abraços…

    • Jorge Santos
      23 de março de 2021

      Obrigado. Vou rever melhor e talvez desenvolver.

      • Regina Ruth Rincon Caires
        25 de março de 2021

        Jorge, nem de longe eu imaginava que este texto era trabalho de um colega lusitano. Você sabe que eu sou observadora. Agora, desculpe-me pela crítica ao pronome. Justamente eu, que fiquei indignada com um colega que quis “corrigir Camões”, imagine! Desculpe-me, o texto está tão brasileiro que o absorvi como tal. Fui reler meu comentário, fiquei envergonhada. Desculpe-me. Abraços…

  8. Eduardo Fernandes
    11 de março de 2021

    Creio que o conto tem alguns problemas de lógica. Quero dizer, seria razoavelmente fácil para um inventor que é um génio, que trabalha para as maiores empresas do mundo e que cria androides, levar uma menina grávida para um hospital, explicar a situação e provar que ele não é o pai da criança.

    Eu percebo o que quiseste fazer, mas acho que o contexto foi criado para a estória fluir e não a estória a fluir por causa do contexto.

    Além disso, não gostei muito da passagem quase medieval da menina perdida na floresta para algo high-tech como os androides.

    Outro problema tem a ver com o androide em si… Sinceramente, não percebi bem a função dele na estória.

    Por último, creio que podias cortar muita coisa do texto. Em alguns momentos há excesso de adjetivos e, por exemplo “Estava habituada a andar no mato, mas aquele era diferente. Matara a sede” Mato/matara não soa bem.

    • Elisabeth Lorena Alves
      21 de março de 2021

      A função dele é narrar. hehehe

    • Jorge Santos
      23 de março de 2021

      Olá. Não consigo distinguir o contexto da narrativa. Ambos interagem em contínuo. As acções modificam o contexto, que vai provocar novas acções. Quanto à lógica, sim, concordo plenamente que poderia ter sido trabalhada de uma forma diferente – o problema é que não teria o mesmo desfecho. Lucas morre exactamente por não ter feito aquilo que o Eduardo sugeriu. E ele não fez isso porque vive num mundo à parte, onde a genialidade o faz colocar de parte a sua parte social. Por isso vive isolado. É por isso que transtornado quando tem companhia. Ele sabe que isso lhe iria trazer problemas, mas prefere adiar o inevitável, que terá chegado mais cedo do que ele contava.

  9. Fheluany Nogueira
    10 de março de 2021

    Inventor acolhe menina grávida que fugiu de casa porque foi estuprada pelo pai. A garota acaba por precisar de uma cesariana. Assim, na cidade mais próxima, descobrem a situação e assassinam o benfeitor e queimam a casa, culpando-o por pedofilia. Prevendo esses eventos, a menina orientada por ele, foge com o bebê e o androide, cópia do inventor, sua maior obra.

    Uma trama que mescla o horror do estupro, a injustiça de um linchamento à beleza do nascimento de uma criança e de uma invenção. A construção textual é envolvente, fluida; as descrições são muito verosímeis e dão a dimensão de um filme, com as mudanças de foco necessárias para ampliar a visão do leitor. E, no final, fica a reflexão de como momentos podem ter um impacto diferente na vida das pessoas.

    Ao meu ver, o foco está no drama da garota e na solidariedade do inventor, não na criação em si que se tornou um mero ambiente de fundo. Também achei o título meio fortuito; e, notei algumas construções frasais que me pareceram estranhas, talvez pelo forte sotaque luso. Mas, muito bom trabalho no conjunto.

    Parabéns pela participação! Sorte. Abraço.

  10. antoniosbatista
    10 de março de 2021

    O conto é a história de uma menina grávida que foge de casa e vai parar na casa de um técnico em eletrônica, chamado Lucas. Ela passa a viver com o homem e descobre um robô que Lucas construiu. Quando a criança nasce, Lucas é acusado de ser pedófilo e como se fosse um monstro, sua casa é incendiada pelo povo enfurecido, como no filme de James Whale, Frankeistein, de 1931. A menina foge com o robô.

    Achei estranho algumas palavras do diálogo; tomas-preparas-vais- Não sei se é linguajar regional, ou erro de concordância gramatical. De qualquer forma, um bom conto. Boa sorte.

    • Jorge Santos
      23 de março de 2021

      Olá António. Não é erro de concordância. Apenas um português diferente.

  11. Renato Silva
    8 de março de 2021

    Olá, como vai?

    Primeiramente, não serão considerados gosto pessoal e nem adequação ao tema, já que o mesmo passou a ter entendimento extremamente esparso. Para evitar injustiças por não compreender que o autor fez uso dos termos escolhidos, ainda que em sentido figurado, subjetivo, entenderei que todos os contos terão os pontos correspondentes a este quesito.

    A minha avaliação é sob a ótica de um mero leitor, pois não tenho qualquer formação na área. Irei levar em questão aquilo que entendo por “qualidade” da obra como um todo, buscando entender referências, mensagens ocultas e dar algumas sugestões, se achar necessário.

    Agora, meus comentários sobre o seu conto:

    Um pouco de Asimov nunca é demais, né? Apesar de que ao conheço nenhum história dele que aborde assuntos tão delicados como o envolvendo a jovem Aline.

    No geral, eu gostei do conto, mas ao mesmo tempo me aborreci com situações que considerei um pouco inverossímeis. Como um homem pode abrigar uma jovem de 13 anos grávida em sua casa e não procurar as autoridades? Será que, em algum momento, passou por sua mente genial que morar com uma adolescente grávida não levantaria suspeitas na comunidade? Após a menina ter “parido”, ele teve uma semana para fazer algo. Poderia ter levado às autoridades; com as devidas explicações e exames de DNA, ele seria inocentado de qualquer crime. Responderia, no máximo, por ter demorado a procurar a justiça. Ou então, arrumassem as coisas e todos fossem embora para outra localidade. Aliás, acho que este seria um bom desfecho. O motivo dele não procurar as autoridades seria o temor de que a menina fosse devolvida para a “família”. Mas seria legal se o androide fosse até casa de seus pais e desse uma “lição” neles. Mas o desfecho ficou estranho. Como assim, subiram vários carros com pessoas furiosas com o suposto pedófilo, o mataram e atearam fogo na casa? A preocupação não seria resgatar a menina e, só depois disso, fazer a “justiça” ou entregá-lo às autoridades?

    Acho que o conto tava bem bonitinho até o Lucas se mostrar menos inteligente do que parecia. Nem ao menos se preparou para realizar o parto da menina. Poderia ter, de antemão, marcado com algum médico, parteira, doula, ou mesmo programado seu androide com conhecimentos médicos suficientes para prestar a assistência necessária para o parto de Aline; até mesmo por conta da idade é sempre parto de risco. O final me decepcionou, que pena.

    Boa sorte.

  12. Bruno Raposa
    8 de março de 2021

    Olá, Dróide.

    Vou segmentar meu comentário para falar de elementos específicos, começando pelos personagens.

    Aline – Gostei de seu desenvolvimento, ela tem uma origem um tanto batida, mas a mudez conferiu um frescor à personagem. Também o fato de que ela é forte e decidida, o oposto do que se esperaria de uma menina em sua situação. É uma personagem que gera empatia facilmente e é curioso acompanhar uma protagonista muda, o que é incomum.

    Lucas – De início, achei o personagem meio bobo. Um arquétipo do cientista genial recluso que parece pertencer mais à ficção do que a realidade. Também soa pouco convincente ele trabalhar para as maiores empresas do mundo, de forma independente. Seria mais crível se fosse ligado a alguma grande corporação. O personagem se torna mais tridimensional à medida que constrói seu relacionamento com Aline e quando o vemos interagindo com o povo da cidade. No fim, é possível ter empatia e torcer por ele. A maneira como se sacrifica foi bonita.

    Einstein – Bom, eu nunca vou reclamar da presença de um cachorro numa história, rs. Mas confesso que o achei descartável na trama e construído de forma um tanto infantil. Ele parece um cachorro de desenho animado, tanto no nome quanto no comportamento, se apegando imediatamente à protagonista que, de alguma forma, ele percebeu de imediato ser uma boa pessoa. Além disso ele é simplesmente abandonado na parte final do conto. Não sabemos qual foi seu destino, se ficou na casa, se lutou, se foi morto. Fiquei torcendo para Aline o levar na fuga, mas ele apenas desaparece.

    Dróide – Um personagem com potencial interessantíssimo, uma criatura feita à imagem de seu criador, vivendo isolada em seu pequeno universo. Gostei muito da maneira como ele define Aline e Lucas. Só é pena que ele tenha aparecido tão pouco, ficando relegado a um segundo plano diante dos personagens humanos. Adoraria ver mais dele.

    Trama – Creio que o texto sofreu um pouco com o limite de palavras, mas não vou implicar com isso, prefiro um texto que tenha muito a contar do que um que se arraste contando pouco. Cito essa questão apenas porque é claro que as cenas tiveram que ser um pouco apressadas, caso contrário extrapolaria o limite. Faltou um pouco de desenvolvimento. Mas gostei da história contada e da maneira como ela muda no seu último ato. Até então acompanhamos uma relação paternal se desenvolvendo com uma ficção científica de pano de fundo. Então o texto dá uma guinada para o terror, começando no estranho parto de Aline e culminando na revolta da população e na brutal invasão ao casarão. A reação do povo parece excessiva, por demais violenta. Não há qualquer menção às autoridades locais, o que é um pouco estranho. Mas é possível que, nesse universo que você criou, essa reação seja justificável. Talvez tenha faltado espaço para desenvolver essa justificativa.

    Conclusão – É um bom conto, gostei bastante da leitura e gostaria de vê-lo sendo mais desenvolvido, sem o limite de palavras. Há potencial para uma história de maior fôlego e o autor certamente tem habilidade para conduzi-la, sendo a escrita bastante segura. Da forma que está, há um quê de irregularidade, alguns pequenos problemas, mas cativa pelo todo. Certamente estará entre meus favoritos.

    Abraços e boa sorte no certame. 🙂

    • Jorge Santos
      23 de março de 2021

      Obrigado. Vou tentar rever e desenvolver mais.

  13. Felipe Lomar
    8 de março de 2021

    Eu gostei muito da sua forma de escrever. É uma escrita sóbria e direta. Acho que isso ajuda a passar a mensagem quando se tem uma história forte, como essa. Fiquei impactado com a história, tive que parar para tomar ar no meio. É um tema bastante pesado, ainda mais por ser tão real, infelizmente. O final, mesmo com a morte do português Lucas, deixa o leitor querendo saber mais. Acho que essa história, se ampliada, daria um ótimo livro.

    • Jorge Santos
      23 de março de 2021

      Obrigado, Felipe Lomar. Depois convido-o para ser um leitor Beta do livro. Se se tornar uma realidade.

  14. Elisabeth Lorena Alves
    7 de março de 2021

    Magnum Opus (Dróide)

    O conto é de uma ironia social gigantesca. Total inversão social. Sempre se diz que os inventores são antissociais – e esse a princípio até é – e loucos, em contrapartida a sociedade é um ambiente de convívio humanizado – odeio essa palavra nesse sentido com todas as minhas forças, mas ela é essencial ao texto – em que o amor supera o ódio. Não supera. Não há consenso e nem sabedoria no enxame que se alimenta do ódio que uma fofoca espalha. Pior! A título de espalhar maldades e falsas impressões, um profissional que por ética deveria respeitar o segredo entre médico e paciente, faz o serviço sujo escondendo-o sob a nobre, ou nem tanto assim, defesa da dignidade humana.
    Sobre a Estrutura. O conto tem uma sacada original. Inicia-se com a fuga da menina sofrida. O tema do Desafio é evidente porém aparece em segundo plano e não se distancia, segue bem amarrado à história trágica que se desenrola. Tem o tom inicial de terror, desconfiança do desconhecido, leveza para depois criar o tom exato para o desenrolar do final, onde anticlímax e clímax se unem e dão o tom exato do desespero e da dor. Perfeito.
    Sobre a linguagem do texto. Os campos semânticos são bem elaborados, fundamenta bem a fuga, a sensação de perigo na fuga, o enfrentamento com o desconhecido na nova experiência com humanos; os primeiros contatos de intimidade com o cachorro – personagem de quem a narrativa não dá conta ao final. É também a ligeireza semântica que acolhe Droide e a menina, homem e máquina, representado entre os dois. O único verdadeiro cuidado que teve na vida teve dos dois Lucas, o andróide a via como um anjo – o que tecnicamente falando deveria ser a visão que os pais deveriam ter da menina. Lucas o humano a vê como menina e não uma semi-mulher, tanto que a referência a lea éd e que se tornou “o seu pequeno braço direito”.

    Sobre o Psicológico. Por definição e estruturamento, alguns teóricos dizem que um conto não pode dar conta do universo psicológico de seus personagens. Não sou ninguém para criar teoria e nem pretendo ser, porém creio que não há como analisar uma narrativa sem observar o mínimo sobre a alma de seus entes. E esse conto é de uma suavidade psicológica e, no entanto, traz tanto luz para a compreensão do texto. O mais interessante é que sendo um texto praticamente fotográfico, ainda assim dá conta de preencher todas as lacunas interpretativas. Sim, a narrativa como está posta perpassa o que esperamos de uma estrutura de texto e insere no próprio espaço escrito a fotografia.
    Como na fotografia (imagem estanque e fílmica) com uso de mínimo diálogo, as descrições e as tomadas selecionadas no texto dão conta de todo o processo comunicativo. Fotografar a dor e o desespero é delimitar o espaço social e psicológico do ser e captar além do seu silêncio o que vai pela alma. Há mais sugestão de sentir, além da dor, quero dizer, o sofrimento é muito bem traçado, mas os outros sentimentos são pinceladas leves; Osvaldo Svanascini, crítico argentino, fala exatamente sobre o sugerir e acercar a emoção como ferramenta de aproximação do texto. Para os estudos da imagem a sua identidade está relacionada a luz que está posta nela (Rosseti & Vitorino) e, obviamente levando em conta o ângulo e a aqui a luminosidade necessária para a fotogenia do texto está focada na escolha bem elaborada da descrição do texto em análise – eu sei, era só para comentar, mas aquela coisa do cachimbo por a boca torta.

    Tendo dito isso, olhemos ao texto. O enfrentamento da dor e a consequente caminhada para a cura se dá em frente ao portão. E porque o silêncio? É que a dor emudece quando o grito não é ouvido e o que causa a dor não é afastado. Só quem realmente entende o que é “chorar de fazer nó” é que pode entender que uma vez que não se acha mais resposta e então o nó não se desfaz. No caso de Aline virou calo. Ficou ali, tapando a voz, qualquer que fosse. O silêncio tornou-se sua voz e defesa. Sorri, escreve, responde por meio de acenos, mas falar, não, falar dói.
    É interessante dizer que a primeira aparição dela se dá entre a dor e o desespero, seus estado deprimente nos angustia: “o coração apertado de quem foge quando não tem sequer idade para sofrer o que já sofrera”. Não tem como não ficar de coração apertado. A ideia de sequer ter idade para sofrer tudo o que já sofrera nos mostra muito além do que realmente o texto comporta.
    Ainda há mais a observar na superfície psicológica aqui apenas tocada. Todas as relações até a fuga foram traumáticas. A mãe permissiva e agressiva, o pai abusador e até a senhora idosa para quem a mãe trabalhava não deixou na menina boa impressão, o texto diz claramente que Aline “não guardava boa memória” da referida senhora.
    E que construção primorosa de Personagens! Aline, muda de sofrimento, seu nome no hebraico significa algo como suprema, ou mulher superior, é a vítima das atrocidades da mãe, que a agrediu para que eliminasse a gravidez e que mantinha sua cumplicidade com o pai, criminoso, que foi quem abusou sexualmente e de forma contínua da filha.
    Quando aparece, Aline está suja, mas não é suja. Traz em si ainda alguma dignidade, alguma partícula de autocuidado, de preservação da imagem como aparece mais na frente: “Alisou o cabelo como pôde”. A forma como é descrita a fuga inicial nos deixa ver o mais profundo de sua alma: “um dia viu na porta aberta para a rua a sua esperança e correu como nunca tinha corrido antes”. Que força narrativa, que bela construção textual! Um primor! O instante consagrado!
    A descrição do antro em que vivia é tão macabra que não aparece, apenas é sugerida na descrição do sono do *cerdo que é seu pai: “caído no sofá como um morto na campa”. E a comparação é também eufemismo para o sono profundo da embriaguez, ali, desacordado ele não pode feri-la de novo e menos ainda, interromper a fuga que ela pensa por algum tempo mais ser fugaz.
    Lucas, que de médico nada tem, mas que é um iluminado, como seu nome sugere, o protetor inesperado. É só observar sua posição inicial e sua mudança e temos a fotografia de quem ele é: olhar escondido, corpo escanzelado – meu avô Efigênio dizia essa palavra –
    voz fria, com sotaque estrangeiro, não gosta de ser interrompido, todas informações que caem sobre ela de chofre. O que esperar dele? aqui vale um aparte. O Estrangeiro é por si só o diferente. Para o homem comum o estrangeiro rouba-lhe a mulher, a fé, o trabalho e usando a influência com seus demônios ou deuses, tem o poder de os destruir. É inerente ao pensamento social, o que é diferente e mesmo alguém tão marcado como Aline, teme, porém ela enfrenta. É descobrir o oculto ou voltar para o sofrimento: “

    Até o Droide tem lá suas peculiaridades e é ele que lança o Conto tanto no campo temático da Criação quanto no de gênero, já que sua percepção sobre Lucas ser seu Criador e Aline um anjo o transforma em um ser capaz de executar construções cognitivas e criar campo de valores, logo está inserindo em Fantasia. o que é genial. Se ele não fosse capaz de emitir seus próprios valores, seguiria sendo um autômato, um androide apenas, mas ao ter sentimentos, cristaliza o conto com uma riqueza inesperada: ele pensa e definiu quem são seus seres divinos, criador e anjo, E também tem noção de cuidado. O único e verdadeiro cuidado físico que ela recebe, porque quando ela “Adormecia com a cabeça encostada ao seu regaço e ele ficava quieto a noite toda, com medo de a magoar. Se isso não é amor, que nome leva? E se não é um instantâneo digno de um quadro, o que é?

    Aqui também é interessante imaginar o que ocorre em sua chegada seu novo lar e ser guiada a fazer sua comida e higiene. Há algo interessante a se considerar que vai para além do texto, mas não para além da dor: “Deu-se conta de que estava sozinha.” Como isso é profundo! Ela está por algum tempo livre – porque até aí ela não sabia que não seria rechaçada – é, por agora, dona da situação, tanto que comeu, resolveu o problema da desordem e do asseio e depois, banhou-se. Para Literatura pode ser que essa ordem nada tenha a ver, porém, um banho depois da faxina é um remédio sem contra indicações, restaura o corpo e refrigera a alma.
    Casa limpa, corpo limpo, bom sono e um novo dia. A escolha a ser feita: enfrentar seu sofrimento e ficar longe dele ou voltar. Há um corte de memória nessa parte do texto e toda a dor é descrita, desde a primeira vez do abuso
    A escrita de Magnum Opus tem o poder de no mesmo espaço “confirmar a humanidade do homem “ (Antonio Candido) e mostrar toda a desumanidade que tanto um homem sozinho pode fazer quanto da horda em sua busca por vingança por algo que desconhece. Também é acertada porque não há nela e nem poderia, nenhum tipo de sublimação da pedofilia. É um crime de poder, no caso específico do pai, com anuência da mãe, contra a criança.
    A revolta da súcia pela simples alusão a um crime de que ela não conhece realmente o autor, mas dá a autoria ao estrangeiro é muito bem construída. Desde antes, quanto mostra a amizade com ele, até quando ele reconhece o perigo e volta para casa para proteger sua estranha família, o Dróide, sua criatura e seus protegidos Aline e Marcos, o bêbe. Aqui um adendo, eu odeio esses invasores porque além de matar o salvador da menina, que se entrega à morte para que ela fuja, matou também o Einstein – porque não está no texto, mas gente ruim não se satisfaz só matando gente…
    A constatação implícita na narração que acompanha sua esperança de resolver as coisas com diálogo é uma verdade no mínimo, milenar, afinal, não dá para explicar como um ato de misericórdia para com uma menina que um dia lhe batera à porta se transformara no ódio que vira patente nos rostos das pessoas”. Essas ignorâncias aconteceram tanto ao longo da História que ninguém mais associa à sua própria gana de fazer justiça com suas próprias mãos – e justiça pessoal é só “vendeta”.
    O texto termina com a morte de Lucas. Afinal, os inocentes condenados sem direito a defesa morrem rápido, o que permanece é o delírio. Enquanto foge, levando o filho e o Droide, que a conduz para fora desse mar de ódio e destruição, pode ainda ver seu salvador no solo, morto. E então a revolta e a dor que ela sente se transforma em seu único grito, um rompante de dor que interrompe momentaneamente sua costumeira afasia e de dentro sai apenas o nome de Lucas.
    E o fim se dá, de forma que o passado fica enquanto eles continuam “a fazer a estrada sem nunca olhar para trás.”
    Em suma, como diria Milton Hatoum, a “Literatura é passional” e Magnum Opus traduz bem isso. Um conto quente, alucinante, intigrante e, porque não, revoltante, uma denùncia contra a Sociedade que encobre a Pedofilia, como se ela deixasse de existir, escondendo-a no silêncio e mata o inocente pelo simples fato de ser diferente. porque sim, Lucas morre por tudo o que o diferencia de todos: Por proteger, sem gritar seu trabalho social, por se manter à parte dos que ignorantes poderiam atrapalhar seu trabalho, por amar uma menina que dele não nasceu como filha, por ser e saber quem é.
    Sucesso no Desafio, Dróide, espero que seu organismo aceite café e não só óleo…

    • Jorge Santos
      21 de março de 2021

      Obrigado. Vou imprimir o seu comentário para colocar num quadro, bem visível na parede do meu escritório. Para não esquecer nunca o que me leva a escrever e que vejo espelhado nas suas sábias palavras.

  15. danielreis1973
    4 de março de 2021

    Prezado Entrecontista:

    Para este desafio, resolvi adotar uma metodologia avaliativa do material considerando três quesitos: PREMISSA (ou Ideia), ENREDO (ou Construção) e RESULTADO (ou Efeito). Espero contribuir com meu comentário para o aperfeiçoamento do seu conto, e qualquer crítica é mera sugestão ou opinião. Não estou julgando o AUTOR, mas o produto do seu esforço. É como se estivéssemos num leilão silencioso de obras de arte, só que em vez de oferta, estamos depositando comentários sem saber de quem é a autoria. Portanto, veja também estas observações como anotações de um anônimo diante da sua Obra.

    DR

    Comentários:

    PREMISSA: Aline, uma menina de 13 anos muda e abusada pelo pai, foge de casa e encontra guarida na casa de um homem bem mais velho, Lucas, onde gesta um filho que todos acabam pensando ser dele.

    ENREDO: Após aparecer fugida, Aline é albergada por Lucas, que aparentemente nutre somente simpatia por ela. Ele está construindo um droide de si mesmo (uma caracteristica bastante sugestiva do narcisismo em que vive) e é com ele na direção do veículo que a menina e seu filho fogem da ira do julgamento da comunidade.

    RESULTADO: construída sobre a empatia, a história é bem narrada e seguramente conduzida por um narrador notadamente português. Como única sugestão (afinal, as decisões da história cabem somente ao autor), acredito que o aspecto de “inventor” (o nome de Einstein para o cachorro relembra “De Volta para o Futuro”) poderia ser mais desenvolvido, numa eventual ampliação do texto além dos limites do desafio. Parabéns!

    • Jorge Santos
      23 de março de 2021

      SABIA QUE O NOME EINSTEIN ME ERA FAMILIAR… 🙂

  16. Catarina Cunha
    4 de março de 2021

    OBS: Opa! Tirei 0,10 e não 0,01… Foi mal. Muitas fugas das aulas de matemática.

  17. Catarina Cunha
    4 de março de 2021

    Criação: Misturou os dois temas com maestria. A dramaticidade portuguesa, no tom certeiro, nos envolve em um abraço longo. Impliquei só com a ilustração; a imagem da gravida tira do leitor o suspense. O que teria acontecido? De que ela foge? Por isso tirei 0,01 da nota; só de pinimba.

    Engrenagem: O relato no presente dá densidade à ação e os personagens, embora em curto espaço, foram bem definidos. Embora o estilo fuja da minha preferência, o conto é “fitness”, forte e sem gordura; e isso basta para uma boa nota.

    Destaque: “No seu cérebro cibernético definira duas certezas: Lucas era o seu Deus Criador, Aline era o anjo que o ensinava a dançar.” – delícia de imagem!

  18. Rubem Cabral
    1 de março de 2021

    Olá, Dróide.

    Resumo da história:

    Menina grávida foge de casa e se refugia numa casa na floresta. Lá, descobre que esta é habitada por um estrangeiro de nome Lucas. O homem inicialmente tem receio de abrigá-la, mas ao observar a situação precária da adolescente resolve “adotá-la”. Lucas revela-se um inventor e até tem um andróide de aparência semelhante a ele mesmo, que ele chama de sua obra-prima (magnum opus). Quando chega a hora do parto, temendo pela vida da menina, Lucas traz à casa um médico e este ajuda no parto. Contudo, o médico julgou que a criança fora possivelmente abusada por Lucas, e acaba por levar uma turba furiosa à casa do inventor, para fazer justiça com as próprias mãos. Aline (a menina) foge junto do droide e com seu bebê, enquanto Lucas presumivelmente foi morto.

    Análise do conto:

    Escrita muito clara e fácil de se perceber, mesmo estando em português-PT. A única palavra que tive que procurar o significado foi “alcofa”, que no Brasil é chamado “moisés”. Bons personagens, bom enredo, boa adesão ao tema do desafio: 5 estrelas!

    Boa sorte no desafio!

  19. angst447
    28 de fevereiro de 2021

    Conto bem escrito que mescla drama [abuso de uma criança pelo próprio pai e conivência da mãe] com ficção científica. O personagem Aline foi muito bem construído, causa empatia imediata.
    A dose de ficção científica funcionou bem, pois não foi inserida em quantidade exagerada à trama. Lucas estava trabalhando em uma criação interessante, uma criatura a sua semelhança – o Dróide. Logo, o tema proposto pelo desafio – Criação – foi abordado.
    A “cena” do parto de Aline foi bem impactante, trouxe um quê de terror à trama. E o suspense continuou nessa linha até o fim, com a fuga do improvável casal e o bebê, além do assassinato de Lucas. Interessante Aline conseguir soltar um grito no final, o seu único berro na vida.
    Notei um sotaque lusitano na narrativa, o que conferiu charme ao texto.
    Boa sorte.

  20. Fernando Dias Cyrino
    27 de fevereiro de 2021

    Olá, Droide, cá estou eu a caminhar às voltas com a sua forte e triste história, amigo. Interessante ler um conto que parece ter vindo de além-mar. Sabe, gostei da sua história. Está bem escrita, um enredo bem triste que trata do abuso sofrido e da redenção que acontece a partir do encontro de Lucas (como o evangelista, que por sinal era médico, mas no nosso caso não entendia nada do parto e optou por chamar um doutor da pequena cidade próxima). Um conto forte e doloroso, como devem ser as boas histórias. Conto-lhe, Droide, que achei apesar da história bem escrita, o enredo um pouco forçado. A criação da mentira (sobrinha que perdera os pais) só iria lhe trazer problemas posteriormente, era bem óbvio isto. E isto, claro, logo aconteceu com o chamado do médico para fazer a cesariana. Afinal, um homem solitário com uma adolescente, os dois sozinhos numa casa afastada de tudo e de todos daria o que pensar e falar na comunidade em volta. Sim, entendo que quis frisar o sacrifício do Lucas, ao mesmo tempo em que valorizava a sua criação como suporte da garota no mundo dali por diante, considerando a sua falta. Resumindo, Droide, uma boa história, muito bem narrada, excelente domínio do idioma, mas que apresentou, ao meu ver esse probleminha no enredo. Abraços.

  21. Anderson Prado
    26 de fevereiro de 2021

    A história aproveitou bem os dois temas do desafio: o androide é uma criação feita de engrenagens. O enredo é um tanto inocente, aproveitando lugares comuns dos das histórias dos estúdios Disney: pai alcoolatra, abuso infantil, fulga pela floresta, cachorro bravio que se rende aos encantos de uma criança inocente, velho estranho em uma cabana erma, acolhimento, incompreensão, tragédia e um final parcialmente redentor. A escrita é boa, mas poderia ser mais madura. O português de Portugal trouxe graça e distinção ao texto.

  22. opedropaulo
    24 de fevereiro de 2021

    Estou lendo um conto por dia e este é o do que mais gostei. Os dois temas acabam tocados, materializados na figura do Dróide, que encarna o lado “mecânico”, que se pode aludir às engrenagens, e simultaneamente toca no tema da criação, este presente tanto na máquina, um robô construído à semelhança de seu criador, como na própria Aline, cuja criação passa pelo ambiente singular que é a casa de Lucas. A escrita é sutil e precisa, por vezes um pouco truncada, o que me parece ser devido a um esforço para deixar cada vez mais conciso para atender ao limite de palavras estabelecido pelo certame. Apesar disso, prevalece a qualidade na escrita, encaminhando tanto ações como sentimentos, ao tempo que também arranja espaço para nos informar do doloroso passado da protagonista. Falando agora da narrativa, é tudo bastante previsível, com o clichê de uma criança fugidia encontrando uma figura paterna peculiar e acolhedora com quem estabelece um laço único… mas isto não prejudica o texto, pois é justamente ao trabalhar muito bem o clichê que uma ótima história é entregue.

    Meus parabéns e boa sorte.

  23. Kelly Hatanaka
    23 de fevereiro de 2021

    O começo foi bem intrigante, você construiu bastante suspense e é facil torcer pela Aline. Só que fiquei com a sensação de que faltou coisa, sabe? Senti falta de mais Magnum Opus, ele parece ser uma maravilha, um droide com sentimentos e o conto acabou tão subitamente, no meio de um climax… não sei dizer se isso é um defeito ou se sua história é simplesmente tão boa que merecia mais espaço…

  24. thiagocastrosouza
    22 de fevereiro de 2021

    Caro Dróide, percebi aqui elementos de Mary Shelley, entre outros clássicos: o gênio recluso, apartado da civilização que busca criar um semelhante, dar vida ao inanimado e que se afeiçoa por uma figura também marginalizada. Há um misto interessante aqui: ao mesmo tempo uma atmosfera gótica e antiga, de casarões, portões de ferro, florestas densas, pessoas que ateiam fogo nas casas, enquanto há uma tecnologia cibernética sendo desenvolvida ocultamente por Lucas.

    A parte do abuso é forte e dolorida para o leitor, justificando diversas características da protagonista, como sua mudez. Cenas desse tipo exigem certa sensibilidade e cuidado ao serem escritas, para denunciar sem fazer descrições e alusões gratuitas.

    Quanto ao enredo, por mais sugestivo que seja uma menina encontrar no meio da floresta um homem solitário e empático que lhe acolha e ensine da sua arte, o desenvolvimento é ágil e inesperado. Não sei em que tipo de país ou realidade se passa a história, mas a animosidade dos citadinos em relação a Lucas vai um pouco além do que o comum, porém, em determinados contextos, de histeria coletiva, extremismo religioso, político, seria plausível.

    Creio que seja isso.

    Grande abraço!

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Informação

Publicado às 21 de fevereiro de 2021 por em Engrenagens da Criação e marcado .